Alerta no Dia Mundial da Água: poluição da Vale já chegou ao Rio São Francisco

Entre os dias 8 e 14 de março, a equipe da SOS Mata Atlântica revisitou a região até o Alto São Francisco para verificar a presença de rejeitos | Foto: Leo Barrilari / SOS Mata Atlântica

“É difícil imaginar a vida tendo alguma outra base que não a água. Nenhuma outra substância comum na superfície da Terra é líquida, e essa propriedade é necessária para a vida como conhecemos”. O professor dos curadores de Biologia na Universidade do Missouri (Saint Louis), Robert E. Ricklefs, deixa claro que, sem água, não há vida. Mas é bom lembrar que não se trata só de disponibilidade, mas de qualidade.

Em todo o Planeta, as cidades nasceram ao redor de mananciais, cresceram, os sufocaram, aterraram, canalizaram, poluíram. Hoje ainda há quem não perceba a relação disso com enchentes, alagamentos ou mesmo com a escassez de água potável. No Brasil, há em curso uma mega obra de transposição das águas do Rio São Francisco, o famoso Rio da Integração Nacional, para garantir segurança hídrica a populações dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Mas o que dizer quando as águas deste rio ainda nem chegaram, mas já foram poluídas pelos rejeitos da barragem da Vale rompida em Brumadinho?

“Os índices de qualidade dos rios do País, apontam que, um a um, eles vão perdendo lentamente sua capacidade de abrigar vida aquática, de abastecer a população e de promover saúde e lazer para a sociedade”. Essa é a principal conclusão do relatório “O retrato da qualidade da água nas bacias da Mata Atlântica”, que a Fundação SOS Mata Atlântica divulgou para este Dia Mundial da Água (22), no qual também apresenta o resultado de sua segunda expedição pelo Rio Paraopeba até o Alto São Francisco.

Entre os principais alertas feitos pela organização, está o fato de que o Rio São Francisco já encontra-se contaminado com rejeitos da Barragem do Córrego do Feijão, da Vale, rompida no dia 25 de janeiro, em Brumadinho (MG). Entre os dias 8 e 14 de março, a equipe da SOS Mata Atlântica revisitou a região até o Alto São Francisco para verificar a presença de rejeitos, visando dar algumas respostas à sociedade.

Dos 12 pontos analisados pela organização, nove estavam com condição ruim e três regular, o que torna o trecho a partir do Reservatório de Retiro Baixo, entre os municípios de Felixlândia e Pompeu até o Reservatório de Três Marias, no Alto São Francisco, com água imprópria para usos da população.

Nestes pontos, a turbidez estava acima dos limites legais definidos pela Resolução Nº 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), para qualidade da água doce superficial. Em alguns locais, este indicador chegou a ser verificado entre duas e seis vezes mais que o permitido pela resolução. Além disso, as concentrações de ferro, manganês, cromo e cobre também estavam acima dos limites máximos permitidos na legislação, o que evidencia o impacto da pluma de rejeitos de minério sobre o Alto São Francisco.

“Logo que fizemos nossa primeira expedição, diversos setores da sociedade nos perguntavam sobre o Rio São Francisco. Não tínhamos a intenção de voltar à região agora, mas diante dos questionamentos, decidimos analisar o impacto na região para informar a sociedade”, explicou Tiago Felix, biólogo e educador ambiental da Fundação SOS Mata Atlântica.

Os dados comprovam que o Reservatório de Retiro Baixo está segurando o maior volume dos rejeitos de minério que vêm sendo carreados pelo Paraopeba. Apesar das medidas tomadas no sentido de evitar que os rejeitos atinjam o São Francisco, os contaminantes mais finos estão ultrapassando o reservatório e descendo o rio e já são percebidos nas análises em padrões elevados.

