Pescadores do Delta do Parnaíba geram própria energia

Esta é a quarta de uma série de matérias produzidas pela Eco Nordeste a partir da participação na Brazil Energy Conference, em Teresina

A foto mostra um rancho rústico de pescadores, com cobertura de palha e placas solares no telhado, em uma praia de areia clara. Ao lado, há um barco atracado na beira do rio sob um céu azul
No Pé do Morro, território maranhense do Delta do Parnaíba, a transição energética não chegou pelas mãos dos próprios pescadores | Foto: Líliam Cunha

Na vila de pescadores construída no Pé do Morro, nas proximidades da Ilha do Caju, no território maranhense do Delta do Parnaíba, a transição energética não chegou pelas mãos do Estado. Ali, quem garantiu o acesso à energia foram os próprios pescadores, que com recursos próprios, adquiriram placas solares para iluminar suas “barracas” — os tradicionais abrigos de madeira construídos nas áreas de pesca.

Antonio Maria, sócio da Colônia Z20 de Araioses, no Maranhão, vive da pesca há 30 anos. Ele conta que a energia solar passou a fazer parte da rotina da comunidade há cerca de dois anos e que desde então tudo mudou. “Ela trouxe melhorias em carregamentos de telefone, baterias. Quando a gente chega da pesca à noite, acende as luzes para tratar o peixe, fazer a janta”, relata.

Segundo ele, antes da energia solar, a realidade era outra: “Era tudo escuro. Não tinha como carregar as baterias, nem os celulares. Agora conseguimos manter contato com a família, avisar os compradores que tem peixe, chamar ajuda”, diz Antonio. A internet, segundo ele, também chega pelos próprios dados móveis.

O grupo de pescadores constrói os ranchos, estruturas simples de abrigo, há muitos anos. Nesses espaços isolados, passam a alternar os dias em alto-mar para garantir o sustento. “Tem sempre três ou quatro pescadores por grupo”, conta. Sobre a quantidade de energia gerada, o pescador afirmou que não tem medição precisa. Disse ser suficiente para carregar baterias e alimentar lâmpadas: “Não temos um medidor certo, só usamos para carregar bateria e acender as luzes”.

A comunidade de Carnaubeiras, município de Araioses, onde vive Antônio Maria e demais pescadores da colônia Z20, é composta por centenas de famílias que dependem exclusivamente da pesca. Mesmo assim, nunca foram contempladas por programas específicos de energia ou inclusão digital. “A gente comprou e instalou sozinho. Não faz parte de nenhum projeto do governo”, resume Antônio Maria.

O caso revela uma realidade silenciosa e contraditória: enquanto o discurso oficial promete um futuro de desenvolvimento sustentável e energia limpa para todos, comunidades tradicionais seguem invisibilizadas. A transição, apesar de anunciada como inclusiva e benéfica, ainda não alcançou muitos que vivem em regiões remotas do Delta do Parnaíba.

Essa ausência de políticas públicas específicas força pescadores como Antônio Maria e seu grupo a buscarem soluções autônomas para garantir o mínimo necessário para seu trabalho e qualidade de vida. A iniciativa, embora positiva, expõe as fragilidades no acesso a serviços básicos e a necessidade urgente de programas governamentais que promovam a inclusão energética e digital dessas comunidades.

Antonio reforça que a energia solar representa mais do que conforto: “Com a luz, a gente consegue trabalhar melhor, cuidar do peixe, e até garantir a segurança. Mas o ideal seria ter apoio do governo, porque a gente fez tudo sozinho, com muita dificuldade”.

O exemplo do Pé do Morro mostra que, apesar do avanço das energias renováveis e dos projetos públicos, a verdadeira transição energética precisa ser pensada de forma integrada, contemplando não só grandes empreendimentos, mas sobretudo as pessoas que dependem diretamente dos recursos naturais para sobreviver.

Políticas públicas para mitigar impactos

A transição energética no Brasil tem sido anunciada como uma das principais oportunidades para o desenvolvimento econômico regional, com promessas de empregos, sustentabilidade e inclusão social. No Piauí, Estado com um dos maiores potenciais de geração de energias renováveis do País, o desafio é fazer com que essa transição seja realizada de forma justa, equilibrada e transparente. Políticas públicas bem desenhadas têm papel central nesse processo. Essa foi a tônica do painel “Políticas públicas e transição energética”, realizado durante a Brazil Energy Conference 2025, em Teresina.

