Uma resenha de “Do Sertão ao Planalto”, livro recém-publicado pelo economista Antonio Rocha Magalhães exclusiva para Eco Nordeste
Nestes anos difíceis de pandemia, resolvi escrever um livro para resgatar a memória da minha vida no sertão de Canindé. Acabei indo mais longe e tratei também do que ocorreu depois em Fortaleza, Brasília e mundo afora. Foram mais de 800 páginas, mais um conjunto de fotografias para ilustrar o texto.
Penso que a experiência valeu a pena. Consegui entender um pouco sobre a vida dos ancestrais, de ambos os lados. Percebi quão pequenas eram as oportunidades de casamento, o que explica as contínuas uniões dentro da mesma família e os casos irregulares, onde homens brancos tomavam mulheres indígenas e com elas constituíam família.
Crescer em uma pequena fazenda, perto da cidade, foi uma experiência muito boa. A distância entre nós e a classe dos que não tinham terra, que eram trabalhadores rurais em terras alheias, era menor do que a distância que havia entre nós e os comerciantes mais ricos da cidade. Outra forma de dizer isso é que, no ambiente local, não havia muita distância social entre as pessoas.
A fazenda do meu pai foi tomada por obras públicas, que reduziram em 80% o seu tamanho. O Rio Canindé nos separava da cidade e, quando tinha cheias, ficávamos isolados. Na maior parte do inverno, quero dizer, da estação de chuvas, a água corria e tínhamos de atravessar o rio, às vezes a nado, para ir à escola, à missa ou ao comércio.
Hoje, com as construções de muitos açudes a montante, corre pouca água no rio. De qualquer forma, o açude público construído pelo Governo em Canindé, na década de 1950, desviou o rio, que antes passava atrás da nossa casa e agora passa à frente da casa.
O livro relata aspectos da vida em Canindé, na década de 1950, vista pelos olhos de uma criança: a escola, o comércio, a religiosidade, a relação familiar. A separação da família e a mudança para Fortaleza é um capítulo à parte. Durante esse período, a sobrevivência foi muitas vezes ameaçada. Isso corresponde aos anos de formação, tanto sob o aspecto pessoal como formal.
Tem o retorno ao Semiárido, com o início do trabalho nos Inhamuns cearenses. Depois, a grande viagem rumo ao Planalto Central, onde se deu o amadurecimento profissional ao lado da formação de uma família própria. Quem deseja estudar aspectos nem sempre lembrados do planejamento governamental naquela época pode beneficiar-se da leitura deste livro.
O retorno ao Ceará ocorre em nova situação, quando o personagem principal do livro assume a Secretaria de Planejamento do Estado do Ceará, em 1987. Como um dos arquitetos da nova política governamental, foi possível sugerir muitas inovações que acabaram sendo incorporadas pelo novo Governo das Mudanças.
Em Canindé, a construção da imponente Praça dos Romeiros se destaca como obra importante que reuniu o programa de investimentos do Governo do Ceará, a política governamental de resposta à seca que assolava o Nordeste naquele ano e a participação da comunidade.
De volta a Brasília, no fim de 1980, vieram novos desafios. A passagem pelo setor privado, a colaboração com o terceiro setor (não governamental) e o trabalho no Banco Mundial, supervisionando projetos de desenvolvimento no País, preencheram a agenda desse período. Esse trabalho permitiu percorrer todo o País, incluindo os interiores mais distantes. Antes, a continuação de estudos de pós-graduação, em São Paulo, e o trabalho em área acadêmica nos Estados Unidos, formaram parte de outro capítulo importante.
O personagem do livro estava destinado também a ter um ativo papel na comunidade científica internacional, sendo uma das primeiras pessoas no Brasil a levantar a questão das Mudanças Climáticas. Participante desde o início do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, criado pelas Nações Unidas, ele pôde levar a experiência brasileira e ao mesmo tempo trazer a contribuição da comunidade científica não especificamente ligada à questão do clima.
Na época, esse era um tópico privativo dos meteorologistas, por falta de interesse geral. O IPCC funcionou com um abridor de portas mundo afora, tanto na Europa como na América do Norte e em outras partes do mundo. Tudo isso levou a várias publicações de artigos e capítulos de livros na Europa e nos Estados Unidos.
Um dos últimos livros publicados, também traduzido em Português, foi sobre a questão de políticas modernas voltadas para o combate a secas no Brasil. Em toda essa trajetória, a questão do clima foi um aspecto específico que não escondeu a contribuição para temas mais gerais do desenvolvimento sustentável e do planejamento.
No fim, o autor do livro faz uma análise sobre o resultado de toda essa trajetória. Conclui que ela valeu a pena. No entanto, ele coloca também a sua evolução sob o aspecto do entendimento do mundo. Como escreveu o Rei Salomão, no Eclesiaste, no antigo testamento da Bíblia: “tudo é vão e fútil”.
Eu complemento: somos nós que damos importância às coisas. Contribuir para a preservação da vida na Terra é uma tarefa que vale a pena. Formar uma família sadia também vale a pena. Permanecer como personagem do Semiárido, voltando ali com frequência, incorporando para sempre o compromisso com as pessoas e com a paisagem, foi algo que naturalmente ocorreu.
Pessoas que eventualmente se interessem em ler esse livro, ele está disponível para ser baixado gratuitamente em seu computador, basta clicar: “Do Sertão ao Planalto“.