No primeiro plano, terra seca com torre de medição do lado esquerdo, barco ao lado direito, no segundo plano, a água do açude com a outra margem e céu com nuvens ao fundo
Em 2017, as águas do Rio São Francisco encontraram o Açude Boqueirão (Epitácio Pessoa), que abastece Campina Grande com menos de 3% de volume de água, o pior nível desde a sua fundação, em 1950 | Foto: Maristela Crispim

Por Márcia Dementshuk
Colaboradora

Campina Grande – PB. “A seca chega de fininho… É como uma infecção que começa sem dor; quando você a vê, já tomou seu corpo”, ilustra Carlos Galvão, pesquisador em Hidrologia do Semiárido, Hidrometeorologia e Gestão de Recursos Hídricos e professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

Antes de causar dores na população, a seca já atingiu a vegetação, os animais, as plantações, os barreiros. Quando alcança as famílias no campo, ainda não mostrou seu potencial devastador para os moradores das cidades maiores. Mas dependendo das condições climáticas, não há escape. A população de Campina Grande, cidade polo da região da Borborema, na Paraíba, vivenciou esse sufoco a partir de 2014, quando a seca confrontou uma população com hábitos de uso da água como se o recurso abundasse.

Naqueles anos, o esforço político providenciou águas longínquas, acelerando obras que trariam águas do Rio São Francisco por cerca de 220 Km em canais artificiais até encontrar a calha do Rio Paraíba, em Monteiro. Mas para o Açude Boqueirão (Epitácio Pessoa), que abastece Campina Grande, havia mais um pedaço a percorrer até que, em 2017, as águas do São Francisco encontraram o reservatório com menos de 3% de volume de água, o pior nível desde a sua fundação, em 1950.

Considera este conteúdo relevante? Apoie a Eco Nordeste e fortaleça o jornalismo de soluções independente e colaborativo!

Carlos Galvão solta, então, uma série de perguntas retóricas: “Não sabemos que os períodos de seca são cíclicos? Não conhecemos tecnologia para mitigar esses impactos? Vamos nos comportar da mesma maneira diante dos alertas de aumento da temperatura, em um cenário onde sofremos impactos causados pelas mudanças climáticas?”

O relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), já de 2022, ratificou o que pesquisadores que atuam no Semiárido vêm constatando a partir do tratamento e modelagem de séries de dados coletados desde a década de 1980. Nesta região os extremos se intensificarão: secas mais prolongadas e períodos de chuvas mais intensos, com ordem de magnitude maior: a frequência mudará com relação ao que ocorre hoje. “São dados de simulações, não podemos usar como uma afirmação”, alerta Carlos Galvão. O problema é que, na média, o volume de chuvas deverá ser menor, inclusive na região das nascentes do Rio São Francisco em Minas Gerais, o mesmo que socorreu os campinenses em 2017.

O interesse pelo comportamento dos ecossistemas na Paraíba em condições climáticas alteradas pelo aquecimento global tem reunido grupos de pesquisadores de disciplinas variadas. Em julho de 2021 esses grupos se estabeleceram em torno de um projeto socioambiental abrangente, o Rio Paraíba Integrado (Ripa), que conquistou o mérito científico pelo Programa Ecológico de Longa Duração (Peld), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e obteve financiamento do Governo do Estado da Paraíba, por meio da Fundação de Apoio à Pesquisa da Paraíba (Fapesq) para operar durante quatro anos.

O professor doutor José Etham Barbosa, da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), coordena um contingente intelectual formado por 79 pesquisadores, 51 alunos de graduação e pós-graduação, oriundos de 13 instituições de ensino e pesquisa, duas companhias, uma organização não governamental (ONG); além de seis pesquisadores e outras sete instituições internacionais. “O tema mudanças climáticas tem um problema central que é a integração de conhecimentos. É uma questão que não se resolve com conhecimentos fragmentados”, entende Etham Barbosa.

Uma das contribuições do Peld Ripa é agregar pesquisadores experientes com iniciantes. O Ripa integra uma rede interdisciplinar, com uma abordagem integrada e apenas dessa forma será possível propor soluções para problemas como desertificação, mudanças climáticas, ou influência da sociedade nos recursos naturais. Carlos Galvão, peça dessa engrenagem, salienta que “a Fapesq teve um papel significativo alocando recursos possibilitando a reunião dessas pessoas e a discussão sobre a Ecologia da Bacia do Rio Paraíba, incluindo mudanças climáticas”.

