Após ser cotado como ministro, parlamentar cearense assumiu secretaria dedicada à saúde indígena e fala sobre a articulação do movimento para participar do governo Lula e os principais desafios diante do cenário caótico deixado pela gestão anterior
Por Rose Serafim
Colaboradora
Pela primeira vez, em mais de 500 anos de história oficial e pouco mais de 30 de democracia, o Brasil tem indígenas ocupando os principais cargos de órgãos que estão diretamente ligados aos interesses deles. Demorou, mas o novo governo tem um Ministério dos Povos Originários, a renomeada Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), dentre outros espaços, chefiados por lideranças do movimento.
O advogado cearense Weibe Tapeba, licenciado do mandato como vereador de Caucaia, município da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), é a cabeça pensante da Sesai. Integrante da lista tríplice de possíveis nomes para o ministério, ele explica que nenhum desses espaços foi presenteado aos indígenas, mas são fruto de negociação e articulação política entre o movimento e o novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Weibe conta que os territórios indígenas ficaram totalmente desassistidos nos últimos quatro anos. Assim, quando o novo governo estabelece uma política aliada aos direitos dos povos originários, faz tanto um aceno para a comunidade internacional, preocupada com a pauta ambiental, quanto para a sociedade brasileira, de um restabelecimento das instituições. Confira a conversa da Eco Nordeste com Weibe Tapeba, realizada antes da visita presidencial ao povo Yanomami que constatou os tristes resultados do abandono às populações originárias nos últimos quatro anos.
Crianças em “situação de pele e osso”
No último sábado (21), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou Boa Vista (RR) para oferecer apoio aos indígenas do povo Yanomami. O mandatário foi acompanhado de oito ministros, incluindo Nisia Trindade (Saúde) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas). O titular da Sesai, Weibe Tapeba, também acompanhou.
Um dia antes da visita, o governo federal já havia decretado emergência de saúde pública no território Yanomami. Durante a passagem no local, Lula classificou a situação dos indígenas como “desumana”. Segundo Guajajara, indígenas adultos estavam “com peso de criança, e crianças em uma situação de pele e osso”. Somente em 2022, foram registradas 99 mortes de crianças impactadas pelo garimpo ilegal na região.
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Rose Serafim: Como o movimento recebeu, depois de quatro anos de política anti-indigenista do governo de Jair Bolsonaro (PL), um ministério e os principais cargos relacionados à área sob lideranças indígenas?
Weibe Tapeba: Essa construção, na realidade, foi do movimento. Estive na décima edição do acampamento Terra Livre, realizada em Brasília em abril de 2022, e o presidente Lula participou. Na ocasião, nós fizemos a defesa de que o momento era muito decisivo para democracia brasileira, para a sociedade brasileira e dissemos que não queríamos ajudá-lo somente com o voto, mas que desejávamos ajudá-lo a governar este país. O presidente Lula assumiu um compromisso público conosco de criar o Ministério dos Povos Indígenas e de assegurar a ocupação de espaços estratégicos da gestão pública por indígenas indicados pelo próprio movimento.
Depois de eleito, nos encontros que ele teve, anunciava a criação do Ministério. A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) resolveu apresentar uma lista tríplice com o nome da deputada federal eleita por São Paulo, Sônia Guajajara (PSol), que é ex-coordenadora da Apib; da então deputada federal Joênia Wapichana, que não foi reeleita; e com meu nome, indicado inclusive pelas organizações indígenas do Nordeste, Minas Gerais, Espírito Santo (Apoinme). Nós fizemos um debate de que seria muito importante que os nomes que foram indicados pelo movimento indígena do Brasil pudessem fazer uma composição. Quando o Lula definiu o nome da Sônia para assumir o Ministério dos Povos Indígenas, imediatamente nós já consensuamos a nossa indicação para Sesai e a indicação do nome da Joênia para a Funai.
Isso foi feito de forma muito articulada para assegurar a unidade do movimento sem criar fissura, sem criar ruptura, entendendo que o movimento indígena organizado em torno da Apib e suas organizações regionais, com adesão de lideranças tradicionais, é o melhor caminho para ajudar o Lula neste momento de reconstrução do País e da política indigenista brasileira.
Essas instituições foram geridas historicamente por não indígenas. Nós não tínhamos uma instância tão superior como um ministério, o que é um marco para a política indigenista brasileira. O presidente Lula entendeu que a criação do Ministério é até um aceno para a sociedade internacional, tendo em vista que o mundo passa por mudanças climáticas, tem um cenário de emergência climática e que os povos indígenas têm contribuído demais com essa pauta. A criação do Ministério, além de ser um espaço de promoção e defesa de direitos, de realizar essa articulação interministerial, intersetorial e interinstitucional, também carrega uma pauta muito importante nessa conjuntura internacional em que o Brasil se coloca novamente para reatar laços com a comunidade internacional.
