A Eco Nordeste esteve na porção maranhense do Matopiba para conhecer de perto os impactos socioambientais causados pelo agronegócio. A reportagem a seguir expõe as pressões exercidas pelas fazendas produtoras de commodities, a partir da perspectiva de lideranças, famílias e comunidades ameaçadas.
Chegar ao sul do Maranhão pela Rodovia Transamazônica traz aos olhos uma paisagem composta pelo bioma Cerrado em predominância, mas que se une também ao bioma Caatinga e ao amazônico. Pelo caminho, rumo à porção maranhense do Matopiba, atravessamos a Chapada das Mesas e contemplamos ao longe o Morro do Chapéu, um dos principais cartões-postais da região, conhecida como o Portal da Amazônia. Tucanos, papagaios e outras aves sobrevoaram a estrada e anunciaram que a natureza do lugar é de uma beleza diversa e singular.
À medida em que nos aproximamos do município de Balsas, a beleza cênica das florestas que margeiam a rodovia perde espaço para a monocultura, ou seja, grande áreas plantadas com uma só espécie. A cidade, que é sede da Região Gerais de Balsas, é também sede do Matopiba no Maranhão. O lugar, banhado pelo Rio Balsas, respira o agronegócio. Uma parte significativa dos estabelecimentos comerciais da cidade são de serviços relacionados à agricultura. Não à toa, Balsas é um dos municípios mais ricos do Agronegócio, tanto que em 2020 movimentou R$ 1.698.528 em produção e um Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 3.495.336.
Apesar do desenvolvimento aparente trazido pela produção de commodities na região, é na zona rural, em comunidades isoladas por longas estradas de terras, que a devastação causada pelo agronegócio vai deixando suas máculas e quase ninguém vê. Silenciosamente marca a vida de pessoas mais vulneráveis.
Um oásis ameaçado
Em um desses lugares remotos da zona rural, há uma casa isolada no meio de uma mata nativa ainda preservada. Lá conhecemos uma família de sertanejos. A casa em que vivem, junto à natureza, se desenha como um oásis, cercado por áreas desmatadas para o plantio de imensas culturas de grãos. Com a matriarca ausente, fomos recebidos pela família, composta pelo senhor Tadeu Jatobá (nome fictício) e outras 15 pessoas, entre filhos, noras e netos, a maioria crianças. Todos vivem em uma mesma casa, em comunhão com a terra, em um modo de vida bastante tradicional, com base na agricultura familiar e extrativismo. Os menores brincavam livres e descalços na chuva no momento em que nossa equipe de reportagem chegou. Mas o que o avô das crianças teme é que essa liberdade de desfrutar da natureza ao redor deixe de existir.
O senhor Tadeu relembra que as terras do rancho em que vive foram compradas pelo seu avô e pertence à família há mais de 160 anos. Mas muitas coisas mudaram de uns tempos para cá, ao passo que o agronegócio na região avançou. “A gente vivia tranquilo, você deitava e levantava no outro dia sem medo de nada. Não tinha ataque de nada. Hoje você vai dormir com medo de acordar e a casa estar cercada”, recorda o agricultor familiar, que no ano passado teve cerca de 200 hectares de sua propriedade subtraídos por ações de grileiros.
A supressão das matas nativas nas imediações é outra mudança percebida ao longo do tempo. “Estão derrubando todo o nosso Cerrado por aqui! Está cada vez mais difícil encontrar frutos nativos, como o pequi, bacuri e o jatobá. Estão desaparecendo! Onde vamos catar? Os animais também sentem falta de alimentos. As onças, os lobos e as cobras estão se aproximando cada vez mais das nossas casas e se alimentando dos galinheiros e rebanhos, por estarem perdendo espaço e comida nas matas.”
A principal fonte de água da família vem de uma nascente que existe nas imediações da casa. Protegido pela floresta preservada pela família, o córrego garante água de qualidade para as necessidades, além de ser um local de pesca para alimentar a todos. Contudo, a nascente e o solo da mata ao redor correm sérios riscos de contaminação. Isso porque semanalmente aviões contratados pelas fazendas que produzem grãos sobrevoam o lugar pulverizando veneno em toda a área. O fato põe em risco não só a água e a terra, mas a segurança alimentar e a saúde de pessoas.