Thais Araripe, representante da Agência de Regulação dos Serviços Públicos do Estado do Piauí (Agrespi), fez uma análise direta sobre os desafios do Estado. “o Piauí precisa urgentemente de políticas públicas que não apenas fomentem a expansão das energias renováveis, mas que também promovam inclusão social e mitigação dos impactos ambientais. A transição energética não pode ser um processo excludente ou que repita os erros do passado. Temos que pensar no longo prazo, integrar desenvolvimento econômico, social e ambiental de forma equilibrada”.

Thais destacou ainda que o Estado trabalha para garantir que a população piauiense tenha acesso às oportunidades geradas pela transição: “estamos alinhando projetos com a capacitação da mão de obra local, que é essencial para que o piauiense ocupe as vagas geradas pela expansão das energias renováveis, principalmente do hidrogênio verde”.

Ela também alertou para a urgência de pensar o futuro do trabalho com os impactos das novas tecnologias, como a Inteligência Artificial, e a necessidade de formação em áreas específicas: “o planejamento tem que ser de longo prazo. Não é apenas gerar empregos, mas entender quais empregos e como garantir que nossa gente esteja pronta”.

Regulação inteligente

O debate reuniu especialistas e gestores que estão no centro das decisões sobre o futuro energético do Estado. Dionatas Rayron, também da Agrespi, ressaltou que uma regulação inteligente é condição para que o Piauí avance sem repetir erros de outros estados: “a regulação deve garantir a segurança jurídica necessária para atrair investimentos, ao mesmo tempo em que protege os direitos da população e do meio ambiente. Políticas públicas bem articuladas evitam distorções e promovem a justiça social”.

Segundo dados apresentados por ele, só os projetos atualmente em fase de licenciamento no Estado têm potencial para atrair mais de R$ 40 bilhões em investimentos em energias renováveis. “O desafio é transformar esse volume em desenvolvimento de verdade. E isso passa pela regulação, pelo planejamento, pela inserção da população e pelo respeito ao meio ambiente”, disse Dionatas.

O professor Adriano Batista, do Instituto Federal do Piauí (IFPI), pontuou que o Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2) prevê não apenas subsídios ao setor produtivo, mas também ênfase na formação de pessoas e na gestão do conhecimento. “Às vezes nos apegamos muito aos subsídios, mas o Brasil precisa ser fixador de tecnologia. Quando investimos nas universidades, nos institutos federais, em P&D, estamos garantindo soberania tecnológica. Esse é o grande legado que o PNH2 pode deixar”, disse. Ele ressaltou a importância de que os centros de formação estejam integrados às estratégias de desenvolvimento regional.

Também foi destacado, no painel, o papel das políticas intersetoriais para garantir que os investimentos em infraestrutura estejam articulados com as demandas sociais. Segundo os painelistas, a transição não pode ocorrer de forma descoordenada, o que imporia riscos às comunidades e ao meio ambiente.

Igor Pontes, diretor de desenvolvimento de negócios da Companhia Porto Piauí, ressaltou o compromisso do Estado com a sustentabilidade na implantação do porto, que terá papel estratégico no escoamento da produção local e da energia limpa. “Nossa política é construir um porto verde, que respeite a APA do Delta do Parnaíba e que atenda às diretrizes globais de descarbonização”, disse.

Ao encerrar o debate, a Eco Nordeste questionou os painelistas sobre os impactos negativos da transição, que raramente são mencionados nos debates públicos. Thais Araripe respondeu: “a transição energética tem impactos e eles precisam ser enfrentados. Por isso o licenciamento ambiental é tão importante. Ele exige fases distintas, com estudos sociais e ambientais em cada uma delas. A inclusão da comunidade é obrigatória, por meio das audiências públicas. O que não pode acontecer é transformar o Piauí em apenas um terreno para o investimento privado”.

Ela ainda apontou que o governo atual tem atuado para corrigir falhas históricas de planejamento e buscar uma transição justa: “a invisibilidade custa caro. Muitas vezes o que a comunidade quer é apenas ser ouvida. E o Estado precisa estar presente, com escuta e com planejamento”.

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* A repórter acompanhou a Brazil Energy Conference a convite dos organizadores do evento

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