Esta é a terceira de uma série de matérias produzidas pela Eco Nordeste a partir da participação na Brazil Energy Conference, em Teresina

A expansão dos empreendimentos de energia renovável é fundamental para a transição energética e o combate à Crise Climática. No entanto, o processo tem revelado impactos sociais e ambientais profundos que atingem diretamente comunidades tradicionais e o meio ambiente no Nordeste. No município de Simões, na divisa do Piauí com Pernambuco, o Quilombo Serra dos Rafaéis vive na prática essa contradição: produz energia limpa, mas enfrenta tarifas abusivas, ausência de investimentos sociais e ambientais, além de um modelo que não reconhece suas necessidades nem sua história.
O drama do Quilombo foi revelado pelo seu líder José Antônio Nonato, conhecido como Zezito, durante a Brazil Energy Conference, realizada de 4 a 7 de junho, em Teresina (PI), com público diverso composto por estudantes, representantes de empresas dos setores públicos e privados, acadêmicos e lideranças comunitárias como o senhor Zezito.
O painel 28, “Planejamento territorial para energia renovável: Diretrizes para a implementação de projetos de energia renovável de baixo impacto social e ambiental”, teve, além de Zezito, nomes como Daniel Faggiano, do Instituto Maíra; Washington Rocha, do MapBiomas; Ieva Lazareviciute, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e Washington Bonfim, secretário de Planejamento do Estado do Piauí.
A moderação foi feita por Kassya Fernandes, também do Pnud, que ressaltou a importância do diálogo entre os diferentes atores envolvidos — comunidades locais, academia, sociedade civil e governos — para garantir que os projetos de energias renováveis promovam emprego, direitos e proteção ambiental, e minimizem os impactos negativos. “É fundamental garantir que os projetos dialoguem com os territórios onde se implantam, tragam desenvolvimento sustentável e respeitem as comunidades que vivem nesses espaços”, destacou.
Comunidade invisibilizada
José Antônio Nonato, o Zezito, liderança do Quilombo Serra dos Rafaéis, detalhou a realidade que contrasta com a promessa de energia limpa e desenvolvimento: “a energia está dentro do quilombo, mas o quilombo está sem energia. Produzimos energia no nosso território e pagamos R$ 1,60 por quilowatt na zona rural, um preço muito alto e injusto. A comunidade tem mais de 150 anos, está na sexta geração, mas as empresas que chegaram há dois anos não se envolvem com nossas necessidades reai.”
Zezito relatou ainda os conflitos provocados pela instalação do complexo eólico: “Estradas foram destruídas e nunca reparadas, geraram bloqueios e tensão. Não recebemos nenhuma ação social que beneficiasse a comunidade. Nossa saúde é precária, a educação é distante, e a agricultura familiar carece de equipamentos básicos, como tratores”.
O líder quilombola criticou a invisibilidade da comunidade para as empresas e o descaso do poder público: “é difícil cobrar melhorias porque a justiça e a segurança pública são inacessíveis para nós. A empresa chega como se a comunidade não existisse, sem respeito às leis e sem diálogo”.
Racismo estrutural
Daniel Faggiano, do Instituto Maíra, detalhou que essa invisibilidade é fruto de racismo estrutural e ambiental que marginaliza povos tradicionais, mesmo sendo eles os principais guardiões da biodiversidade: “a transição energética não é só técnica ou econômica, é uma questão de justiça. A consulta livre, prévia e informada deve ser respeitada não como uma burocracia, mas como estratégia inteligente para gestão de risco e fortalecimento da confiança social”.
Ele alertou que o descaso com as comunidades afeta os próprios projetos, paralisa obras e eleva custos: “as empresas têm prejuízo quando ignoram as comunidades. É preciso ações estruturadas, intersetoriais, baseadas em direitos, com participação real desde o início até o monitoramento”.
Daniel chamou a atenção para a necessidade de superar o racismo ambiental e reconhecer os povos tradicionais como protagonistas, não obstáculos, do desenvolvimento sustentável: “são eles que preservam a biodiversidade, mas continuam invisibilizados e sem voz”.
Impactos na Caatinga
Washington Rocha, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e coordenador do projeto MapBiomas, apresentou dados preocupantes sobre a relação entre energia renovável e desmatamento: “entre 2020 e 2024, quase 13 mil hectares foram desmatados no Brasil para a instalação de empreendimentos de energia renovável. Desses, 42% estão no bioma Caatinga, seguido por áreas de formação campestre”.