A Funai, nesses últimos quatro anos de governo Bolsonaro, foi totalmente aparelhada por militares. Numa tentativa descabida, até rompendo com o seu papel constitucional de defender os territórios, de estimular a abertura de territórios indígenas para o agronegócio, a mineração, facilitar licenciamentos ambientais que são escusos, que não cumpriram com o que estabelece a legislação ambiental. Isso além de uma total desassistência de uma série de territórios; paralisação total de investimentos em territórios indígenas não homologados, e assim por diante.
Ter indígenas nesses três espaços estratégicos de gestão foi um compromisso do Lula, mas também é um aceno para a própria sociedade brasileira do restabelecimento da ordem pública, do respeito às instituições republicanas, mas sobretudo o compromisso com a promoção e a implementação dos direitos indígenas dentro dos territórios. Precisamos assegurar que essas principais políticas alcancem os territórios porque infelizmente, os territórios indígenas foram totalmente desassistidos nesses últimos anos.
RS: Na última gestão, muitas comunidades que vivem em territórios não demarcados acabaram ficando sem assistência específica em saúde. Como a Sesai pretende resolver isso?
WT: A assistência em saúde, realizada pelo Ministério da Saúde, por meio da Sesai, é uma assistência primária, feita na atenção básica dentro das comunidades indígenas. Existe a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, que não restringe atendimento para indígenas somente em contexto de área homologada, imposição criada nesse último governo.
Eu moro numa área que não está homologada e que tem uma estrutura de polo base, unidade de saúde, tem equipes multidisciplinares que foram treinadas pela Sesai, e que estão realizando normalmente o atendimento. Portanto, essa decisão de gestão foi descabida.
Nós estamos assumindo a tarefa de introduzir essa política nacional dos territórios, inclusive com a intenção de revogar alguns atos administrativos que reduzem direitos. Nós já iremos encaminhar a revogação desses atos e permitir a retomada dos investimentos nas áreas ocupadas pelos povos indígenas. Evidentemente que com muita segurança jurídica. Ninguém vai fazer investimento em retomada recente, que tem algum conflito fundiário, algum conflito na Justiça. Nós vamos fazer investimento nas áreas que já estão consolidadas em que a ocupação é mansa e pacífica.
Tem muitas áreas que precisam de saneamento ambiental, de investimento para o saneamento básico, para implantar o sistema de abastecimento d’água. Ainda existem muitas comunidades com falta de água para consumo humano, sendo abastecidas por carros-pipa.
Vai ser uma prioridade nossa assegurar esse restabelecimento dos investimentos em terras não homologadas, apresentar inclusive um novo arranjo administrativo pensando, por exemplo, nessa possibilidade de criação de um distrito de saúde no Estado do Rio Grande do Norte e no Estado do Piauí. Tentar ver um novo arranjo administrativo para cuidar da região Sul, que só tem um distrito sanitário para cuidar de três estados da federação.
Nós temos muitos desafios, de atender os povos indígenas em situação de isolamento voluntário e também o povo Yanomami que vive um drama humanitário, muitos deles morrendo de desnutrição, problema de verminose. A presença de mais de vinte mil garimpeiros naquela terra indígena gerou um cenário de colapso até no atendimento e na assistência da saúde, já que as unidades estão desabastecidas até mesmo de remédios básicos, de insumos básicos.
Nós tivemos uma reunião com a ministra Nísia Trindade (Saúde) e a nossa intenção é inclusive de decretar emergência sanitária por desassistência no território Yanomami, de acionar a Força Nacional de Saúde, para que, com do Ministério da Defesa, consiga entrar no território e levar esses insumos, medicamentos e alguns profissionais para reforçar as equipes da saúde indígena. E, se possível, a nossa intenção também é estabelecer e instituir nos próximos dias um gabinete de crise para cuidar do território Yanomami, estendendo também para o território Vale do Javari, que também passa por uma situação caótica com os povos de recente contato.
RS: O aperto no orçamento federal não vai acabar dificultando a implantação dessas políticas?
WT: A falta de orçamento impede, por exemplo, que a gente tenha uma agenda clara de regularização dos territórios indígenas, que é a prioridade do movimento indígena brasileiro. Existe um represamento de reivindicações de demarcações de territórios e, infelizmente, o governo brasileiro não dispõe dos recursos suficientes para pensar pelo menos na retomada de um número significativo de demarcações de terras indígenas.
Tanto é que no GT de transição do tema com os originários nós pensamos na instituição de um fundo que possa cumprir essa função de assegurar o financiamento de indenizações de benfeitorias em alguns territórios que estão prontos para serem demarcados. A ideia era, inclusive, uma possibilidade de receber financiamento da cooperação internacional, em algum momento da iniciativa privada, de multas de crimes ambientais para financiar parte dessas demarcações de territórios indígenas.
Nós tínhamos uma preocupação direta na saúde porque, na lei orçamentária anual enviada pelo presidente Bolsonaro, nós tivemos uma proposta de corte de 59% dos recursos da saúde indígena. Isso geraria uma desassistência quase que total nos territórios indígenas e o resultado certamente seria morte.