No Peld Ripa há pesquisadores analisando os ecossistemas aquáticos (açudes, estuário, o trecho perenizado do Rio Paraíba); ecossistemas terrestres (desde o Semiárido até o estuário); Climatologia e Meteorologia (como o clima interfere nesses ecossistemas da superfície e como a modificação da paisagemdesmatamento, uso do solo – interferem no clima); a sociedade humana – como o rio é impactado pelas obras, como se dá a captação de água, o manejo do solo, a formação de vilas, os agrupamentos urbanos e tantas outras modalidades sociais.

Pesquisa compartilhada

Com o avanço das tecnologias da informação e comunicação digitais, a dinâmica de pesquisa adquiriu um formato mais consistente e maior compartilhamento de informações. Por meio de equipamentos potentes e softwares com interfaces amistosas, os dados obtidos em campo pelos estudiosos podem ser acessados por interessados ao redor do mundo e aplicados metodologicamente.

Diferentemente do que acontecia há menos de uma década, quando a cultura do pesquisador o levava a reservar informações exclusivas em benefício do ineditismo, atualmente, a inovação está em publicar os dados e integrar essa comunidade intelectual de forma respeitosa, com referência devida aos créditos aos autores.

“A pesquisa transita em uma velocidade maior e com mais acurácia. Resultados podem ser comparados e testados; e trabalhar considerando mudanças climáticas exige essa agilidade e amplitude do espectro de informações”, salienta Etham Barbosa.

Etham considera este um dos grandes desafios do Peld Ripa. O projeto sugere uma experiência de troca; gerar conhecimento novo a partir da integração de grupos de pesquisa diferentes. A coordenação do projeto tem um papel importante de identificar problemas que precisem de diversos grupos de pesquisa, devido à sua complexidade.

O Peld Ripa pretende nivelar a acessibilidade dos dados de todos os pesquisadores, tal como preconiza o movimento mundial de “open science”. O comitê científico do Ripa estabeleceu um protocolo de compartilhamento de dados a partir do qual as boas práticas são aplicadas. Além de instituir uma cultura renovada, o protocolo proporciona confiança entre os grupos. Determina que os dados usados sejam devidamente creditados ao pesquisador ou ao grupo que o gerou e garante que o trabalho de coleta de dados em campo seja reconhecido.

Ações exigem governança

Conduzindo pesquisas em hidrologia na Paraíba há cerca de 40 anos, cujos dados compõe o arcabouço de informações do Peld Ripa, Carlos Galvão profere um discurso sobre resiliência às mudanças climáticas com uma simplicidade pueril: “Se quisermos nos adaptar para vivermos nas condições climáticas previstas, de aquecimento global e local, por conseguinte, em primeiro lugar temos que reduzir desmatamento e promover reflorestamento. Isso vai proteger o solo da erosão que a chuva mais intensa provoca. Erosão provoca desertificação e não há mais como cultivar alimento. Campina Grande precisa conservar a Bacia do Boqueirão (mata ciliar, nascentes) e controlar o consumo de água; terá que se adaptar. A preparação para a mudança climática é a mesma há anos: é ser sensato. É saber que os recursos são finitos”.

Integrantes do Peld Ripa, o professor da UFCG John Cunha e Rodolfo Nóbrega, pesquisador no Imperial College London, indicam que “é importante assessorar os tomadores de decisão na formulação das melhores estratégias para reabilitação das áreas susceptíveis à desertificação”. A comunidade científica sugere que “avaliar e distinguir os possíveis impactos das mudanças climáticas e das atividades humanas nessas áreas são o caminho para determinar a vulnerabilidade à desertificação dos ecossistemas secos globais”.

“Entretanto, a maioria das soluções propostas é fragmentada, projetada para responder aos impactos atuais ou riscos de curto prazo, focada mais no planejamento do que na implementação, sem a necessária visão holística e interdisciplinar. Esperamos que as pesquisas de longa duração, como as desenvolvidas no projeto Peld Rio Paraíba, permitam o desenvolvimento de abordagens interdisciplinares e transdisciplinares, apresentando soluções para as complexidades do mundo real, particularmente em contexto de mudanças climáticas”.

A proposta atual do Peld Ripa inclui dimensões que não são associadas apenas à Ecologia, como a governança. Os pesquisadores ressaltam que não há mais como tratar de pesquisa em mudanças climáticas sem considerar a governança da sociedade. As ações estão interligadas. Uma atitude aqui gera uma consequência acolá.

Sem Comentários ainda

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Pular para o conteúdo