Ele alertou para a importância do planejamento ambiental rigoroso: “o zoneamento ecológico-econômico é essencial para priorizar áreas com menor impacto ambiental e social. O monitoramento por satélite e o licenciamento mais rigoroso são fundamentais para reduzir danos”.
Rocha também enfatizou a necessidade de considerar o impacto cumulativo dos vários projetos que se sobrepõem nos territórios e defendeu compensações ambientais e sociais adequadas: “compensações, como o recaatingamento, são fundamentais para recuperar áreas degradadas e reparar danos”.
Desenvolvimento e direitos locais
Ieva Lazareviciute, do Pnud, reforçou a importância de uma abordagem integrada: “projetos e processos não podem ser isolados. Eles precisam fazer parte de uma estratégia de desenvolvimento que contemple as demandas específicas das comunidades”.
Ela destacou a necessidade da escuta ativa, valorização dos saberes locais e a criação de mecanismos que permitam o aprendizado e a correção de rumos ao longo do tempo: “É fundamental que haja fiscalização e penalidades efetivas para o não cumprimento dos compromissos, porque multas financeiras para grandes empresas muitas vezes não resolvem os problemas reais das comunidades”, avaliou.
Ieva ressaltou que muitas vezes a responsabilidade das empresas deve ultrapassar o seu papel tradicional, ajudar a resolver questões públicas locais: “a empresa deve contribuir para fortalecer a comunidade, ir além do empreendimento.”
Limitações e desafios institucionais
Washington Bonfim, secretário de Planejamento do Piauí, expôs os dilemas institucionais que limitam o protagonismo do Estado diante da expansão das energias renováveis: “o sistema elétrico brasileiro é regulado pela União e o Estado tem pouco controle sobre onde e como investir. O mecanismo de financiamento pela tarifa tira a autonomia dos estados”.
Ele apontou o paradoxo enfrentado pelo Piauí, que produz energia renovável mas não recebe recursos proporcionais para investir em infraestrutura e serviços públicos: “estamos produzindo energia limpa, mas o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) não cresce na mesma proporção. O município não tem receita suficiente para a infraestrutura necessária, como por exemplo a construção e/ou melhoria de estradas”.
Bonfim destacou a necessidade de revisar a legislação federal para garantir uma remuneração justa aos estados produtores: “estamos discutindo a criação de um mecanismo parecido com royalties para compensar os impactos sociais e ambientais”.
Ele também ressaltou o potencial do Piauí para a indústria do hidrogênio verde, mas alertou para a necessidade de investimentos massivos na infraestrutura energética: “precisamos modernizar o grid e planejar o desenvolvimento industrial com essa matriz energética, para que o Estado possa crescer com sustentabilidade”.
O painel 28 evidenciou que a expansão das energias renováveis, embora essencial para o enfrentamento da emergência climática, precisa ser conduzida com profundo respeito aos direitos das comunidades tradicionais e ao meio ambiente. O caso do Quilombo Serra dos Rafaéis expõe os dilemas da justiça socioambiental que devem ser encarados para que a transição energética seja, de fato, sustentável e inclusiva.
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Aprofundamento exclusivo
Após o painel, a Eco Nordeste conversou com exclusividade com os painelistas para aprofundar as reflexões sobre o tema. A provocação lançada: “a que custo estamos implantando essa energia dita renovável?” guiou as respostas e trouxe à tona novos elementos sobre a urgência de uma transição energética com justiça territorial e ambiental.
Daniel Faggiano, diretor do Instituto Maíra, destacou a urgência de incorporar critérios sociais e ambientais mais rigorosos ao financiamento de projetos de transição energética. Segundo ele, isso só será possível com a responsabilização das instituições financeiras multilaterais que investem no setor: “se não houver equilíbrio, o aumento da temperatura global vai se intensificar. Nosso trabalho com bancos multilaterais busca justamente elevar salvaguardas, fazer com que eles compreendam sua responsabilidade nos impactos dessas obras”.
Faggiano se refere a instituições como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Mundial e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), que hoje estão entre os maiores financiadores de obras de infraestrutura e energia em países em desenvolvimento.
O Instituto Maíra monitora os aportes desses bancos em projetos executados no Brasil e em outros países da América Latina, com foco na análise de risco socioambiental e no diálogo técnico com os agentes financeiros.