Envolver para preservar

O Rio Cocó, em Fortaleza, teve a qualidade da água classificada como regular, em 2018 e em 2019 | Foto: Maristela Crispim

O relatório traz o balanço das análises feitas pelos voluntários da ONG em 103 municípios dos 17 estados da Mata Atlântica. Foram 278 pontos monitorados com 2.066 análises de indicadores internacionais que integram o Índice de Qualidade da Água (IQA), composto na metodologia desenvolvida pela SOS Mata Atlântica por 16 parâmetros físicos, químicos e biológicos. O trabalho foi realizado por 236 grupos de monitoramento formados por cidadãos representantes de diferentes instituições como escolas, universidades, comunidades tradicionais, ONGs, grupos informais, comunitários, escoteiros, órgãos públicos e empresas.

“Precisamos mudar a relação negativa e de distanciamento da sociedade com os rios. Nossos voluntários são exemplo de pessoas que estabeleceram nova conexão com o corpo d’água de sua região”, destacou Romilda Roncatti, coordenadora do projeto Observando os Rios da ONG.

No caso do Estado do Ceará, foram analisados oito mananciais: Rio Pacoti (Eusébio); em Fortaleza, Rio Ceará, Riacho Maceió, Açude Santo Anastácio, Riacho Parreão, Rio Cocó, Lagoa do Parangabussu; e, em Paracuru, Rio Curu. Todos foram considerados regulares, nas análises de 2018 e 2019.

Outros estados do Nordeste, como Alagoas, Bahia, Paraíba e Pernambuco tiveram avaliações ruins. Os dois rios que apresentaram avaliação boa em 2018 e caíram para regular em 2019 foram o Jaguaribe, em Natal; e o Sumaré, em Teresina. O único da região que apresentou condição boa foi o Poti, em Demerval Lobão (PI).

Dos 278 pontos de coleta de água monitorados, 207 (74,5%) apresentam qualidade regular. Em 49 pontos (17,6%) é ruim; e, em quatro pontos (1,4%) péssima. Somente 18 pontos (6,5%) apresentam qualidade boa na média do período de monitoramento e nenhum dos rios e corpos d’água tem qualidade ótima. A qualidade de água péssima e ruim obtida em 19% dos pontos monitorados evidencia que 53 pontos estão em rios indisponíveis – com água imprópria para usos – por conta da poluição e da precária condição ambiental das suas bacias hidrográficas.

“Os rios brasileiros estão por um triz. Seja por agressões geradas por grandes desastres ou por conta dos maus usos da água no dia a dia, decorrentes da falta de saneamento, da ocupação desordenada do solo nas cidades, por falta de florestas e matas ciliares que protegem os rios e nascentes e por uso indiscriminado de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Nossos rios estão sendo condenados pela falta de boa governança“, afirma Malu Ribeiro, assessora da Fundação SOS Mata Atlântica, especialista em água.

O dados divulgados para a sociedade neste Dia Mundial da Água foram produzidos pelo projeto Observando os Rios. A iniciativa conta com a participação de 3.500 voluntários que monitoraram 220 rios, de oito regiões hidrográficas do Brasil, entre março de 2018 e fevereiro de 2019, etapa que contou com o patrocínio da Ype e apoio da Coca-Cola Brasil. Em 2019, o projeto contará com patrocínio da Ype e apoio da Sompo.

Poucos avanços na gestão

Neste relatório, foi possível mensurar pela primeira vez, a evolução dos indicadores de qualidade da água em todos os 17 estados da Mata Atlântica, com base nas análises comparativas dos dados aferidos neste ciclo de monitoramento com o ciclo anterior, considerando os indicadores aferidos em 236 pontos fixos de coleta – e não o total de 278. Os índices regular (78% em 2018; e 75,4% em 2019) e ruim (17,4% em 2018 e 16,9% em 2019) não apresentaram grande diferença. Já os pontos péssimos pularam de zero para três e os considerados bons de 11 para 15.

