Petróleo, é preciso lembrar, é uma mistura de hidrocarbonetos – isto é, de moléculas de matéria orgânica (o carbono) associadas com moléculas de hidrogênio – gerada a partir da decomposição de algas, plânctons, restos de animais e outros elementos orgânicos que se fazem presentes em rochas sedimentares situadas a grandes profundidades e submetidas a elevadas temperaturas por longo intervalo de tempo (da ordem de dezenas de milhões de anos). As elevadas temperaturas decompõem essa matéria orgânica e a levam à condição de óleo confinado (Marschak, 2019).
O petróleo vem sendo extraído há mais de 150 anos em diversas partes do mundo onde ocorrem bacias petrolíferas, por meio de equipamento sofisticados construídos para esse fim, instalados em centros de extração da matéria prima do subsolo. O petróleo cru é o óleo bruto, retirado diretamente do reservatório geológico (as rochas sedimentares profundas) e escoado para as refinarias, onde é processado para dar origem a subprodutos comerciais como gasolina, óleo diesel, querosene, e toda a grande gama de produtos comerciais que utilizam hidrocarbonetos sintetizados pela indústria na sua composição.
Quando uma etapa desse processo falha ou sofre danos, ocorrem os (frequentes) derrames de petróleo que vez por outra presenciamos. Derrames de petróleo em áreas marinhas de forma geral representam grandes catástrofes ambientais, pela elevada toxicidade que o material apresenta, implicando em alteração da qualidade das águas e em mortandade elevada da fauna e flora onde ocorrem.
Como é de conhecimento geral e vem sendo finalmente tratado pela mídia nacional, um derramamento de petróleo está atingindo as praias e estuários do Nordeste brasileiro desde a primeira semana do mês de setembro, distribuindo-se por uma área de 2.200 Km, alcançando mais de 230 localidades (O Globo, 25 de outubro, 2019). A mancha de petróleo se faz presente nos nove estados da região, e alguns deles, como Pernambuco, Sergipe e Bahia, foram atingidos de forma bastante acentuada.Trata-se, na verdade, do maior desastre ambiental que se tem registro na zona litorânea do Brasil.
Infelizmente, e de acordo com análises de especialistas consultados por diversos meios de comunicação, o petróleo que atingiu a região – um óleo cru, do tipo extra-pesado -, está entre os piores que poderiam cair no mar, por ser de dificílima degradação. Com efeito, os especialistas informam que esse óleo tem mais frações tóxicas do que um óleo leve, cujos componentes seriam vaporizados mais facilmente. O petróleo cru pode ser degradado por fatores fatores naturais, como a rebentação das ondas (que dispersam o material), a irradiação solar (que evapora determinados componentes) e até mesmo bactérias que se alimentam do carbono contido no material, mas isso leva muito mais tempo – da ordem de décadas – do que um petróleo já trabalhado e refinado (O Globo, 23 de outubro de 2019).
Com a catástrofe, praias ficaram cobertas por espessas camadas de óleo semi-solidificado, o qual se agregou às areias dos estirâncios e aos afloramentos rochosos que existem com frequência na zona inter maré. Em adição, o óleo penetrou também em estuários e manguezais, fixando-se nas raízes nas plantas e no solo (foto). No momento, de acordo com a rede de ONGs que atuam nas áreas costeiras nordestinas, registra-se a presença do petróleo em mais 20 unidades de preservação ambiental litorâneas e costeiras, incluindo áreas de corais, parques de dunas e lagoas, além de diversas reservas extrativistas.
O derramamento de petróleo deixa a fauna marinha extremamente vulnerável. Animais marinhos como tartarugas e golfinhos estão morrendo ou sofrendo com a impregnação de óleo no organismo e nas partes externas, aves estão com penugem prejudicada, e peixes, mariscos e crustáceos estão sendo contaminados.
Cita-se ainda que derramamentos de petróleo prejudicam a qualidade das águas marinhas e estuarinas, tanto superficiais quanto subterrâneas. As águas superficiais entram em contato direto com o óleo, e como esse é solúvel, são enriquecidas com seus elementos tóxicos. Particularmente em áreas lamosas como os mangues, que têm pouca movimentação de água e são ricos em sedimentos finos, o óleo se mistura facilmente com o sedimento, propiciando a decantação e a permanência do elemento tóxico no ambiente por muito tempo. São décadas para a natureza degradar o óleo, afirma o oceanógrafo Clemente Coelho Júnior (BBC News, 25 de outubro de 2019). Saliente-se aqui que os manguezais funcionam como berçário para grande parcela da fauna marinha, sendo responsável pela produtividade e biodiversidade das áreas litorâneas tropicais. Assim, a destruição desse ecossistema representa perda incomensurável para as zonas litorâneas em geral.
Fator complicador nesse processo é a contaminação das águas subterrâneas, como por exemplo na chamada “cunha salina”, que representa a área de contato entre as águas marinhas e continentais, na interface entre continente e mar. Nessa interface, as águas marinhas e continentais se interdigitam, sendo o lençol freático extremamente superficial, o que o torna passível de receber as águas marinhas contaminadas.
É provável que esse aquífero transicional receba parcela dos poluentes oriundos da degradação do óleo na água do mar nos setores em que o óleo está maciçamente presente, de forma a gerar contaminação das águas de consumo doméstico que são extraídas da beira do mar em várias localidades. Se esse processo ocorrer, o que é provável, as águas contaminadas retornariam lentamente ao ambiente, estendendo a contaminação mesmo para quando o óleo desaparecer do ambiente externo visível. Essa contaminação, não exposta, pode levar também vários anos, talvez décadas, para se desfazer.