“Em muitos casos, os impactos negativos dos projetos se perdem nas distâncias institucionais entre quem financia e quem executa. Nosso papel é justamente esse: alertar os bancos sobre os riscos reais que comunidades e biomas enfrentam, e pressioná-los a elevar suas exigências. Isso pode significar, por exemplo, a exigência de consulta prévia, a proibição de investimentos em áreas de conflito territorial ou a suspensão de recursos caso não haja cumprimento de salvaguardas”, explicou Faggiano.
Segundo ele, esse diálogo com os bancos tem se mostrado uma ferramenta eficaz de incidência política: “os bancos multilaterais não são neutros. Eles têm responsabilidade. E quando se comprometem com critérios mais justos, conseguem não só mitigar danos, como também induzir melhores práticas por parte das empresas e dos governos que recebem os recursos. É uma engrenagem invisível, mas que pode ser decisiva para tornar a transição energética realmente justa e sustentável”.

Para José Domingos dos Santos, o Zezito, do Quilombo Serra dos Rafaéis, a principal ação tem sido resistir e denunciar. Ele relata que a comunidade continua sendo ignorada pelas instituições públicas, apesar dos inúmeros documentos enviados: “a gente faz evento, participa de tudo quanto é debate, elabora relatório, manda protocolo, mas eles [empresários] não olham. A gente continua batendo na mesma tecla porque o que está acontecendo lá é realidade. O mato vai sumindo, os bichos vão sumindo, e a gente também”.
Com 109 famílias vivendo na comunidade, Zezito reforçou que a luta não é contra o progresso, mas contra a forma como ele tem sido imposto: “a gente quer que a energia venha, mas que venha com respeito, com diálogo. Que olhem pra gente como gente”.
Ieva Lazareviciute, do Pnud, defendeu que é necessário olhar os impactos com uma visão mais sistêmica: “nem todo desmatamento pode ser avaliado de forma absoluta. Às vezes, uma estrada desmata, mas também garante que os estudantes cheguem à escola. A questão é: há compensação? Há estratégia por trás? O licenciamento está considerando esses fatores?”.
Ela também destacou que o Piauí tem se estruturado melhor do que outros estados para lidar com esses desafios: “percebi um esforço concreto aqui, especialmente com os investimentos em educação, como as escolas integrais e a formação técnica para os jovens entrarem no mercado de trabalho. Isso é chave para que a transição energética beneficie, e não explore, as populações locais”.
Desmatamento e desertificação
Washington Rocha, representante do MapBiomas, trouxe dados alarmantes sobre o impacto ambiental da expansão de infraestruturas de energia no Nordeste. Segundo ele, embora o ranking apresentado no painel focasse especificamente os estados nordestinos, o bioma Caatinga já disputa o segundo lugar nacional entre os mais desmatados do País, alternando-se com o Cerrado e atrás apenas da Amazônia em determinados anos.
“A fronteira oeste da Caatinga, na interface com o Matopiba, é a que mais concentra focos de desmatamento. Há dois movimentos simultâneos: o avanço da fronteira agrícola em direção à Caatinga e, por outro lado, a expansão do Semiárido sobre áreas mais úmidas — que pode estar ligada à mudança climática”.
Rocha ainda chamou atenção para o crescimento da desertificação e para a fragilidade dos solos da região, em processo de degradação acelerada: “estamos identificando elementos que indicam crescimento de núcleos de desertificação. Ainda são dados preliminares, mas percebemos padrões que se repetem. O uso inadequado do solo e a ocupação desordenada, somados às mudanças climáticas, são vetores desse processo”.
Ele lembrou que o impacto das infraestruturas de energia renovável também está entre os vetores de pressão ambiental: “nossos dados indicam que a instalação de projetos de energia renovável já representa cerca de 7% a 8% do desmatamento na Caatinga. São números expressivos que precisam ser considerados nas políticas de licenciamento e compensação”.
Para evitar que se repita na região o que ocorreu com monoculturas devastadoras no passado – como o algodão, a cana-de-açúcar e o café -, Rocha defende que instrumentos de monitoramento ambiental, como os produzidos pelo MapBiomas, sejam usados para restringir acesso a crédito a empreendimentos irregulares: “hoje, bancos como o BNDES já utilizam os dados do MapBiomas para condicionar o crédito rural. Se o produtor desmata sem autorização ou em área imprópria, ele pode ter o financiamento negado. Essa é uma medida concreta de dissuasão”.
* A repórter acompanhou a Brazil Energy Conference a convite dos organizadores do evento