O Rio Beberibe e a resistência da ‘cidade’ mais preta de Pernambuco

Na parte central da imagem, uma árvore de grande porte. Ela tem um caule grosso e está repleta de folhas verdes e pequenas flores laranjas. Ao seu redor, tem um gradil também laranja, que a protege fisicamente da rua e das residências ao lado. A árvore se encontra em uma área urbana. Paralelamente a ela, a imagem mostra o asfalto cinza da pista e a passagem de veículos automotores, como carro e moto

Baobá centenário, conhecido como “barriguda”, no antigo território da Catimbolândia. Como existiam vários terreiros na região, é grande a possibilidade de a árvore ter sido plantada por algum adepto de religião de matriz africana. Recife – PE | Foto: Victor Moura

Por Victor Moura
Colaborador

Recife/Olinda (PE). No filme “O Auto da Compadecida”, os réus se mostram espantados ao encontrarem, na hora do julgamento, um Jesus preto. Mas para além dessa cena de racismo explícito, existe outra mais sutil, no momento em que João Grilo se refere ao diabo como catimbozeiro. Mas por que o diabo, um personagem do cristianismo, sempre acaba indo parar no terreiro? Associar as religiões de matriz africana a “coisa do demônio” é uma prática antiga no País.

O resultado são os intermináveis ataques contra o povo de axé, como o ocorrido no litoral sul de Pernambuco quando um terreiro foi incendiado, no primeiro dia de 2022. Ainda que o episódio não tenha derramado qualquer gota de sangue, trata-se de uma morte simbólica, que dialoga com o genocídio negro. Ao longo da história, as tentativas de apagamento da herança africana se mostraram ainda mais violentas em territórios que desembarcaram a escravidão. Nesses locais, a sobrevivência se deve e muito aos refúgios formados após a abolição, como a Pequena África no Rio de Janeiro, o Recôncavo na Bahia, e a Catimbolândia em Pernambuco.

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A expressão Catimbolândia nasceu como uma metáfora em referência à grande quantidade de terreiros na zona norte do Recife no início do século XX. Ela foi cunhada pela historiadora Isabel Guillen, no livro “Cultura Afro-descendente no Recife: Maracatus, Valentes e Catimbós”, publicado em 2007. Porém, durante a década de 1930, os jornais locais já chamavam esse espaço periférico de zona de catimbaus (catimbós), ou mesmo de bas-fond, expressão francesa que diz respeito ao lugar onde mora a ralé.

Dentre as “razões” para a má fama, a decisão de Tia Inês, uma mulher preta e nigeriana, de fundar o Ilê Obá Ogunté no povoado de Beberibe de Baixo, em 1875. A partir deste marco, nos anos seguintes, parte do povo de axé se desloca do centro da capital pernambucana para os “esconderijos” ao norte. Em sua tese de doutorado, o geógrafo Bruno Maia Halley identifica 35 terreiros na região, que formavam na época a Catimbolândia, a “cidade dos catimbozeiros”. Assim como macumbeiro, o termo catimbozeiro era usado no seu sentido genérico e pejorativo com a finalidade de estigmatizar praticantes de religiões não cristãs, como jurema, umbanda e candomblé. “Existia uma cidade do catimbó, uma cidade do Xangô, uma cidade do negro entre Recife e Olinda, às margens do Rio Beberibe. Ela se confrontava com os ideais da Veneza Americana, da cidade branca, cristã, burguesa, moderna e higienista”, diz o pesquisador.