Turismo
Do ponto de vista do que é visível, sabe-se que as águas estão em muitas localidades impróprias para banho, para pesca e para o extrativismo. Essa situação não está sendo muito noticiada pela imprensa formal, provavelmente em função do prejuízo para a atividade turística que isso implica, a qual representa grande fonte de renda para as cidades litorâneas nordestinas. O turismo, no entanto, já se faz prejudicado, pois as redes sociais estão compartilhando as notícias com rapidez e competência, de forma a tingir um grande número de pessoas dentro e fora da região.
Apesar de já estar entrando no terceiro mês de ocorrência, o Governo Federal ainda não foi capaz de identificar a origem do derramamento de óleo. Na verdade, o Governo Federal não parece estar interessado em enfrentar o problema com a devida clareza que o processo requer: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em revanche contra o protesto realizado pelo grupo ambientalista Greenpeace em Brasília no dia 22 de outubro contra a inoperância do Governo Federal para tratar do problema, alardeou que, possivelmente, o óleo teria vindo de navios do próprio Greenpeace!
Assim, passados três meses, ainda não se tem uma ideia concreta da origem do óleo. Ao que tudo indica, como atestado por oceanógrafo da Universidade de Pernambuco – UPE (Coelho Júnior, comunicação pessoal), o óleo seria mesmo de origem venezuelana. O óleo não teria vindo de derrames ocorridos na Venezuela, considerando-se inclusive que as correntes se deslocam de leste para oeste na margem equatorial brasileira. Tratar-se-ia de óleo que foi acondicionado na Venezuela em navio que posteriormente fez o transporte, quando o acidente ocorreu. O óleo teria sido derramado a uma distância de entre 270 e 600 km de Pernambuco e Paraíba. Não se sabe ainda, no entanto, a bandeira do navio que transportava o óleo quando ocorreu o incidente, e cerca de 30 países estão na mira (Le Monde Diplomatique Brasil, 24 de outubro de 2019).
A situação permanece delicada, pois sem o conhecimento do tipo de incidente ocorrido na origem do problema, fica-se sem saber, por exemplo, se mais óleo poderá ainda chegar a alcançar o litoral do Nordeste brasileiro nas próximas semanas.
A limpeza das praias, que foi lenta a princípio, tem agora sido feita por voluntários, grupos de ambientalistas, Marinha do Brasil (por meio da Capitania dos Portos), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), governos estaduais e mais recentemente, Exército. A articulação, na maioria dos casos, no entanto, não está à altura do problema, e mostra a incapacidade (ou opção) do Governo Federal em lidar com a situação. O Governo Federal, por exemplo, só acionou o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo 45 dias depois de iniciado o incidente. Consta que isso decorre também do fato de o presidente do Brasil ter extinto os comitês do plano de ação de incidentes com óleo em abril desse ano (Folha de São Paulo, 23 de outubro de 2019).
Apesar de a limpeza das praias avançar, um outro problema começa agora a preocupar: o acondimentamento apropriado do material recolhido. Há vários casos relatados, de ter sido o óleo recolhido colocado em sacos de lixo. Provavelmente grande parte desse resíduo deve estar sendo armazenado pelas próprias prefeituras, mas não se sabe exatamente qual é o destino final. A preocupação é que, se esse resíduo não for acondicionado de maneira adequada, poderá contaminar por meio da porosidade do solo, o próprio solo e o lençol d’água subterrâneo.
Pesca
Para além dos problemas ambientais e econômicos, uma consequência desastrosa do derramamento de óleo no Nordeste brasileiro é extremamente dolorosa. Diz respeito aos prejuízos causados para a populações de praianos e povos do mar. Os pescadores artesanais, marisqueiras, catadores e catadoras, quilombolas, camponeses e camponesas, e demais povos e comunidades tradicionais costeiras, dependentes dos territórios pesqueiros, dependentes da dinâmica das águas marítimas e continentais e seus ecossistemas, em função da omissão do Estado Brasileiro na resolução e contingenciamento do problema, estão completamente prejudicados pela situação em curso. A desestruturação da política ambiental no Brasil, levada a cabo pelo atual Governo Federal, bem como a sua falta de compromisso para com as populações menos abastadas, estão mostrando a que vieram.
Choremos pelos nossos povos praianos! Choremos pelo nossos litorais!
Referências:
BBC News. Essenciais para o planeta, manguezais do Nordeste são “sufocados” por petróleo. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50132770?ocid=socialflow_facebook&fbclid=IwAR3F51Igt7D5RHI3ZzJComWZsNDneZhs5ppoKhKQijUHc8kHw5sQxyybqfY. Consultado em 25 de outubro de 2019.
Coelho Júnior, Clemente (Oceanógrafo, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco, em comunicação pessoal).
Jornal Folha de S.Paulo. Governo Bolsonaro extinguiu comitês do plano de ação de incidentes com óleo. https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/10/governo-bolsonaro-extinguiu-comites-do-plano-de-acao-de-incidentes-com-oleo.shtml
Jornal O Globo. Entenda: o que se sabe sobre o derramento de petróleo no Nordeste. https://oglobo.globo.com/sociedade/entenda-que-se-sabe-ate-agora-sobre-derramamento-de-oleo-no-nordeste-24035148. Consultado em 25 de outubro de 2019.
Le Monde Diplomatique Brasil. Guerra commercial, petroleiros piratas e o vazamento de óleo. https://diplomatique.org.br/guerra-comercial-petroleiros-piratas-e-o-vazamento-de-oleo/. Consultado em 25 de outubro de 2019.
Marschak S. Earth Portrait of the Earth. WW Norton & Company, 2019.
Oliveira, L.I., Loureiro, C.O. CONTAMINAÇÃO DE AQUÍFEROS POR COMBUSTÍVEIS ORGÂNICOS EM BELO HORIZONTE: AVALIAÇÃO PRELIMINAR. X Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas, 1998.