Um presente incômodo para o Theatro José de Alencar

O Theatro José de Alencar comemora neste ano 110 anos de inauguração | Foto: Secult

Gilmar de Carvalho
Jornalista
Professor aposentado da UFC
gilmarcarvalho15@gmail.com

Fortaleza – CE. Fala-se cada vez mais em patrimônio. O conceito se ampliou com a entrada em cena do “imaterial” ou “intangível”, complementando a preservação do patrimônio edificado (em “pedra e cal”), que foi prioritário durante muito tempo.

Temos um Iphan atento, com uma equipe técnica competente e ética; uma Secult com seu setor de Patrimônio em funcionamento, e a Secultfor que promove, anualmente, um seminário sobre o tema que se tornou referência. O quadro parece relativamente tranquilo. Parece.

A placa que anuncia a reforma da Praça José de Alencar traz uma informação que nos deixa preocupados e atônitos: a instalação de um terminal de ônibus na praça que homenageia o escritor de Messejana, onde fica situado nosso teatro histórico, um dos mais charmosos e importantes do País (sem ufanismos).

O que isso significa? Burburinho, comércio ambulante, freadas bruscas, troca de marchas nas saídas dos ônibus, trepidação, bico injetor mal ajustado, fumaça de diesel.

Falo como jornalista (espécie em extinção) que sou, no exercício de uma cidadania da qual não pretendo abrir mão.

O ideal seria que Iphan, Secult e Secultfor realizassem uma reunião com técnicos para avaliar melhor esta “ideia”.

A Praça José de Alencar já teve um terminal de ônibus, nos anos 1970. Ficava à frente na Igreja do Patrocínio. Fortaleza era bem menor e os problemas menos graves. Deve ter sido retirado com boas desculpas para a cidade, que perdia mais que um terminal, uma central de poluição.

O Theatro José de Alencar comemora neste ano 110 anos de inauguração. Mereceria uma festa e não ganhar um presente incômodo, que vai atrapalhar a vida da praça, que, aliás, está sendo reformada.

O Theatro é das mais importantes e imponentes edificações de Fortaleza. É uma das nossas referências de patrimônio e arquitetura. Da estrutura de ferro importada da Escócia, às pinturas que envolveram artistas da cidade, como o boêmio, poeta, compositor e desenhista Ramos Cotôco (1871 / 1916), tudo é valioso.

Num exercício de puro masoquismo, podemos pensar no que significarão os arranques, o peso dos ônibus em contraponto à delicadeza dos encaixes de madeira, ao jardim assinado pelo Burle Marx, com descargas permanentes de dióxido de carbono sobre as pinturas e canteiros. Os danos poderão ser bem maiores do que pensamos, talvez, irreversíveis.

Decididamente, não podíamos ganhar “presente” mais “disagradave”, como disse Patativa do Assaré, em um dos seus poemas, referindo-se a um televisor que um filho que se mudara para São Paulo mandara para a família que ficou aqui.

Uma discussão como esta tem de acontecer logo, enquanto dá tempo se pensar em uma alternativa. Precisamos ouvir engenheiros, arquitetos, ambientalistas, historiadores, urbanistas, botânicos, memorialistas, especialistas em restauro de obras de arte, sociólogos, filósofos, antropólogos. Quanto mais gente, melhor.

Estranho que no último ano de gestão, a Prefeitura esteja querendo nos impor algo tão polêmico, sem uma discussão aberta e bem embasada.

Por mais que o transporte público seja primordial, quando se pretende mostrar que o transporte individual é egoísta, não resolve os problemas de mobilidade de uma cidade de três milhões de habitantes, precisamos pensar um pouco mais.

Precisamos também de competência, de sensibilidade e de respeito aos monumentos da cidade. Uma decisão política deve decorrer dos resultados destas reuniões, que não poderão prescindir de todos os que amam, “adotam” e “abraçam” o Theatro José de Alencar.

Ele é uma das referências de nossa maioridade como cidade. É uma casa que nos orgulha, ainda que tenha sido edificada em um dos períodos mais violentos da história política cearense: a oligarquia Acióli, com mais de vinte anos de arbítrio, defenestrada pela aliança das camadas médias com os militares, em 1912.

Está na hora se nos sentarmos em volta de uma grande mesa e discutirmos o que será melhor para nosso Theatro José de Alencar, para a praça e para nossa cidade.

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