
Em Groaíras, no Norte do Ceará, a transformação vivida por Francisco Arcanjo da Silva dá o tom de uma mudança maior que vem tomando forma em diferentes regiões do Nordeste. Antes de presidir a Associação dos Trabalhadores na Extração e Produção de Cera de Carnaúba (ATEPCG) da cidade, Arcanjo enfrentava a insegurança e a informalidade que marcaram por décadas a cadeia de valor da carnaúba. “A gente não tinha controle de nada. Era cada um por si, sem segurança, sem renda justa. Hoje tudo mudou”, relembra.
Com a criação da associação, fundada em 1º de agosto de 2019, ele passou a liderar um processo coletivo que reorganizou a produção, qualificou operadores e criou novos postos de trabalho com qualidade e renda. Foi possível criar novas fontes de renda, como o artesanato com palha, que inclui ainda muitas mulheres que antes não estavam tão integradas à cadeia de valor. Sua história e a criação da ATEPCG são um ponto de partida para compreender como o trabalho coletivo na agricultura familiar, por meio do associativismo e do cooperativismo, redefine a lógica de trabalho em territórios historicamente marcados pela precariedade.
Com menos de seis anos de atuação, a ATEPCG conta com 430 pessoas associadas e ativas. Dentre essas, 183 atuam diretamente na extração da palha, 33 no corte e 15 na produção de cera. Esse movimento gira a economia local com um produto típico da região e do Estado que ajuda a conservar a biodiversidade e proteger o leito dos rios, com a melhoria do clima local e global.
O cooperativismo é hoje uma das maiores forças da economia social no Brasil. São 23,45 milhões de pessoas associadas a cooperativas, que representam 11,55% da população, com presença em quase 1.400 municípios. As cooperativas geram mais de 550 mil empregos diretos e movimentam R$ 692 bilhões por ano, segundo o Anuário do Cooperativismo Brasileiro 2024.
No Nordeste, essa realidade se intensifica em territórios historicamente marcados pelo trabalho sazonal e pela informalidade, como é o caso da cadeia de valor da carnaúba. O Ceará, por exemplo, conta com 122 cooperativas e 147.805 pessoas cooperadas. Outro exemplo é o Piauí, que reúne 89 cooperativas e 15.912 cooperadas. Já o Maranhão soma 65 cooperativas ativas, com 41.685 cooperadas, segundo o mesmo anuário.
Ampliação da renda

No Ceará, parte dessa transformação envolve o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que acompanha de perto o avanço da organização coletiva em territórios como o Litoral Norte e o Vale do Curu. Segundo José Wilson de Souza Gonçalves, superintendente do MDA no Estado, iniciativas como o Programa Mais Gestão vêm fortalecendo cooperativas e associações com capacitações, estrutura e apoio institucional, o que permite que trabalhadores antes invisibilizados passem a agregar valor à produção e ampliar suas rendas.
“Temos casos em que o preço da cera da carnaúba aumentou em até 1.500% após a organização da base produtiva e a conquista de equipamentos adequados”, destaca. o superintende. Ele relembra ainda que a cadeia da carnaúba, além de ocupar uma vasta área geográfica, é reconhecida como patrimônio cultural do Estado e possui enorme potencial econômico, especialmente quando impulsionada por estratégias de associativismo e fortalecimento local.
Esse movimento de fortalecimento do cooperativismo na cadeia da carnaúba também ganha corpo a partir da atuação articulada de instituições e projetos estratégicos, como o Carnaúba e Desenvolvimento Sustentável. Ele é fruto de uma parceria estratégica entre a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH e as empresas Brasil Ceras, Foncepi e Pontes, financiado pelo programa develoPPP do Ministério da Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).
Com a perspectiva de colaboração em mente, o projeto ainda soma esforços com parceiros como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o MDA, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Banco do Nordeste. Em conjunto, vem-se construindo uma transformação profunda na dinâmica de trabalho de comunidades extrativistas.
“O que a gente faz é garantir que as pessoas na base da cadeia possam ter as mesmas oportunidades que qualquer pequeno, médio ou grande produtor, com informação, estrutura e apoio para se organizarem. A organização do trabalho coletivo é o elo entre o trabalho digno e o desenvolvimento sustentável”, resume Bruno Filizola, assessor técnico da GIZ Brasil.