“Antigamente era possível colher muitos frutos, mas hoje em dia o meu roçado é prejudicado pelos venenos que são despejados no solo. A mandioca, o arroz, o feijão, tudo isso que a gente planta está sendo afetado pelo veneno, porque os aviões vêm fazer a rotina de pulverização quase em cima de nossas casas, semanalmente. Nenhum pé de caju, de manga, nenhuma planta vai pra frente. Além disso, nossas plantações acabam sendo invadidas por pragas e doenças próprias da soja”, destacou Tadeu, após ter relatado que sua esposa estava na cidade para um tratamento contra um câncer.
Três dos filhos do senhor Tadeu trabalham em uma dessas fazendas produtoras de commodities das imediações. Por falta de opções de trabalho no campo e por temerem retaliações, muitas vezes precisam se submeter às pressões que esses grandes empreendimentos exercem sobre sua comunidade, o que dificulta e muito as denúncias contra essas irregularidades.
“Por falta de oportunidade eles precisam desse trabalho. Mas a gente fica com medo de que sofram ameaças e retaliações. Quem falou? Quem denunciou? Isso pode dar até em morte“, finaliza.
Tadeu Jatobá
Agricultor familiar do Sul do Maranhão
Maior Parque do MA não é bem preservado
Criado em 1980, o Parque Estadual do Mirador é a maior Área de Proteção Integral do Estado do Maranhão e compõe o segundo maior bloco de áreas protegidas do Cerrado. Rodeado por a uma vastidão de plantações de soja, a área abriga as nascentes do Rio Alpercata e do Rio Itapecuru. O segundo rio é o responsável pelo abastecimento de 75% da população da capital, São Luís, e outras cidades da região leste e norte do Maranhão.
No ano de 2009 a área do Parque foi ampliada e passou a 766.781 hectares (Lei Nº 8.958). No entanto, de acordo com dados de geoprocessamento realizado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema) do Maranhão, a Unidade de Conservação (UC) conta com cerca de 500 mil hectares.
Além da grande importância hídrica que a UC representa para o Maranhão, o Parque é reduto de espécies de animais nativos, como o gato-do-mato, o veado-campeiro, lobo-guará, queixada e tatu-canastra, mas essa biodiversidade e riqueza em recursos hídricos sofre ameaças por parte da caça ilegal e do avanço dos plantios de soja nos arredores, e por consequência, do desmatamento. Além disso, segundo testemunhas, a área do Parque vem sendo pouco a pouco subtraída ilegalmente por ação de grileiros.
“O entorno do Parque está sendo muito destruído pelo agronegócio. Para onde a gente olha tem soja, ou seja, o Parque está rodeado do agronegócio e isso vem fazendo a paisagem mudar muito ao longo do tempo. Quando a gente vem chegando na Unidade de Conservação, já é possível ver o desmatamento assim tão próximo da nascente do rio”, detalha Marciano Rodrigues, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Mangabeiras.
Estima-se que dentro do território do Parque exista 61 pequenos povoados. Em um desses vilarejos, visitamos a casa de uma senhora, que vive do cultivo da mandioca e para ela, a vida ali é tranquila, mas teme que um dia falte água. “Antigamente a gente tinha muita fartura de água. Mas agora percebo que a água do riacho que passa aqui perto, vem baixando e ficando barrenta com o tempo. Fico com medo de um dia não ter, porque não é mais como antes”, destacou Fernanda Costa (nome fictício).
Circundado pelos municípios de Mirador, Formosa da Serra Negra, Loreto, São Felix de Balsas, São Domingos do Azeitão, Sambaíba e Fernando Falcão, o Parque Estadual do Mirador abriga em suas imediações três terras Indígenas: a TI Kanela e a TI Kanela/Memortumré – ambas habitadas pelo povo Kanela Ramkokamekrá – e a TI Porquinhos dos Kanela-Apänjekra.
Povo Indígena relata pressões
Considerado por estudo do Instituto Cerrados como o Território Indígena mais desmatado do Cerrado em 2019, a TI Porquinhos, do Povo Kanela-Apänjekra, fica entre os municípios de Barra da Corda, Fernando Falcão e Grajaú, no Sul do Maranhão. O Território, que também é uma área cercada por grandes lavouras de grãos, é morada de um povo tradicional, que vive da agricultura de subsistência, com tradição muito forte, uma linguagem própria e rituais sagrados, como a festa da laranja.
