Embora tenha nascido aqui, Marcos Rogério ainda era um menino de 16 anos quando despertou para entender sobre mim. “Amigos da Natureza” era o nome do projeto da Secretaria de Turismo de Correntina (BA), que levava crianças e adolescentes para atividades de educação ambiental do tipo limpar as margens dos rios. Ficou na cabeça e no coração a “vontade de lutar pelo meio ambiente”, mas também um questionamento: “Quando se fala da região Nordeste, no imaginário de todo mundo logo vem aquele estereótipo da seca. E eu ficava observando que a nossa região é tão rica em água. De onde vem essa água?”.

Ao estudar essa questão foi que ele me descobriu. Que havia debaixo da terra o tesouro que guardo dos céus e depois compartilho, nos momentos de precisão. Que o oeste da Bahia tirou mesmo a sorte grande na loteria dos bilhões de anos de formação geológica do chão em que pisa e também do que está invisível em suas profundezas. Que sou água, dou água, tenho raízes molhadas e Urucuia é o meu nome.

Sou um aquífero e graças a mim uma abundância de rios, córregos, lagoas, nascentes e todo tipo de ajuntamento de água existe de forma perene nesse Cerrado baiano. Porque eu absorvo a chuva, armazeno essa água para que ela rebrote na terra e alimento os rios nos períodos de seca. Segundo as medidas humanas, tenho mais de 140 mil km² de extensão subterrânea. Em maior parte, estou sob o oeste do Estado da Bahia, mas também me espalho pelo extremo norte de Minas Gerais, extremo leste de Goiás e de Tocantins e extremo sul do Piauí e do Maranhão.

Imagem aérea de rio serpenteando terreno com aglomerados de árvores ilhadas por vegetação rasteira
Curso d’água no Oeste Baiano é afloramento do aquífero Urucuia | Foto: Eduardo Cunha

Desta região baiana sobre a qual mais me interessa contar aqui, apresento-lhes esses importantes nomes: Carinhanha, Grande e Corrente, os três grandes rios. Eles integram a bacia hidrográfica do Rio São Francisco, o Velho Chico, grandioso bem comum brasileiro que habita o imaginário do povo, sobretudo nordestinos. O primeiro deles nasce em Minas Gerais, nas proximidades do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, assim batizado em homenagem a João Guimarães Rosa por sua obra-prima homônima. O Rio Carinhanha é o quinto maior afluente do Rio São Francisco. 

Já o Rio Grande nasce em São Desidério (BA) e atravessa 18 municípios do Oeste da Bahia, sendo os principais Barreiras e Luís Eduardo Magalhães. O seu maior afluente é o Rio Preto, que também tem um lugar batizado em sua homenagem, o município de Formosa do Rio Preto. Por fim, o Rio Corrente é formado por vários afluentes, como os rios Correntina ou Rio das Éguas, Formoso, Arrojado e Rio do Meio, este por sua vez formado pelos rios Santo Antônio e Guará.

Com esse emaranhado de rios, deu para ver que não exagerei ao falar da abundância de água existente no oeste da Bahia. Mas preciso dizer também que eu não trabalho sozinho e seu Juscelino Santos sabe disso: “O Cerrado em pé é quem dá sustentabilidade para essas águas”. Este senhor de 66 anos nasceu, se criou e vive na comunidade de Brejo Verde, município de Correntina, e leva a vida com o trabalho na roça e em atividades tradicionais de seu povo como a criação de gado “na solta” e a produção de rapadura, cachaça e açúcar.

Foto colorida de riacho que reflete a vegetação das margens, de um verde intenso tendo na beirada touceiras de capim e ao final da imagem um pedaço de céu azul e algumas nuvens
Brejo Verde, na Bahia, está sobre o aquífero Urucuia | Foto: Eduardo Cunha

A Associação de Preservação Ambiental do Brejo Verde, em consonância com a ideia expressada por Juscelino, tomou a iniciativa de proteger as nascentes de água existentes na localidade. Construíram 21 quilômetros de cerca, com estacas de madeira e quatro fiadas de arame, em volta de três dessas fontes. “Nada entra, a não ser um animal selvagem. Tivemos essa preocupação porque precisamos dessa água. Foi um trabalho árduo, a gente lutou muito para alcançar esse sonho. Isso é um dever de todo cidadão, ajudar a preservar a natureza. Tivemos ajuda da Secretaria de Meio Ambiente do município com alguns rolos de arame e o serviço foi todo voluntário, ninguém ganhou um centavo para executar esse trabalho”. 

Na beira da cerca, também são feitos aceiros para impedir que queimadas cheguem nas nascentes, onde inclusive vive outro importante personagem dessa história: o Buriti. Deixo que, novamente, Juscelino explique: “Esses buritis são a caixa d’água. Só se criam onde tem água. Se acaba a água, o buriti morre”. Quem vai até as nascentes vê isso mesmo, os buritis enraizados meio na terra meio na água, e de longe dão pista aos sedentos da direção aonde ir para encontrar alívio. 

Essa espécie de palmeira nativa, junto com muitas outras companheiras do reino vegetal que compõem o bioma Cerrado, são minhas aliadas no equilíbrio das águas. Elas auxiliam na absorção e penetração da chuva no solo, portanto, se essa vegetação sumir eu também estarei sob ameaça. Na verdade, já estou, porque os níveis de desmatamento e exploração das águas no oeste da Bahia só crescem, por conta do agronegócio, e a destruição chegou perto de Juscelino: “Se a gente não resistisse, não tinha mais nem água para beber, porque tinha inclusive um projeto para abrir dois poços artesianos nas cabeceiras do rio, para plantio de pasto, de eucalipto, pinho e criatório de peixes”.

