O Cânion do Poti é resultado de um longo processo evolutivo | Foto: Gustavo Fonseca
Vanda Claudino-Sales
Geógrafa
Professora associada aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
vcs@ufc.br
Há cerca de cem milhões de anos, a América do Sul e a África, que faziam parte do megacontinente Pangea, se dividiram. O Nordeste brasileiro foi a última parcela desse território a ser separado, e quase se individualiza como um continente à parte. Isso não ocorreu, mas os terrenos sofreram grandes esforços, foram deformados, falhados, fraturados.
A grande marca desse episódio de separação continental no Nordeste brasileiro foi o soerguimento dos terrenos no interior no continente: terrenos cristalinos e sedimentares foram lançados para cima, alçados a uma altitude talvez não muito superior a do topo dos relevos mais elevados da atualidade (cerca de mil metros). De la para cá, o relevo, as paisagens naturais, vêm evoluindo a partir da erosão dessa superfície soerguida, comandada por climas secos – isto é, a erosão não é muito intensa, pois falta água para “destruir” as rochas.
No segmento ocidental do Estado do Ceará, na zona que hoje corresponde à divisa com o Estado do Piauí, esse soerguimento colocou terrenos sedimentares (os arenitos da Bacia Sedimentar do Parnaíba, bem antigos, de cerca de 430 milhões de anos) e terrenos cristalinos também antigos (de 2,2 bilhões de anos, formado por gnaisses e outras rochas metamórficas) lado a lado (Figura 1).
Tão logo isso aconteceu, os rios, que são os maiores escultores da superfície da Terra, aproveitando desníveis topográficos na superfície soerguida, começaram a cavar seus vales. Dentre esses rios, estava o antigo Rio Poti, que nasce na Serra dos Cariris Novos, no município de Quiterianópolis, situado ao sul de Crateús (CE). Drena de sul para norte até a altura de Crateús, onde passa a fluir no sentido leste-oeste, para desaguar no Rio Parnaíba, em Teresina (PI). Ele tem uma extensão de aproximadamente 570 Km.
O Rio Poti começou a dissecar os terrenos sedimentares e cristalinos lá pelos idos de 90, 80 milhões de anos atrás. Vindo de sul para norte, ele encontrou uma falha geológica (área de ruptura entre rochas) nesses terrenos, encaixou-se na falha, e passou então a escoar de leste para oeste.
A grande surpresa que a natureza fez ao Rio Poti foi a seguinte: rapidamente ele “percebeu” que as rochas sedimentares eram mais resistentes ao processo de cavamento que as rochas cristalinas. Assim, o rio foi abrindo o vale com maior facilidade nos terrenos cristalinos, enquanto que nos terrenos sedimentares, resistentes, o vale que foi sendo aberto foi do tipo garganta (Figura 2).
Com o passar dos milhões de anos, o trabalho de cavamento do velho Rio Poti seguiu essa lógica: cavou mais no cristalino do que no sedimentar. Enquanto cavava no cristalino, o rio ia aprofundando o vale no sedimentar, para que o leito do rio estivesse sempre no mesmo nível de altura topográfica. Vários afluentes surgiram no lado do cristalino, e foram ajudando no processo de alargamento do vale. O resultado dessa longa história evolutiva foi que surgiu uma área deprimida no cristalino, enquanto o sedimentar foi ficando em ressalto (Figura 3).
Com a evolução no tempo desses processos erosivos, o resultado foi a formação do Cânion do Poti, o surgimento da Serra da Ibiapaba (que representa o contato desnivelado, o ressalto, entre cristalino e sedimentar) e a formação de uma ampla área rebaixada no sopé da Ibiapaba, que corresponde ao que chamamos de sertão.
A lógica da existência do Cânion do Poti, da Serra da Ibiapaba e do sertão (superfície de piso atual) é então uma só, a chamada “erosão diferencial”: os materiais mais resistentes ficaram pouco erodidos, na forma de garganta (cânion) ou elevação (Serra da Ibiapaba),e o material mais frágil ficou rebaixado e deprimido (o sertão) (Figura 4).
Assim termina a nossa história. De agora em diante, a tendência é que esse processo evolutivo avance, com recuo para oeste da Serra da Ibiapaba e eventual colapso das paredes do cânion no futuro (milhões de anos). Isso, se a sociedade não mudar o rumo da evolução. Temos que torcer para que nunca pensem em fazer uma barragem no rio à jusante do cânion, como aconteceu em situações semelhantes em outras áreas do mundo e no nosso próprio País. Vamos zelar pela sobrevivência do nosso cânion.
O mapinha elaborado a partir de dados topográficos mostra a situação atual (Figura 5).
Referências bibliográficas
Claudino-Sales, V. Megageormorfologia do Nordeste Setentrional Brasileiro. Revista de Geografia, 45-65, 2018
Claudino-Sales, V. Megageomorfologia do Estado do Ceará. São Paulo: Edições Nova, 2016
Barreto, L. L.; Costa L. R. Evolução geomorfológica e condicionantes morfoestruturais do cânion do Rio Poty – Nordeste do Brasil. Revista Brasileira de Geomorfologia 17-26, 2014.