Reconhecimento internacional de danos aos quilombolas de Alcântara é ‘histórico’

A luta das comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, ganhou um novo rumo com a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em uma sentença histórica, reconheceu os danos causados aos quilombolas durante a implementação e funcionamento do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). A sentença impõe a titulação do território, a indenização das comunidades e a criação de um diálogo permanente com o governo brasileiro. Para esclarecer os efeitos dessa decisão e os desafios a serem superados, conversamos com Danilo Serejo, quilombola de Alcântara, consultor em direitos étnicos e pesquisador em direitos dos povos e comunidades tradicionais. Em uma entrevista exclusiva para a Eco Nordeste, ele pondera sobre os avanços, as dificuldades e aspectos relevantes para a luta permanente dos quilombolas por justiça social e respeito às suas tradições e identidades.

Foto close-up de um homem de meia-idade com cabelos cacheados escuros com alguns fios grisalhos. Ele tem um tom de pele moreno claro, olhos castanhos e lábios finos. Ele usa uma gola alta preta e um blazer bege claro. O fundo é uma parede branca lisa
Serejo afirma que a sentença é um precedente que protege a propriedade coletiva de comunidades quilombolas no Brasil | Foto: Arquivo pessoal

Alice Sales – De que forma a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) favorece a luta dos quilombolas de Alcântara? Você considera que este seja um marco que servirá de referência para garantir os direitos das comunidades quilombolas em outros territórios do País?

Danilo Serejo – Trata-se de uma sentença muito importante. Possui repercussão geral, uma vez que é precedente que protege a propriedade coletiva de comunidades quilombolas no Brasil. Neste sentido, seu efeito alcança e deverá orientar ou servir de referência para tribunais brasileiros em casos que envolvam a proteção dos direitos das comunidades quilombolas do Brasil; além de guiar também a agenda política do movimento quilombola. É uma decisão histórica!

AS – A sentença impõe que o Estado brasileiro titule os 78.105 hectares de terras e pague uma indenização de US$ 4 milhões às comunidades. Como será o processo de titulação e a distribuição desse valor entre os quilombolas de Alcântara?

DS – A decisão sobre a gestão e uso dessa indenização caberá às comunidades. Deverá ter uma ampla e longa agenda de trabalho no território em torno disso. Ainda não sei dizer como isso se dará.

AS – A sentença da CIDH determina que o Estado brasileiro estabeleça um diálogo permanente com as comunidades quilombolas. Quais são as suas expectativas para o futuro desse diálogo?

DS – A publicação da sentença pela Corte IDH não encerra o caso. A Corte seguirá acompanhando o caso até que esteja plenamente convencida de que todas as imposições e condições da sentença foram cumpridas. Por outro lado, o Estado seguirá enviando relatórios anuais para a Corte informando do cumprimento da sentença. Essa mesa permanente é importante e necessária porque é o canal de diálogo entre Estado e comunidades para se discutir a implementação da sentença.

AS – Quais são os principais desafios que os quilombolas de Alcântara ainda enfrentam com relação aos direitos fundamentais, como moradia, educação e saúde?

DS – A ausência de título de propriedade ainda é o nosso maior problema. Se o território ainda não é devidamente regularizado e titulado, outras políticas não chegam ao território. A insegurança jurídica ainda é o principal vetor de outras ausências e problemas na nossa qualidade de vida, inclusive, é a principal responsável pela incerteza quanto ao nosso futuro, frente às ameaças de expansão da Base Espacial sobre nosso território.

‘O racismo uniu todos esses governos e autorizou os militares a continuarem a cometer seus crimes e violações contra nossas comunidades’

AS – Sobre a consulta ‘prévia, livre e informada’ que a sentença exige, como você avalia a postura do Estado brasileiro? O que falta para garantir que essa consulta ocorra de fato e respeite a autonomia das comunidades quilombolas?

DS – Nesta situação, Alcântara reflete muito bem o desprezo dos governos brasileiros pelo tema, isto é, pela consulta prévia e pela Convenção 169. Desde quando a C169 foi ratificada, 2002, não há nenhum registro de aplicabilidade da C169 e respeito ao direito de consulta prévia, livre e informada. Sucessivos governos, de diferentes matizes ideológicas, desprezam o tema. E isso não é à toa. A C169 coloca os povos e comunidades tradicionais em posição ativa e em pé de igualdade com entes dos governos e Estado brasileiros, e isso contrapõe uma cultura institucional de silenciamento desses povos e comunidades. O racismo institucional é determinante para se explicar as razões da não aplicação da Convenção 169 no Brasil. Mas, quando nos negam o direito à consulta prévia, à luz da C169, nos negam o direito de planejar e decidir sobre o nosso futuro e assumir o protagonismo das nossas vidas e destino. Essa situação só encontra paralelo na lógica do Brasil colônia.

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AS – Nos últimos anos, houve diversas tentativas de expansão do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Com isso, ocorreu o deslocamento forçado de centenas de famílias. Como você avalia as ações do governo nesse processo?

DS – Independente de quais governos estavam no poder, essa questão sempre foi decidida e guiada pelos interesses dos militares. Eram eles que decidiam os rumos de Alcântara e de suas comunidades. A Base Espacial é um projeto da ditadura militar e essa lógica nunca cessou em Alcântara. O autoritarismo militar é uma constante em nossas vidas há pelo menos 40 anos. Nenhum governo, nem de direita, nem de esquerda, ao longo desses anos, rompeu com o projeto militar. O racismo uniu todos esses governos e autorizou os militares a continuarem a cometer seus crimes e violações contra nossas comunidades. Nenhum dinheiro paga ou repara isso!

AS – A decisão da Corte Interamericana também incluiu a proibição da expansão do CLA. Na sua avaliação, quais são os próximos passos que você acredita que o Estado deve tomar para assegurar que o território dos quilombolas de Alcântara seja respeitado, sem novas violações?

DS – Se espera que a sentença seja cumprida e o território, titulado. A Base não pode mais ser expandida. A sentença acaba com essa história e a não-expansão agora é uma obrigação do Estado imposta pela Corte. E como tal deve ser tratada. Não há mais o que se discutir sobre isso!

AS – Em 2023, foi firmado um acordo entre o Estado e as comunidades quilombolas que destinou 78,1 mil hectares para os quilombolas de Alcântara e validou a utilização de 12,6 mil hectares pelo centro espacial da FAB. Você considera que as condições previstas neste acordo estão adequadas?

DS – O acordo firmado em setembro passado é importante, mas passa a exercer papel secundário. Daqui pra frente o diálogo deverá ser guiado pela sentença da Corte que tem força maior que qualquer acordo. A sentença obriga a titulação coletiva do território, que é o ideal e é o que a legislação brasileira determina.

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