Cotegipe, no Oeste da Bahia, que até então não aparecia sequer entre os dez maiores desmatadores, surgiu como líder em área total de vegetação derrubada no Cerrado em janeiro de 2024. O município está localizado no Matopiba, que concentrou mais da metade (64%) de todo o desmatamento do bioma no período, segundo informações do Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado) desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
Fernanda Ribeiro, pesquisadora do Ipam e coordenadora do SAD Cerrado, explica que o desmatamento pode estar migrando para Cotegipe com a abertura de novas áreas para produção de commodities agropecuárias. “É um município sem tanta tradição de altos níveis de desmatamento e de agricultura comparado a outros da região, acabamos suspeitando de um indicativo de expansão do agronegócio para novas áreas”, afirma.
A cidade de apenas 13.063 habitantes, segundo o último censo do IBGE (2022), pode estar se juntando ao rol de municípios do oeste baiano com atividades agrícolas já bem consolidadas e grande participação na destruição do Cerrado, como São Desidério, Cocos, Jaborandi, Correntina e Formosa do Rio Preto, todos integrantes do ranking de dez maiores desmatadores do Cerrado em 2023. Juntos, somente esses cinco municípios derrubaram mais de 100 mil hectares de vegetação nativa ao longo do ano passado.
O levantamento do Ipam identificou, em janeiro passado, a supressão de cerca de 2 mil hectares de vegetação nativa em Cotegipe, um aumento de 224% em relação à área perdida em dezembro. O número também vem crescendo ao longo dos anos: em todo o ano de 2021, o município desmatou apenas 51 hectares. Em 2022, subiu para 1.016 e em 2023 foram 7.753 hectares desmatados nos doze meses.
“Esses 2 mil hectares são até pouco. Existem autorizações de supressão de vegetação para áreas muito maiores nesta região”, é o que diz Martin Mayr, coordenador da Agência 10envolvimento, ONG que há 20 anos atua junto às comunidades tradicionais do Território de Identidade Bacia do Rio Grande, justamente onde está o município de Cotegipe e os outros grandes desmatadores do extremo oeste baiano.
Quem vive e trabalha em defesa do Cerrado vê as mudanças acontecendo. Lidando com problemas como conflitos fundiários e grilagem verde, Martin tem visto com preocupação essa migração do agronegócio, não só por causa do desmatamento mas também pela nova configuração da produção.
Segundo Martin, nos últimos anos muitas terras foram vendidas na região de Cotegipe e as fazendas que estão surgindo são para criação de gado e agricultura irrigada. A irrigação é o que surge de diferente do padrão local de agricultura de sequeiro, devido às consequências das mudanças climáticas e insuficiência de chuvas, e traz preocupações a respeito dos recursos hídricos e da sustentabilidade do uso das águas.
O trabalho de organizações como a Agência 10envolvimento é justamente tentar frear as ameaças aos biomas e às comunidades tradicionais que vêm com a motosserra a tiracolo. Martin lembra um exemplo antigo e emblemático no Matopiba: o conflito entre a Comunidade Cacimbinha, em Formosa do Rio Preto (BA), e o Condomínio Estrondo, um conjunto de fazendas de cultivo de grãos.
Do início dos anos 2000 para cá, os geraizeiros lutaram por seu território tradicional e, agora, com o apoio da Agência e também de organizações internacionais como o Greenpeace e Global Witness, está prestes a assinar um acordo que define a delimitação de áreas e os direitos de uso das terras.
Ferramentas ajudam no monitoramento
Assim como os dados do SAD Cerrado permitem observar a dinâmica do desmatamento com imagens de satélite, outras iniciativas também nos dão pistas sobre o que está acontecendo. É o caso das plataformas do Prodes Cerrado, do MapBiomas e do Tamo de Olho. Esta última é uma iniciativa que busca identificar casos de desmatamento que coincidem com a violação de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais no Cerrado, em especial no Matopiba. O Tô no Mapa é outra ferramenta que apoia essa luta, ao possibilitar que povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares realizem o automapeamento de seus territórios em um aplicativo de celular.
As imagens de satélite que mostram os pedaços de floresta derrubada, que viraram pasto ou monocultura, podem dizer ainda mais quando são cruzadas com informações sobre as Autorizações de Supressão de Vegetação (ASVs), por exemplo. Mas Fernanda, do Ipam, conta que ainda é difícil fazer esse tipo de análise porque “apesar de serem públicos, existe uma dificuldade enorme em acessar esses dados e com isso não dá para identificar o que é desmatamento legal do que é ilegal, ou mesmo se nas áreas que têm autorização a supressão está sendo feita com alguma ilegalidade”.
Até para compreender a efetividade das políticas públicas de proteção, conservação e desenvolvimento sustentável é difícil porque “para analisar seria necessário acessar os indicadores e os dados de impactos coletados pelos ministérios e outros órgãos de controle, o que também não temos”, complementa.
A Eco Nordeste mostrou recentemente que uma plataforma lançada em agosto de 2023, o Diário do Clima, vai facilitar esse tipo de levantamento ao reunir os Diários Oficiais de municípios brasileiros que contenham atos governamentais relativos a meio ambiente e questões climáticas.
Perfil fundiário é desafio para proteção
O Cerrado ainda não tem o mesmo apelo que a Amazônia quando se fala em mobilização social e política – nacional e internacional – para sua conservação. E traz ainda o desafio de ter a maior parte de sua área inserida em propriedades privadas: enquanto apenas 40% das terras amazônicas são privadas, no Cerrado esse número é de 80%, segundo Fernanda.
Ou seja, quase todo o bioma está à mercê do interesse econômico que só cresce no Matopiba e “por isso é muito mais difícil ter políticas de controle e combate ao desmatamento”, explica Fernanda. “O grande fator que vai ajudar é o cumprimento do Código Florestal e, além disso, é interessante também ter políticas de incentivo ao setor privado para que os produtores abram mão do direito de desmatar”, conclui.
O Código Florestal brasileiro determina aos proprietários de terras o direito de suprimir vegetação nativa em apenas 20% do total que possuam. Os dados de janeiro do SAD Cerrado mostram que as terras privadas acumularam a maior quantidade de alertas de desmatamento, participando em mais de 74% do total de floresta derrubada no bioma no mês, cerca de 38 mil hectares.
Outro alerta do levantamento no padrão do desmatamento é o impacto sobre as Unidades de Conservação, que responderam por 9% do desmatamento do Cerrado em janeiro, totalizando 5 mil hectares perdidos. As principais áreas protegidas atingidas foram as que estão localizadas no Matopiba, como o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, no Piauí. “Apesar de demarcadas no papel, algumas Unidades de Conservação não têm um plano de manejo regularizado. O maior problema é a falta de fiscalização e de planos de manejo eficientes que prevejam o combate e controle do desmatamento e dos incêndios também”, acrescenta Fernanda.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado (66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Projeto ma.to.pi.ba.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Agência Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts, e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.