Com atuação desde 2021 e no início da sua segunda fase, o projeto Carnaúba e Desenvolvimento Sustentável implementa desenvolvimento de capacidades, mentorias, estudos e assessorias que fortalecem lideranças locais e ampliam oportunidades de renda em territórios onde, por muito tempo, reinou a precariedade.
Melhoria nas condições de trabalho

Ao todo, 1.473 pessoas ligadas à extração da carnaúba foram diretamente apoiadas. Houve acompanhamento de 11 produtores, quatro cooperativas, quatro associações e um sindicato, com orientações que vão desde contratos de arrendamento e comercialização até normas de segurança e uso de EPIs. Como resultado, 288 trabalhadores relataram melhorias nas condições de trabalho e renda, e 99 aplicaram os treinamentos recebidos para gerar renda na entressafra.
Esse fortalecimento técnico, aliado à valorização da articulação territorial, permite o surgimento de novas referências comunitárias, inclusive de lideranças femininas. É o caso da Associação Comunitária dos Cortadores de Palha de Carnaúba de Cariré, no Ceará, fundada agosto de 2022. Com 143 pessoas associadas, a entidade é presidida por Ana Hele de Paiva Melo, que transformou uma iniciativa familiar em uma rede de fortalecimento feminino.
Assim como seu Arcanjo, em Groaíras, Ana viu na associação uma forma de mudar, não só a própria realidade, mas a de outras mulheres da região. Hoje, em Cariré, chapéus e objetos produzidos com palha geram renda mesmo fora da safra, o que garante estabilidade e autonomia a dezenas de famílias.
Ainda que representem menos de 1% da população local, as mulheres organizadas na associação inspiram movimentos semelhantes em municípios vizinhos. Seu impacto vai além do número: reverbera em oficinas, feiras, geração de renda e ocupação de espaços de liderança por outras mulheres do Semiárido com um trabalho de grande impacto na cultura nacional e mundial, já que o artesanato com palha de carnaúba conquistou o mundo. “Quando a gente começou, era para sobreviver. Hoje, fazer artesanato é também construir sonhos para nossas famílias e comunidades”, conta Ana.
Experiências como a de Ana Hele ganham ainda mais força quando contam com o respaldo técnico necessário para se estruturarem e se sustentarem ao longo do tempo. É aí que entra o trabalho de Alexandre Vasconcelos, consultor jurídico do projeto. Só em 2024, seu apoio alcançou e beneficiou 1.329 pessoas em sete comunidades, com destaque para a Associação dos Trabalhadores na Extração e Produção de Cera de Carnaúba de Groaíras (727 pessoas apoiadas), a Associação Bonfim da Conceição (436 pessoas) e a Associação Comunitária dos Cortadores de Palha de Carnaúba de Cariré (143 pessoas).
O projeto Carnaúba e Desenvolvimento Sustentável também ofereceu consultoria especializada em contabilidade e direito do trabalho a três líderes de oito organizações, reforço técnico e jurídico que deve se estender por ao menos três meses antes e doze meses depois da criação formal de associações ou cooperativas.
Ele destaca que um dos maiores desafios é construir confiança com trabalhadores que temem perder benefícios sociais ao se formalizarem. “Quando a gente chega com informação e escuta, as pessoas começam a ver que o coletivo protege, organiza e valoriza o trabalho”, afirma Alexandre.
Impulso bem-vindo

Em outra comunidade rural de Cariré, Muquém de São Pedro, a força do artesanato que vem da cadeia da carnaúba também transformou a vida de Francisca das Chagas, conhecida como Chaguinha, e de outras mulheres da região. Tudo começou quando cinco artesãs da comunidade aceitaram participar de uma oficina oferecida organizada e ministrada pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Ceará (Sebrae-CE), que previa o desenvolvimento de uma coleção de bolsas de palha de carnaúba com acompanhamento técnico, design, capacitação em associativismo, precificação e gestão.
O curso, inicialmente planejado para um distrito vizinho, acabou sendo transferido para a comunidade de Chaguinha, após a desistência de participantes locais. Chaguinha viu ali a oportunidade de acolher essa ideia e ainda o grupo da sua região. O Sebrae se responsabilizou por todo o material — máquinas, tecidos, couros e peças-piloto — e assim deu-se início a uma relação de três anos de acompanhamento técnico.