Com a chegada da Lei Áurea, o Recife “afrancesou”, tentando apagar da sua memória os mais de 300 anos de passado escravista. Enquanto isso, a população recém-liberta se viu sem chão, obrigada a migrar para terras desvalorizadas, como a do Beberibe. “Os negros pertencem àqueles espaços menos proveitosos, menos estáveis, para ocupação humana. Isso é uma espécie de racismo ambiental. Já as terras mais enxutas, as mais planas, as mais próximas do Centro, essas ficavam nas mãos dos brancos”, explica. Assim, o negro foi criando seu próprio caminho, afastado do Vale do Capibaribe e da antiga Vila de Olinda, territórios marcadamente ligados ao senhores de engenho. Com a chegada das maxambombas (trens urbanos), esse caminho foi facilitado, levando à multiplicação de mocambos e terreiros no baixo curso do Rio Beberibe. O sociólogo Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala”, chegou a chamar esse espaço de “subárea do Recife inconfundivelmente africanoide”. A Catimbolândia começava a chamar atenção.

Um terreiro secular

Um homem idoso, de pele clara, usa um boné branco e uma máscara de proteção. Ele está sentado atrás de uma mesa com uma toalha branca, dentro de uma capela católica. A parede da capela é branca, com nichos em detalhes em azul onde estão dezenas de esculturas de santos católicos e símbolos associados à religião cristã

Babalorixá Manoel Papai, 80, dentro da capela do Sítio de Pai Adão (Terreiro Obá Ogunté). O lugar é a casa-matriz do candomblé no Estado. Recife-PE | Foto: Victor Moura

Manoel Papai, 80, babalorixá do Ilê Obá Ogunté há 38 anos, se orgulha em falar que o terreiro é hoje uma instituição cultural do Brasil. O Sítio de Pai Adão, como é mais conhecido, é a casa matriz do Xangô pernambucano, a denominação dada ao candomblé no Estado. Em 2018, o Ilê de tradição Nagô recebeu a proteção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o que fortaleceu a cultura negra na região. Manoel conta que três nações dominaram o território da antiga Catimbolândia: os Nagôs, os Jejes e os Xambás.

Mesmo tendo origens e tradições diferentes, por se tratarem de “coisa de preto”, acabaram se tornando alvo de controle e repressão. Dentro de uma capela, à frente de imagens sacras, ele fala sobre a importância do catolicismo para a sobrevivência do Xangô. “A Polícia, quando chegava ao terreiro, nos via cantando ladainha para Nossa Senhora, para Santo Antônio, para São João, e aí eles não mexiam”, diz. Ao longo do século XX, o sincretismo tornou-se estratégia de resistência ativa.

Buscando proteção e reconhecimento, os terreiros do baixo Beberibe não só abriram suas portas para a fé cristã como também para os médicos-psiquiatras. Na década de 1930, o Serviço de Higiene Mental funcionou como um aparelho de controle científico disposto a estudar a relação do “negro xangozeiro” com as psicopatologias.

Quem liderava o órgão era o psiquiatra Ulisses Pernambucano, primo de Gilberto Freyre. Na época, pais e mães de santo foram obrigados a passar pelo “exame de cabeça”. Manoel Papai recorda que a sua avó, mãe Lídia, se negou a fazer o exame e rebateu dizendo: “xangozeira sou, doida não”. Para continuar funcionando, as casas de culto tinham que se submeter a vigilância e constrangimentos.

Atraindo o olhar de intelectuais, a Catimbolândia é chamada a participar do 1° Congresso Afro-Brasileiro, realizado no Recife, em 1934. Na prática, o evento, já influenciado pela teoria da democracia racial, colocava o negro dentro da “caixinha do folclore”, sem discutir seus problemas reais. A partir de 1937, porém, o cenário mudou, e para pior. Com o golpe do Estado Novo, se iniciou uma perseguição às “seitas africanas”, o que resultou no fechamento completo dos terreiros da Catimbolândia. Sacerdotes tiveram de prestar contas na delegacia. Objetos sagrados foram confiscados. Quase dez anos de silenciamento. A ação foi iniciada pelo interventor federal em Pernambuco, Agamenon Magalhães, que ainda hoje é homenageado em uma das principais avenidas da capital. O Estado pernambucano nunca se desculpou pelos abusos cometidos contra o povo de axé.