Sinto-me encurralado. Sugam as minhas reservas e eliminam as árvores que trazem a água até mim. Ainda por cima, com as mudanças climáticas a chuva também está diminuindo. Estou como um balde furado, mesmo que entre um pouco de água, não ficarei mais inteiro outra vez. Dia após dia, o povo que vive aqui testemunha a morte de mais algum curso d’água. “Eu conheço ali para baixo um rio que tem por nome São José. De lá para cá tinham seis nascentes que eu vi com água e hoje não existem mais. Da barra do Rio São José até aqui o único córrego que ainda tem água correndo é o da nossa comunidade”, conta Juscelino.

Irrigação para o agronegócio prejudica
as águas subterrâneas e superficiais

Foto colorida do campo com extensa estrutura de irrigação chamada de pivô central separando área plantada de soja e terreno sendo preparado para plantio
Pivôs centrais de irrigação competem com abastecimento público de água | Foto: Eduardo Cunha

Uma pesquisa financiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia entre 2012 e 2016 mostrou que houve um rebaixamento do nível das águas e problemas com redução de vazão do Aquífero Urucuia no Oeste da Bahia. O estudo comparou as vazões de antes da década de 1980, quando o agronegócio ainda não havia se instalado na região, e depois da década de 1980. É comum escutar entre os habitantes do Oeste baiano relatos sobre a percepção da diminuição do volume de água nos rios, o que reflete empiricamente dados como esse.

O Oeste da Bahia representa a porção do Estado que integra o Matopiba. Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

Especialistas defendem que a diminuição das chuvas no Oeste da Bahia não são suficientes para explicar as diferenças de vazão de água no Urucuia. O principal motivo apontado é a irrigação das monoculturas. Em imagens de satélite do município de Luís Eduardo Magalhães, um dos principais produtores de grãos, é possível ver, por exemplo, uma grande quantidade de áreas circulares desmatadas, onde instalam-se os pivôs de irrigação.

Em novembro de 2023, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) lançou o Mapeamento Atualizado da Agricultura Irrigada por Pivôs Centrais no Brasil. Segundo o levantamento, o Estado da Bahia está entre os seis que concentram 92,5% da área equipada com pivôs centrais no País, em hectares, assumindo 15,3% do total. As cidades de São Desidério e Barreiras ocupam o quarto e quinto lugar entre os municípios com maiores áreas equipadas com essas estruturas, com 56,6 mil e 48,2 mil hectares, respectivamente.

Outro levantamento feito pela Agência Pública mostrou que apenas 18 grupos do agronegócio possuem outorgas concedidas pelo órgão ambiental da Bahia, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), para consumir gratuitamente 1,8 bilhão de litros de água por dia, um volume capaz de abastecer 11 milhões de pessoas. Os maiores outorgantes do Estado são empresários ligados à Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba) e à Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa).

A Aiba também já realizou seus próprios estudos sobre o potencial e a gestão dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos no Aquífero Urucuia e nas três bacias hidrográficas do Oeste da Bahia. Os representantes do agronegócio defendem que há equívocos nos dados e debates sobre os recursos hídricos na região, inclusive sobre a contribuição dos rios no volume total da vazão do São Francisco e a ameaça que o agronegócio representa. Desde julho de 2024, a Eco Nordeste tenta obter respostas da Associação mas os questionamentos enviados não foram respondidos.

Não se pode esquecer que a questão da exploração das águas é um assunto intimamente ligado ao problema do desmatamento, pois sem a cobertura vegetal do Cerrado o impacto das chuvas repercute no escoamento dos solos para os vales dos rios e, consequentemente, no assoreamento dos cursos d’água. O desmatamento ilegal e as Autorizações para Supressão de Vegetação (ASV) fazem do Matopiba o protagonista da perda de vegetação do Cerrado, que em 2023 avançou em 60%.

Em nota à imprensa, o Inema informou que uma das ações do Estado para agir frente a isso foi a elaboração do Programa Pacto pelo Cerrado, que entre outras ações prevê campanhas de fiscalização de desmatamento ilegal e do cumprimento das autorizações de supressão de vegetação nativa. Apesar dos dados de 2023, o Inema afirma que “existe uma redução de aproximadamente 90% nas Autorizações para Supressão de Vegetação (ASV) no período de 2022 até julho de 2024”. Segundo o órgão, mudanças na legislação ambiental também estão previstas, a principal sendo a construção do Plano Estadual do Meio Ambiente.

Em reportagem anterior, a Eco Nordeste contou como a grilagem de terras pelo agronegócio está afetando as comunidades tradicionais do Cerrado baiano. Apresentamos as histórias de pequenos criadores de gado nos fundos e fechos de pasto, que deixaram clara a preocupação, não só com a perda dos territórios, mas das águas também. Ao tomarem as áreas, os grileiros derrubam ou queimam a vegetação, destroem as veredas e, portanto, as fontes de água. 

Dernevaldo Soares, da Associação Vereda da Felicidade, explica: “Nós somos leigos mas sabemos que tirando a vegetação natural do lugar a água vai secar e também vai diminuir as chuvas. Nós já estamos sofrendo na pele porque essas águas do Cerrado descem nos vales e abastecem nossos rios. Nossos canais, por consequência da devastação do agronegócio, do desmatamento e bombeamento de poços artesianos, estão secando e muitos dos nossos companheiros trabalhadores já não conseguem plantar porque a água não chega mais nos córregos”.

ma.to.pi.ba

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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