Assim nasceu a Associação Mucaúba, formalizada em 2012 com apoio da Coordenadoria de Desenvolvimento do Artesanato (Ceart) e do Sebrae. De lá para cá, foram dezenas de formações em marketing, precificação e administração de planilhas, além do desenvolvimento de novas coleções — como a lançada em 2023.
Hoje a associação conta com sede própria, já teve projetos financiados pelo Fundo Elas mantém colaborações com marcas como Sazon, com a produção de peças que são distribuídas em supermercados.
A rede de mulheres também está presente na plataforma “Ache o Sol”, onde divulga seus produtos artesanais. O Sebrae, por meio da sua articulação regional, acompanha hoje 14 associações de artesanato na região, cinco delas atuantes com a palha de carnaúba, como destaca Suilany Teixeira, articuladora regional da instituição.
Agora, o novo plano das artesãs é implantar uma floresta de carnaúba em um terreno comunitário, para combinar o extrativismo à agricultura familiar sem agrotóxicos. “Esse sonho nasceu ali, quando a gente decidiu que não ia deixar esse projeto morrer”, resume Chaguinha.
Outra história de união que merece ser contada está em Piripiri, no Piauí, onde a força do cooperativismo se revela na atuação da Cooperativa Agrofamiliar dos Frutos da Terra (Coafrut), que já tem 12 anos de história e 46 pessoas cooperadas. Desde 2023, Emanuella de Sousa Pereira integra a diretoria da organização e vem liderando ações que aproximam a Coafrut de agricultores, mulheres e jovens do território. Uma das principais estratégias é o “Café com Palha” — encontros realizados nas comunidades que combinam escuta, oficinas práticas e orientações sobre políticas públicas como Bolsa Família e programas de apoio à agricultura familiar.
A iniciativa já resultou em oficinas de vassoura e de artesanato com palha, como bolsas e esteiras, que resgatam saberes tradicionais e fortalecem o vínculo entre cooperativa e base produtiva. “A gente está caminhando devagar, mas com o desejo e a certeza de que podemos avançar”, resume Emanuella.
Com apoio do Projeto Carnaúba e Desenvolvimento Sustentável e de parcerias como o Banco do Nordeste e a Secretarias Estaduais, a cooperativa trabalha para estruturar uma cadeia de valor agroextrativista em assentamentos com o uso de uma nova máquina de bater palha conseguida por meio de parcerias público-privadas. Com isso, espera-se ampliar o protagonismo de assentados e assentadas de reforma agrária com mais renda e a melhoria de toda a cadeia.
Diversificação de usos
Além dos territórios já citados, o projeto também tem impulsionado mudanças significativas em outras comunidades, junto a parceiros-chave, como a OIT em Campo Maior e Nazaré, no Piauí. Nessas regiões, o apoio técnico contribuiu para a criação da Cooperativa da Agricultura Familiar e Extrativismo de Campo Maior e Região (Coopafex) e da Associação dos Produtores Rurais de Nazaré. Antes, só se trabalhava a etapa do corte da palha, mas hoje, com a organização coletiva, passaram a trabalhar novas etapas, como a extração de pó e palha de carnaúba, de forma a agregar valor ao trabalho.
Hoje, o que antes era trabalho diário, solitário e mal remunerado se transforma em pertencimento e valorização. Trabalhadoras e trabalhadores passaram a ocupar todos os espaços da cadeia — da extração à comercialização — e, mais do que produzir, agora também decidem, aprendem e prosperam em conjunto. “As agricultoras sabem fazer muito, só faltava alguém acreditar e dar as condições certas. Quando a cooperativa chega junto, a gente transforma saber em renda e autonomia”, completa Emanuella.
Cadeia produtiva
Com uma cadeia que movimentou US$ 62 milhões em exportações em 2024, e que pode atingir US$ 100 milhões até 2026, a carnaúba não é apenas um ativo econômico: é um elo que conecta natureza, saberes tradicionais e força coletiva. O que era sazonal e vulnerável agora se transforma em continuidade, autonomia e desenvolvimento.
É nesse contexto que a trajetória de Francisco Arcanjo, iniciada no sertão de Groaíras, ganha ainda mais força. Fortalecido pelo apoio técnico e coletivo do projeto, por meio de várias figuras, como a Alexandre, ele se junta a lideranças como Ana Hele, em Cariré; e Emanuella, no Piauí — todos parte de uma rede que não para de crescer. Essa rede é costurada por histórias de organização, solidariedade e coragem para inovar sem renunciar às raízes.