Aquilombamento urbano

Dentro de uma sala pequena, um homem idoso, branco, de óculos, fala para duas mulheres, que escutam atentamente. À frente dos três, está uma boneca que representa uma mulher negra com as mãos levantadas. Ela veste uma blusa amarela. Tem lenço vermelho no cabelo, pulseiras e colares

Visitantes no Museu Severina Paraíso da Silva (Mãe Biu), o único dedicado exclusivamente ao culto de xangô (candomblé) em Pernambuco. Ele integra o Quilombo Urbano da Nação Xambá. Olinda – PE | Foto: Victor Moura

Vestido de branco, numa sexta-feira, Dia de Oxalá, Hildo Neto, 62, convida os três visitantes a conhecerem o único museu em Pernambuco dedicado a uma casa de Xangô. Como historiador da Nação Xambá, ele falou das regras pelas quais o terreiro foi submetido após sua reabertura na redemocratização. “Você não podia ter criança em certas horas. Se fizesse um toque que não estivesse no calendário, era motivo para ser fechado. E mesmo assim (seguindo as regras), a polícia vivia incomodando”, diz.

Resistir à opressão está no chão, nas paredes e na memória da Nação Xambá. Seu primeiro babalorixá, Artur Rosendo, se refugia na Catimbolândia depois de sobreviver a um dos mais traumáticos episódios de repressão étnica-religiosa do País: a “Quebra de Xangô”, que aconteceu em 1912, no Estado vizinho de Alagoas.

Em Pernambuco, Artur formou filhos de santo que ajudaram a perpetuar a tradição Xambá. De início, os filhos se deslocaram por vários “esconderijos”, até se firmarem em definitivo em São Benedito, bairro da periferia de Olinda, em 1951. Nesse ano, a ialorixá Mãe Biu, que hoje dá nome ao museu, consegue um terreno próprio para o Ilê Axé Oyá Meguê, situado a menos de 300 metros do Rio Beberibe. Caminhando pelos arredores da casa de culto, o que se observa atualmente são várias manifestações públicas de africanidade. O Xangô ganhando a rua.

Desde 2006, o território é reconhecido como quilombo urbano. “A gente se insere na visão mais atual do que é um quilombo: uma comunidade de origem africana que mantém vivos aspectos dessa comunidade. E aqui o que nos agrega é a religião”, explica. Hildo também conta que a casa tem servido de referência, não apenas para afro religiosos, mas para todos os moradores das localidades adjacentes. Durante a pandemia de Covid-19, o Ilê abriu suas portas, de maneira irrestrita, para a vacinação de adultos. Porém, muitos, boa parte evangélicos, optaram por se vacinar em pontos mais distantes. Já houve quem entrasse no terreiro repetindo a frase “sangue de Cristo tem poder”, em sinal de repulsa.

Em 2013, o Governo de Pernambuco inaugurou um terminal integrado de ônibus para conectar as comunidades de maior vulnerabilidade de Olinda a demais pontos da região metropolitana. O terminal, que fica nas imediações do quilombo, acabou recebendo o nome de Xambá, o que levou a uma série de reprovações. “Quando algumas pessoas começaram a entender o que era Xambá, até abaixo-assinado mandaram fazer para tirar o nome. E teve quem ouvisse coisas do tipo ‘fulana, o que é Xambá, hein?’ Aí a fulana ‘é o terreiro de macumba, de um negro safado chamado Ivo, que tem aqui atrás’ ”, relata o historiador.

Outro caso de repercussão, que envolveu uma casa de Xangô, ocorreu em 2018, quando puseram fogo na gameleira sagrada do Sítio de Pai de Adão. O babalorixá Manoel conta que se sentiu “como se estivesse perdendo uma pessoa da família”. A ação mostrou que nenhum terreiro está blindado do racismo religioso, mesmo dentro de um território ancestral que foi e continua sendo lar de pessoas majoritariamente pobres e pretas. Cortando a periferia de Recife e Olinda, duas cidades irmãs, os cursos d’água do Rio Beberibe são testemunhas da herança afro-brasileira que fincou raiz na antiga Catimbolândia, e que sobrevive apesar de tudo.