A vida no território indígena, em harmonia com a natureza, contudo, vem nos últimos tempos sendo assombrada pela ação de invasores não indígenas. De acordo com uma liderança da etnia, homens estão entrando na reserva indígena para derrubar árvores e roubar a madeira do território.
“Aqui estão acontecendo coisas gravíssimas. Estão entrando homens armados em nosso território sem a nossa permissão. São madeireiros que estão entrando em nossas terras para roubar madeira. E nós temos medo, porque não saímos armados, mas eles entram aqui no nosso território com armas”, revela.
E completa: “outro dia entraram e queriam matar um de nós. Invadem nossas terras, acampam dentro da nossa reserva e ficamos incapazes de chegar perto para agir porque já nos ameaçaram de morte antes. Nós estamos precisando muito de ajuda nesse sentido. Não temos noção de quem são essas pessoas porque temos medo de ir lá ver quem está invadindo nossa terra e roubando a madeira”.
Mais conflito por território
Em outra localidade da Zona Rural de Balsas, algumas famílias organizaram seus poucos pertences embaixo de um barracão, assentado no lugar onde um dia foram suas casas. Essas famílias, composta por senhoras idosas, na maioria, no ano de 2019, foram expulsas do local onde viviam há mais de 60 anos. Vivem uma vida simples, de agricultura de subsistência e tiveram que assistir suas casas e plantações serem destruídas por um trator. O fazendeiro que alega ser o verdadeiro dono das terras e é responsável pela expulsão dessas famílias, chegou a ir pessoalmente tratar com a comunidade sobre o assunto, impondo medo e ameaças aos mais vulneráveis.
Desde então, as famílias têm lutado na justiça do Maranhão para manter o direito às suas pequenas propriedades. A disputa judicial é por uma área de 8.400 hectares. Na ocasião da visita da equipe de reportagem da Eco Nordeste, as famílias assentadas contavam com um prazo de três dias para deixar o lugar, sob mais ameaças de demolição e violência.
“Vim morar nesse lugar ainda menina com os meus pais. Casei e criei os meus filhos nesse território. Nesse tempo, tudo aqui era muito bom. Um dia, chegou um homem que disse ser o dono da terra, desde então não tivemos mais paz. Depois que tivemos nossas casas destruídas, chegamos a ir para a cidade e lá ficamos por nove meses debaixo de uma tenda que construímos, até conseguirmos com a justiça para voltar para essa terra”, relembra dona Helena Silva (nome fictício).
E completa: “voltamos. Mas depois disso, não tivemos mais sossego. Eles ameaçam cortar nossa energia elétrica, soltam drones para reparar no que estamos fazendo e em uma dessas vezes vieram aqui e tocaram fogo em nossas barracas.”
Em um último acordo judicial, a Prefeitura interveio e ofereceu uma área urbana de 65 hectares nos arredores de Balsas para que essas famílias pudessem se instalar. A Justiça determinou também que essas pessoas recebessem um valor como indenização para reconstruir suas casas na nova área. Mas as perspectivas para essas famílias acostumadas com a lida no campo não eram as melhores.
“Sabemos que lá não tem a mesma facilidade de acesso à água que temos aqui. Vamos depender de carros-pipas e poços artesianos para plantar. Não teremos essa natureza e tranquilidade que tínhamos antes. A gente sabe que vai ser difícil se acostumar, mas aceitamos para não ter que viver sob ameaças até de morte”, afirma Helena.
Na data dada como prazo, as famílias deixaram o território e se mudaram para o espaço prometido pela Prefeitura. Ao chegar lá, foram recebidos com fogo e barricadas por outras pessoas que já estavam ocupando a área. Sequer conseguiram erguer seus barracões e perderam seus colchões e pertences com a chuva que caiu na madrugada. Seguem acampados atualmente em uma ocupação urbana, restrita ao espaço de suas barracas, sem área para plantar, longe de ocuparem os 65 hectares prometidos pela Prefeitura e sem melhores perspectivas de sobrevivência.
Iniciativas de soluções
Na contramão de histórias de denúncias e devastação, as próximas reportagens desta série abordarão iniciativas que buscam a valorização e conservação do bioma Cerrado, no Sul do Maranhão, como ações de reflorestamento e educação ambiental para mitigar os efeitos negativos da exploração do agronegócio na região.
Projeto ma.to.pi.ba.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa aponta experiências que têm dado certo na região, na linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts, e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.