“Rios e águas contaminadas são reflexo da ausência de instrumentos eficazes de planejamento, gestão e governança. Refletem a falta de saneamento ambiental, a ineficiência ou falência do modelo adotado, o desrespeito aos direitos humanos e o subdesenvolvimento”, afirmou Cesar Pegoraro, biólogo e educador ambiental da Fundação SOS Mata Atlântica.

Para reverter essa triste e vergonhosa realidade, o trabalho da Fundação SOS Mata Atlântica destaca exemplos de rios, riachos e nascentes que vêm sendo recuperados por suas comunidades, organizações e movimentos que transformam e se engajam na revitalização das águas.

Os 15 pontos de coleta com qualidade de água boa são: três no Espírito Santo (Lagoa dos Monsarás, em Linhares; no Córrego Cupido, em Sooretama; e no Rio Aribiri, em Vila Velha). Em Goiás, foram três no município de Água Limpa: Rio Piracanjuba; Córrego Água Limpa; e no Córrego Corumbá. No Mato grosso do Sul, dois pontos em Bonito, no Rio Formoso, e no Rio Perdido. No Paraná, um ponto no Rio Itaqui, em São José dos Pinhais. No Piauí, um ponto em Demerval Lobão, no Rio Poti. Dois pontos no Rio Grande do Sul, no Rio Rolante. E na cidade de São Paulo, foram três: no afluente da Billings (Parque Shangrilá), afluente do Ribeirão Caulim e Córrego Alcatrazes (Parque Cordeiro), localizados respectivamente nas sub-bacias Billings-Tamanduateí, Cotia-Guarapiranga e Pinheiros-Pirapora.

“Para melhorar este índice de qualidade boa, é fundamental que a Política Nacional de Recursos Hídricos seja implementada em todo território nacional, de forma descentralizada e participativa, por meio dos comitês de bacias hidrográficas e com todos os seus instrumentos de gestão funcionando plenamente”, destacou Marcelo Naufal, advogado e consultor jurídico da Fundação SOS Mata Atlântica.

Os rios que se mantiveram na condição boa ao longo de anos e continuados ciclos hidrológicos, comprovam a relação direta com a existência da floresta, de matas nativas e as áreas protegidas. O inverso também está demonstrado por meio da perda de qualidade da água, nos indicadores ruim e péssimo obtidos quando se desprotege nascentes, margens de rios e áreas de manancial, com o uso inadequado do solo e o desmatamento.

A precária condição ambiental dos principais rios da Mata Atlântica, essenciais para as atividades humanas, saúde pública e equilíbrio dos ecossistemas, é um alerta para a urgente necessidade de ações voltadas à segurança hídrica no Brasil. Água Limpa para todos é a causa que a Fundação SOS Mata Atlântica e os mais de 3.500 voluntários que realizam este monitoramento apontam para ser incluída na agenda de desenvolvimento do Brasil.

Dia Mundial da Água

A data é comemorada anualmente em 22 de março. Foi criada com o objetivo de alertar a população internacional sobre a importância da preservação da água para a sobrevivência de todos os ecossistemas do Planeta. O acesso à água e ao saneamento é reconhecido internacionalmente como um direito humano. Ainda assim, mais de 2 bilhões de pessoas não dispõem dos serviços mais básicos.

O último Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, intitulado “Não deixar ninguém para trás”, explora os sinais de exclusão e investiga formas de superar as desigualdades. O documento foi lançado na terça-feira (19), em Genebra, na Suíça, durante a 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos.

Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução que reconheceu “o direito à água potável segura e limpa e ao saneamento como um direito humano” e, em 2015, o direito humano ao saneamento foi reconhecido de forma explícita como um direito distinto.

Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, “Não deixar ninguém para trás”

Íntegra (em Inglês)

Resumo executivo (em Português)

Fatos e Dados (em Português)

Com informações da Fundação SOS Mata Atlântica e ONUBR

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