Cortejo de maracatu

Durante a noite, uma mulher negra rege as pessoas que estão atrás, e lhe acompanham em uma rua. Ao contrário da multidão desfocada, ela está em destaque na foto. Com uma baqueta de madeira na mão. A mulher também apita com intensidade. Ela veste roupas e turbante na cor branca, com detalhes em vermelho

Karen Aguiar, 21, jovem regente do Maracatu Leão Coroado, o mais antigo em atividades ininterruptas de Pernambuco. Na ativa desde 1863. Olinda – PE | Foto: Hugo Muniz

Sempre que chove forte, Karen Aguiar, de 21 anos, corre para proteger o acervo do Leão Coroado, o mais antigo maracatu em atividades ininterruptas do Brasil, na ativa desde 1863. “A gente bota uns tijolos, bota madeira, bota os tambores em cima, cobre com plástico, porque, se deixar no chão, quando chover, vai molhar tudo”, lamenta. A cada inverno, a água volta a bater no tornozelo.

A sede do maracatu fica próxima do Riacho Lava Tripas, um afluente do Rio Beberibe, cuja bacia hidrográfica é a mais urbanizada de Pernambuco. Ao longo do século XX, seus morros e alagados acolheram não apenas descendentes de negros livres, como também indígenas não aldeados e migrantes pobres vindos do interior. Sua ocupação desordenada, somada à falta de assistência do poder público, fez com que o risco ambiental e a miséria se tornassem um problema regular na vida dos moradores.

Durante a pandemia, conhecendo a vulnerabilidade da vizinhança, o Leão Coroado distribuiu cestas básicas, mesmo sem apoio institucional, “com a própria cara e peito”, como Karen gosta de dizer. Ela, que também é estudante de História, está à frente do maracatu há 3 anos, onde atua como administradora e regente do baque virado. São raríssimas as mulheres nessa posição de liderança.

Por conta disso, precisa reiteradamente afirmar sua autoridade e provar que tem conhecimento suficiente. Karen foi levada ao maracatu nação ainda muito cedo. Ela é neta do mestre Afonso, seu antecessor e um dos maiores nomes da cultura negra em Pernambuco. “Não estou dizendo que carregar o legado do meu avô é um fardo. E é também, sabe? Mas eu preciso da minha identidade. E depois que eu assumi o Leão Coroado, eu sinto que perdi totalmente. As pessoas estão me observando o tempo inteiro, e isso me incomoda muito”, diz. Onde quer que vá, comentam o fato dela ser jovem, mulher, “neta do mestre Afonso”. Mesmo assim, se dedica integralmente ao Leão, “não só em horário comercial”. Concilia as atividades culturais com as leituras da faculdade e o trabalho remunerado, que provém seu sustento.

Ainda muito cedo, aprendeu a lição mais valiosa dentro de um maracatu nação: que se trata mais de religião do que Carnaval. Ela conta que o Leão Coroado, que é de Nação Nagô, se constrói efetivamente nas suas obrigações religiosas, cumpridas todo dia 2 de novembro, Dia de Finados. A data não é por acaso. Isso porque a religiosidade do maracatu nação vem das calungas, no culto aos eguns, que são os espíritos dos ancestrais. Em Pernambuco, sabe-se que os primeiros maracatus nação foram fundados por pais e mães de santo, o que explica a relação do candomblé, aqui conhecido como Xangô, com esse que é considerado o primeiro ritmo afro do Brasil.

Apesar da sua longa história, o Leão Coroado nunca saiu da marginalidade. Em 2008, se tornou ponto de cultura, e com o subsídio federal conseguia se manter e tocar projetos na comunidade. Mas o apoio desapareceu em 2019 junto ao extinto Ministério da Cultura. Em Olinda, a atual regente critica o fato de o maracatu só fazer parte do turismo da cidade em três momentos: no Carnaval, na Semana da Consciência Negra e no Dia Estadual do Maracatu.