Mas, no grupo de transição, nós conversamos com a doutora Anísia Trindade, agora nossa ministra da Saúde. Ela assegurou que todo recurso da saúde foi recomposto e, de todo o orçamento da saúde indígena, é um compromisso dela recompor pelo menos os 59%. Aquela PEC do congelamento dos recursos para Saúde e Educação foi revogada pelo presidente Lula. Daí voltamos àquele critério dos repasses obrigatórios para a área da Saúde e da Educação com incremento nessas duas áreas principais. Mas, infelizmente, na área territorial, por enquanto, não temos o cenário promissor que dê conta dessa agenda de demarcação de territórios indígenas no Brasil que é uma prioridade absoluta para os povos do nosso País.
RS: E quanto à escolha de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima? Como foi recebida? Com quais outras pastas há expectativa de diálogo?
WT: Eu acredito que a indicação da ministra Marina Silva foi extremamente acertada pela sua experiência, pela sua defesa dessa temática na sua trajetória de vida, inclusive, e pelo compromisso que ela tem com a agenda indígena. Eu lembro que lá nos anos 2000, quando participei da marcha dos 500 anos, em Porto Seguro, na Bahia, a ministra Marina Silva, enquanto senadora, já militava. Lá, ela leu um poema belíssimo defendendo os direitos dos povos indígenas. No momento em que nós que estávamos lá fomos atacados, numa manifestação pacífica eela demonstrou capacidade de diálogo com lideranças indígenas.
Com a ministra Marina Silva, eu acho que há mais um aceno de restabelecimento da ordem pública na área ambiental. Infelizmente, nos últimos quatro anos, o discurso do ex-ministro Ricardo Sales prejudicou os nossos territórios. Houve um estímulo, vindo do alto escalão do governo, para que esses territórios indígenas fossem usados pelo agronegócio, a mineração foi estimulada. Hoje nós estamos vivendo um caos enraizado exatamente por conta desse estímulo que partiu do governo brasileiro. Por isso, acredito que a ministra Marina é fundamental nesse processo de reconstrução das políticas.
RS: Um Congresso mais conservador foi eleito em 2022. Pautas importantes, como a PL 490 e o Marco Temporal, no STF, podem voltar. Qual a expectativa quanto à relação com os parlamentares?
WT: Infelizmente a violação dos direitos civis no Brasil tem sido a tônica nos últimos anos. E mesmo nós entendendo que temos um governo aliado com os povos indígenas no Brasil, a luta não vai parar. A luta vai continuar porque no Congresso Nacional nós temos uma ala conservadora anti-indígena estruturada, principalmente pela bancada ruralista, e nós entendemos que muitas lutas ainda estão sendo travadas. Mas, nós acreditamos muito na organização do próprio movimento indígena do Brasil. Muito do que já tentaram passar no Congresso Nacional nós conseguimos reverter no âmbito do STF (Supremo Tribunal Federal).
Existe uma expectativa de que a questão envolvendo o recurso extraordinário do povo Xokleng, que tem repercussão geral em quase todos os territórios indígenas do Brasil, consigamos resolver logo no STF. Estamos otimistas. Existe a condição de o Supremo julgar improcedente essa teoria (Marco Temporal), e assegure o que a própria Constituição Federal garante, que é o direito originário sobre os territórios e que essa teoria restringe. Estamos otimistas de que o STF tem toda a condição de manter os direitos constitucionais de 1988 relacionados aos territórios originais ocupados pelos povos indígenas.
RS: Tratando especificamente do Ceará. Como fica o seu mandato de vereador agora e como o movimento avalia a criação de uma secretaria voltada a assuntos indígenas no Estado?
WT: Eu estou licenciado do cargo de vereador. Não renunciei ao cargo, pois vou assumir uma função pública. Quem assumiu foi Luiz Antônio, indígena do povo Anacé, que é do PT de Caucaia.
Essa questão da Secretaria dos Povos Indígenas foi um acordo, um compromisso assumido pelo governador Elmano de Freitas que, quando era deputado, era aliado do movimento indígena. Eu, por exemplo, já era a base dele. Inclusive eu havia recebido o convite para assumir essa Pasta, mas, a partir desse convite para assumir a Sesai, nós fizemos uma outra composição, indicamos um quadro muito importante de liderança aqui no Ceará, que é a Juliana Jenipapo Canindé, a Cacique Irê, que eu tenho certeza que fará um ótimo trabalho à frente desta Secretaria, que terá um papel fundamental de articular com as outras pastas do Estado para assegurar que as principais políticas do Estado também cheguem ao nosso território.
Não é possível a gente se manter em um Estado em que as principais políticas públicas não chegavam aos territórios. Esses equipamentos da proteção social, areninhas, brinquedotecas, brinquedopraças, centros de educação infantil não chegaram aos nossos territórios.
Com essa nova gestão do Elmano, nós acreditamos que a agenda indígena deve avançar também porque ele é um camarada que conhece profundamente a realidade e as reivindicações históricas dos povos no nosso Estado.