Por Vanda Claudino-Sales
Geógrafa
Professora associada aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
vcs@ufc.br
Você já parou um dia para pensar: de onde vem essa paisagem natural que vemos no Nordeste? Como esse relevo que caracteriza essa região surgiu? A resposta para essas perguntas é complexa, mas palatável! A primeira coisa para perceber é que essa paisagem nem sempre esteve aí, e nem sempre foi tudo assim. Ela teve um momento inicial de formação, está evoluindo na atualidade e, no futuro, dará lugar a outros tipos de arranjos topográficos e geomorfológicos. A paisagem geomorfológica nada mais é do que uma sucessão de formas que se sobrepõem ao longo do tempo geológico. A nossa tarefa, enquanto pesquisadores desse universo, é decifrar essa história…
Divisão do supercontinente
O momento inicial da existência da atual paisagem nordestina data de mais ou menos 120 milhões de anos, quando começou o processo de divisão do supercontinente Pangea nessa porção do globo. A América do Sul e a África faziam parte da mesma massa continental, mas as forças geológicas, que não cessam de trabalhar, provocaram a formação de fossas profundas entre esses segmentos continentais (os chamados rifts), que começaram a rasgar o Pangea (Figura 1).
O terreno nos riftes afundou, enquanto as áreas laterais (os chamados “ombros” dos rifts) foram soerguidos, criando uma paisagem formada por sequência de áreas elevadas e setores deprimidos (figura 2), contando com centenas de quilômetros de extensão, ocupando assim o nordeste oriental (estados de Pernambuco, Alagoas, norte de Sergipe, leste dos estados da Paraíba e Rio Grande do Norte) e setentrional (oeste dos estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, Ceará, e segmento leste do Piauí). O nordeste ocidental (o meio-norte dos livros didáticos, que corresponde ao Piauí e Maranhão), bem como o nordeste meridional (sul de Sergipe e Bahia), têm outra história evolutiva, que será contada mais tarde, que fica para depois…
As forças geológicas que criaram os rifts, apesar de fortes, não conseguiram fazer a divisão dos continentes em um primeiro momento. Em função disso, os rifts, então, pararam de evoluir, e foram abortados. Mas a força da gravidade começou a transportar água e areias para o interior deles, e essas fossas profundas foram atulhadas de sedimentos, se transformando em bacias sedimentares. Assim, durante um intervalo de tempo de em torno de 20 milhões de anos, a paisagem no nordeste brasileiro era marcada pela presença de relevos elevados ladeados por superfícies sedimentares rebaixadas (Figura 3).
Mas as forças que tentavam dividir os continentes, e que continuaram atuando em outros setores, foram finalmente mais fortes, até que por volta de 100 milhões de anos atrás, a América do Sul foi separada da África, criando a zona costeira do nordeste brasileiro. Os esforços de separação foram suficientes também para soerguer as bacias sedimentares, que deixaram de ser rebaixadas e sofreram inversão de relevo.
A partir desse momento, a paisagem passou por relativa calmaria na movimentação das rochas e estruturas, e começou a ser atacada por processos de destruição dos volumes elevados a partir da ação do clima. As chuvas, o escoamento superficial das águas das chuvas, as temperaturas elevadas, os ventos, os rios, atacaram (e atacam) as rochas de alto a baixo, produzindo a erosão que foi reduzindo os relevos. Aqueles formados pelas rochas mais resistentes, como granitos e quartzos e arenitos antigos, não foram completamente erodidos, e representam hoje as serras sedimentares e relevos cristalinos montanhosos. As rochas cristalinas mais frágeis foram dissecadas e rebaixadas, criando a superfície de piso sob a qual andamos normalmente (a Superfície Sertaneja, aplainada).
Os materiais sedimentares resultantes dessa erosão foram depositados nos fundos de vales e na zona costeira. Assim se formaram as planícies fluviais e os tabuleiros costeiros, situados na borda do mar. Dessa forma, a zona costeira, que surgiu cristalina e elevada, virou sedimentar e rebaixada, com a sedimentação ocorrendo sobretudo a partir de 30 milhões de anos. Essa zona costeira fica dia a dia mais baixa, pois o assoalho oceânico a puxa para baixo. Em intervalos de tempo depois de 30 milhões de anos, no nordeste oriental, fluxos de magma empurraram ainda os relevos cristalinos para cima, resoerguendo o Planalto da Borborema, que hoje representa o relevo montanhoso de maior magnitude do nordeste oriental e setentrional.
Essa evolução toda, que levou em torno de 120 milhões de anos para ser processada em suas diversas etapas, aqui apresentadas de forma bem simplificada, é a responsável pela paisagem que caracteriza a maior parcela do nordeste brasileiro, como pode ser visto nas figuras 4, 5, 6 e 7.
É uma paisagem rica e diversa, formada por áreas elevadas sedimentares e cristalinas, áreas rebaixadas igualmente sedimentares e cristalinas, todas recortadas pelos rios e coroadas na fronteira com o Oceano Atlântico por faixas de praias, dunas, falésias, estuários, os quais evoluem em períodos bem mais recentes, de no máximo alguns milhares de anos, ditados por interações entre as dinâmicas marinhas e continentais.
Essas paisagens estão sofrendo hoje um intenso processo de degradação ambiental, por razões diversas, como a especulação imobiliária, o turismo de alto padrão, o agronegócio, a mineração e até mesmo a agricultura de subsistência sem apoio técnico devido. O resultado é a destruição da paisagem e a desterritorialização de grupos sociais como praianos, indígenas, quilombolas, pequenos agricultores, populações sem privilégios do ponto de vista social e econômico. Será que, após tantos milhões de anos de evolução, será esse o triste fim das paisagens naturais e, a partir daí, será esse o destino inexorável das populações mais simples?
Bibliografia
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