Em fevereiro de 2022, o dia estadual se tornou nacional. A data, 1° de agosto, é uma homenagem ao mestre Luís de França, que antecedeu o seu avô à frente do baque. Quando questionada, Karen diz não ligar para títulos simbólicos. Ela acredita que o investimento é a melhor forma de reconhecer uma expressão cultural. “A gente deixa os nossos mestres da cultura popular viverem de maneira miserável. Mestre que não tem onde morar, condições de ser manter. E aí, depois que morre, as instituições gostam de fazer homenagem. Mas quando o cara estava vivo, pouco importava”, reclama.

Nesses anos à frente do Leão, se viu forçada a amadurecer, tamanhas as dificuldades. “Com a própria cara e peito”, ela vem se desdobrando para dar mais dignidade ao maracatu, começando pelo chão que o acolhe. “Eu tenho fé que antes de morrer vou deixar essa sede pronta. Esse é um sonho que está sendo transmitido por gerações. Era o sonho de Luiz de França, passou a ser o sonho do meu avô, hoje é o sonho meu, sonho da minha mãe… até realizar”.

Samba faz escola

Uma mulher negra está sobre a calçada. Aparece centralizada na imagem, de frente, sorridente, com as mãos levantadas. Há carros estacionados na rua atrás dela. Ela parece estar a caminho de alguma festividade. Veste um vestido roxo, pulseiras e luvas brancas. Na mão direita, segura um leque. Na cabeça, um adereço carnavalesco

Eunice, 78, costureira, cabeleireira, manicure e baiana da agremiação Gigante do Samba, que completou 80 anos em 2022. A escola é a maior vencedora do Carnaval recifense. Recife – PE

Bastava Eunice sair na rua vestida de branco para os vizinhos comentarem: “vai pro Xangô, é?”. Se, além das vestes e guias tradicionais do Candomblé, ela estivesse com trança Nagô questionavam: “por que tu não tira essas porcarias da tua cabeça? Dá uma massagem nesse cabelo”. Eunice, hoje com 78 anos, se lembra bem do preconceito que sofria. Conheceu o Xangô pernambucano por meio da sua mãe, que seguia a religião.

Quando criança, trabalhou como lavadeira, batendo roupa em um afluente do Rio Beberibe. Já crescida, aprendeu o ofício de costureira, manicure, cabeleireira e trancista. Durante o Carnaval, virava a noite penteando integrantes das troças, blocos, caboclinhos e maracatus que desfilavam na região da antiga Catimbolândia.

Em Água Fria, um dos bairros mais negros do Recife, conheceu a cultura popular marcadamente pernambucana e um “intruso”: o samba. Eunice praticamente cresceu na quadra da Gigante do Samba, onde é baiana há cerca de 40 anos. A verde e branco da zona norte é a escola mais vitoriosa do Carnaval do Recife.

Mas, por supostamente representar um ritmo de fora, sempre teve menos apoio do poder público. Em maio de 2022, depois de completar 80 anos de história, a Gigante se tornou patrimônio vivo da cidade. Um gesto simbólico, visto com bons olhos pelos sambistas, mas que – até o momento – não muda a dura realidade em que as escolas estão inseridas. “O samba vive aqui no aperto. Acabar não acaba, não. Agora é uma luta. Tem que ter muita resistência”, conta Eunice.

Apesar de ser uma referência para a comunidade negra, as escolas de samba em Pernambuco são historicamente apontadas como “estrangeiras”. Vários intelectuais já se posicionaram contra o crescimento do samba no Estado, incluindo o sociólogo Gilberto Freyre que na década de 60 escreveu o manifesto “Recifense, sim, subcarioca, não!”. Havia um medo de que o Carnaval “genuinamente pernambucano” ficasse parecido com o do Rio de Janeiro, o que levou sambistas à marginalidade, sendo tratados como “traidores da terra”.

Mesmo com poucos recursos, a escola da zona norte sobreviveu, e nunca deixou de desfilar. Entre os componentes, existe um grande respeito pelas baianas, o que deixa Eunice feliz. O samba, mesmo sendo “estrangeiro”, sempre lhe fez companhia. Na memória, ela guarda a lembrança de carnavais e também de uma garotinha do bairro que vivia a visitá-la, dizendo: “Samba para eu ver, Nice. Samba para eu ver”. E ela sambava com prazer para a criança. No entanto, a mãe da garota, “clara da cor, mas não branca”, repreendia as idas da filha à casa de uma mulher negra. Eunice se lembra bem da mensagem que mandou: “Diga à sua mãe que tem branco na cadeia, tem branco marginal, tem branco nas drogas. Que negro não é pior do que branco, não”. Ainda hoje “Nice” fala com a garota, já crescida, que amava vê-la sambar.

De pele escura, ela já enfrentou o racismo nas mais diversas situações, até mesmo numa casa de Xangô, em um bairro de classe média da capital pernambucana. Como frequentadora, se sentia excluída por ser a única mulher negra em meio “às moças brancas, bonitas, com seus carrões”. Eunice diz que reconhecia o preconceito na forma como olhavam para ela.

Nos últimos anos, se mudou para um outro terreiro no bairro de Beberibe, homônimo ao rio, que vem ajudando a fortalecer sua fé. “Lugar que dá acolhimento, lugar que trata bem, lugar que não tem essas coisas (racismo). Tem gente branca? Tem. Tem poucos negros. Tem muita gente branca lá também. Mas eu não vejo ninguém olhando de lado, nem essa parte de cor”, diz.

Vacinada, ela tem voltado a participar dos eventos da Gigante do Samba. Como baiana, espera ir ao Carnaval no ano que vem, e também à celebração da Lavagem do Bonfim. Sempre que pode, Eunice vai a Salvador, a cidade mais negra fora da África. Quando criança, chegou a ser atendida pela Mãe Menininha do Gantois, uma das maiores yalorixás do País.

Recentemente, em Água Fria, onde mora, cedeu a parte de trás da residência para que a sobrinha abrisse uma casa de Xangô. O dia da inauguração foi 13 de maio, Dia dos Pretos Velhos, uma entidade da umbanda. Apesar da intolerância crescente na vizinhança, Eunice procura dar ouvidos aos tambores, e não aos preconceituosos que aparecem a cada esquina. “Eu devo a Deus e aos meus orixás”, diz sem medo de ser quem é.

Som de preto

Vistos de lado, dois homens negros estão sentados de frente um para o outro. Eles vestem roupas parecidas, bermudas brancas, camisas brancas com detalhes azuis e chapéu. Estão sentados em cadeiras de plástico, próximos a uma mesa, onde fazem uma refeição. Um cachorro branco se encontra deitado à direita da imagem. Atrás deles, um frondoso jardim

Waldir, 57, e Maia, 50, integrantes do Bloco Afro Lamento Negro. Ambos são “crias” de Peixinhos, um dos bairros mais negros e culturalmente ricos da periferia olindense. Olinda – PE | Foto: Victor Moura

O que pode acontecer quando um negro se vê no outro negro? No fim da década de 1980, na periferia de Olinda, um grupo de adolescentes dançava break, usava dreads, black power, e se vestia como os Panteras Negras americanos. Um desses garotos era Maia, músico e servidor público, hoje com 50 anos. Certo dia, recorda, ele e os amigos foram conhecer o Afoxé Alafin de Oyó, na região central de Olinda. Todos ficaram impressionados com a africanidade que emanava daquele lugar. Voltaram para Peixinhos, a favela onde moravam, dispostos a criar algo parecido. Nascia então, em 1987, o Bloco Afro Cultural Lamento Negro. Um grupo de percussão “misturador” de ritmos como afoxé, maracatu, samba-reggae e coco. Um coletivo formado por jovens negros de periferia em meio a um cenário de abandono social.

Waldir, músico de 57 anos, companheiro de luta e espiritualidade de Maia, conta que a década de 1990 era extremamente perigosa. O bairro de Peixinhos, que homenageia o tamanho dos peixes do Rio Beberibe, era conhecido como “bairro da morte”. Mas os moradores, por meio da cultura, lutavam para mudar essa realidade.

Certo dia, um tal de Francisco, mais conhecido como Chico Science, acaba aparecendo por lá. “Chico quando chega (à favela) vê aquela multidão de negros e negras tocando. Aí ele se encanta. Começa a colar junto com a gente. Tomar umas cachaças. Ir para jogo de futebol”, diz Maia, ao relembrar os encontros que precederam a criação do manguebeat.

E quem poderia imaginar que o sons da alfaia de maracatu, um instrumento ligado ao candomblé de rua, poderia fazer sucesso numa sociedade que nunca superou seu passado escravista? Saindo da favela para o mundo, o movimento mangue trouxe visibilidade para a cultura negra pernambucana.

No entanto, o embrião de tudo isso foi esquecido, numa espécie de epistemicídio. “Os documentários, os filmes, os livros, mal citam o Lamento Negro”, relata Maia, ao pontuar os apagamentos e deturpações da História. O verso “eu só quero andar nas ruas de Peixinhos”, da música “Um Passeio no Mundo Livre”, ainda hoje é lembrado pela comunidade. Mas é pouco.

Trinta anos depois do boom, andar por suas ruas é encontrar um vazio. Nenhuma referência ou símbolo que credite o território como berço do movimento mangue. As pessoas, principalmente as de fora, continuam sem saber. O Lamento já chegou a dar entrevistas. Mas não se sentia representado. “(A mídia) não colocava nada do que a gente falava. E isso é muito ruim porque quem vê pensa que a gente é um bloco de playboy, que não tem ideal, que não tem autoestima, que toca por hobby. Na verdade, o Lamento surgiu de uma resistência”, dizem os “irmãos” Maia e Waldir, e acrescentam que, apesar das dificuldades, o grupo percussivo nunca deixou de atuar.

Em 2006, após reivindicações da população, viram a criação do Nascedouro de Peixinhos. Um equipamento de valor social entre Recife e Olinda concebido com a finalidade de tirar jovens da vulnerabilidade e dar dignidade aos diversos coletivos que integram a região. O Lamento Negro foi um dos coletivos beneficiados. Porém, sendo de Olinda, do outro lado do Rio Beberibe, o grupo foi impedido de usar a estrutura do Nascedouro, que é administrada por Recife. “A gente está ocupando o espaço numa resistência fora do comum. Com a pressão de não ser um lugar nosso, e que, a qualquer momento, eles (o poder público) podem tirar a gente”, diz Waldir, que também reclama do abandono. Em maio de 2022, a Prefeitura de Olinda anunciou que vai construir um Compaz (Centro Comunitário da Paz) no Nascedouro de Peixinhos, desta vez administrado em conjunto pela cidade, por Recife e pelo Governo de Pernambuco.

Enquanto a tão sonhada transformação da realidade não chega, o Lamento, que conta atualmente com 60 integrantes, continua se virando. Sem sede, sem patrocínio, e muitas vezes tirando do próprio bolso. Mas de pé, como um baobá. Um movimento que vai além da música. Oferta cursos na favela, promove festividades, como a Noite do Turbante, e seminários, como o Candaces, dedicado à luta das mulheres pretas. Quando chega o Carnaval, a finalização do trabalho de um ano inteiro, correm atrás de roupas, de carro de som, de material para montar os instrumentos. São 35 anos de resistência cultural, tendo Ogum como patrono, trabalhando com os corpos, mãos e cabeças. Com o que se tem.

Durante a Folia de Momo, o Lamento se dispõe a tocar em vários lugares, mas é obrigação sair todos os anos onde tudo começou. “Meia noite, e o bairro inteiro atrás da gente. Pelos becos e vielas de Peixinhos, sem ter um tiro, um barulho, uma facada, uma briga, nada. A favela está do nosso lado. A favela é o Lamento Negro”, diz Maia, um dos fundadores, certo de que outras pessoas darão continuidade ao movimento quando ele já não puder.

Reparação histórica

Do mangue ao sertão, o lamento de centenas de milhares de negros trazidos à força para Pernambuco, de alguma forma, se transformou numa imensidão de histórias, crenças e manifestações culturais. Se Recife e Olinda possuem hoje um dos maiores carnavais do País, é muito graças à “cidade” negra fundada na periferia de seus territórios. Antes da abolição vir à tona e a Catimbolândia nascer, as matas e águas do Rio Beberibe já tinham abrigado o Quilombo do Catucá, o segundo maior do Estado, só atrás do Quilombo dos Palmares.

“O principal elo de comunicação entre Recife e Olinda até o fim do século XIX foi o Rio Beberibe. É preciso elaborar políticas públicas que visem a patrimonialização deste rio, no sentido da presença negra nas suas margens e meandros”, diz o geógrafo Bruno Maia Halley, pesquisador da bacia hidrográfica que conta com mais de 500 mil pessoas, em sua maioria, pessoas de cor e moradores de áreas favelizadas.

Foi nesta “cidade” negra que Ifatuniké, também conhecida como Tia Inês, fundou o primeiro terreiro do Estado, e deu início ao Xangô pernambucano. “A popularidade de Xangô (orixá) desde sempre é tão grande que ele terminou se tornando também o nome do culto”, relata Hildo, historiador da Nação Xambá. Na esteira deste acontecimento, em janeiro de 2022, a vereadora do Recife Liana Cirne (PT) propôs um projeto de lei que visa instituir o orixá como guardião da capital, e fazer do dia 30 de junho o “Dia de Xangô”. Ela justificou o projeto com base em questões raciais e culturais, e também por “isonomia de tratamento interreligioso”.

O Recife tem hoje quatro feriados ligados ao cristianismo e duas padroeiras: Nossa Senhora do Carmo, a oficial; e Nossa Senhora da Conceição, a afetiva. A pauta proposta pela vereadora, ainda em tramitação, teve muitas retaliações da bancada evangélica na Câmara Municipal. Nas redes sociais, políticos e cidadãos questionaram a laicidade do Estado e a importância de Xangô para o Recife, num evidente desconhecimento da história local.

No campo legislativo, o “empretecimento” das narrativas também tem ocorrido do outro lado do Beberibe, na cidade vizinha, Olinda. No fim de 2021, ela se tornou a primeira cidade do País a ter uma Lei proibindo homenagens públicas a escravocratas e pessoas que tenham cometido crimes contra a humanidade. A autoria foi do vereador Vinicius Castello (PT), que se inspirou no Projeto de Lei criado pela deputada estadual de São Paulo Érica Malunguinho (PSOL). Érica, por sua vez, é nascida na “cidade” negra que, no início do século XX, em Pernambuco, ficou conhecida como Catimbolândia. O sobrenome Malunguinho, aliás, é uma referência ao Quilombo do Catucá. Durante a escravidão, ele se expandiu do Rio Beberibe, entre Recife e Olinda, até a zona da mata norte, no município de Goiana. Ainda hoje o quilombo é lembrado por adeptos de religiões de matrizes africanas e indígenas.

Embora seja um avanço importante, a lacuna de conhecimento acerca da história e cultura afro-brasileira não vai ser resolvida apenas com legislação, haja vista que a Lei Nacional, de 2003, que determina a obrigatoriedade da temática, raramente é posta em prática. Debater sobre o que os livros não contam, nas diversas esferas da sociedade, é essencial no combate ao racismo, não apenas estrutural, como também religioso, epistêmico e ambiental.

Recife e Olinda, duas cidades irmãs fundadas num sistema colonial, precisam entender que seus patrimônios vão muito além dos centros históricos oficiais, que recebem turistas e estampam cartões-postais. A herança das cidades também é escrita nas margens, nos morros e alagados, nas favelas que já foram senzalas.

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