‘Essa é a primeira COP que fala em Agricultura Familiar’

Na imagem, um homem está de pé à beira de um rio, com a água azul ao fundo e uma faixa de vegetação distante na margem oposta. Ele veste uma camisa branca de manga curta com um bordado colorido em uma das laterais e sorri levemente, olhando para o lado
‘O Semiárido brasileiro é o maior exemplo, não só para o Brasil, mas para o mundo, do que significa o papel da agricultura familiar na agenda climática’, Paulo Petersen | Foto: Túlio Martins / AS-PTA

Um marco para a Conferência das Partes (COP), para o Brasil e para o debate sobre o clima: em 30 anos, é a primeira vez que a Agricultura Familiar é assunto da COP e terá um enviado especial com a missão coletiva de emplacar o tema na agenda de ação global. O passo é considerado um avanço por organizações da sociedade civil brasileira que atuam na área há décadas, mas também é recebido com um questionamento: por que só agora?

A pergunta dá o tom de como a Agricultura Familiar deve se posicionar em diversos espaços da Cúpula dos Povos e da COP30, em Belém (PA), entre os dias 12 e 16, e entre 10 e 21 de novembro, respectivamente. Neste sentido, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a organização AS-PTA, a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) lançam a campanha “Em defesa da Agricultura Familiar!”, que vai ocupar esta agenda internacional com soluções agroecológicas para o clima.

Nesta entrevista exclusiva para a Eco Nordeste, Paulo Petersen, enviado especial para Agricultura Familiar na COP, nos conta que o evento é uma grande oportunidade para posicionar a Agricultura Familiar e a Agroecologia na agenda de ação, que é justamente o debate político que sucede a COP30 e segue para as próximas conferências.

Ele adianta que os países que têm compromissos com a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas precisam reconhecer e investir na Agricultura Familiar de base agroecológica que diminui substancialmente a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEEs) dos sistemas alimentares e é resiliente ao clima.

Paulo Petersen é agrônomo pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), com mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural e doutorado em Estudos Ambientais na Espanha. É diretor executivo da AS-PTA e integra o núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a diretoria da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia); e é conselheiro da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO).

As soluções agroecológicas trazidas pela campanha foram mapeadas em uma pesquisação da ANA, que tem como mote “Agroecologia no território, justiça climática no planeta”, disponível online. Leia a entrevista na íntegra:

Maristela Crispim – A agricultura familiar é realmente a principal responsável pelo alimento na mesa dos brasileiros?

Paulo Petersen – Sem a menor sombra de dúvida. É a principal responsável, não só em termos de quantidade e diversidade, mas em qualidade. Nesses três quesitos, para mantermos uma saúde integral, precisamos estar muito bem conectados com a natureza e a alimentação é a principal forma de conexão com a natureza. Precisamos de alimentação saudável, que significa diversidade, cor, sabor e cultura. E a agricultura familiar é capaz de articular essas várias qualidades de uma alimentação saudável.

MC – Mas as pessoas acreditam que é o agronegócio, a agricultura em larga escala que coloca alimentos na mesa do brasileiro?

PP – Existem várias formas de responder isso. A primeira é que o agro, de fato, ocupa a maior parte das terras, tem os maiores volumes de produção agrícola, e uma parte importante dessa produção vai para alimentação. Só que essa parcela vai para a indústria e se transforma em alimento ultraprocessado. Tem o agronegócio que produz alimentos que são consumidos diretamente para a população, mas a maior parcela da produção do agronegócio é direcionado ou à indústria de alimentos ou à produção de ração animal, que vai produzir carne. É uma forma indireta de chegar. A própria produção animal é muito importante para o agro, mas é também de caráter industrializado com muito consumo de ração industrial. Então a parte do agro que contribui para a alimentação podemos dizer que não é a mais saudável.

Do ponto de vista ambiental, ela é a que causa mais problemas, seja do ponto de vista dos desequilíbrios que esse estilo de agricultura praticado em grandes monoculturas gera, altamente dependente de agroquímicos, agrotóxicos, mas também do ponto de vista climático. É altamente consumidora de recursos, de combustíveis fósseis, e sua viabilidade econômica depende da crescente expansão sobre florestas, territórios indígenas e quilombolas. É um estilo de agricultura que tem uma contribuição bem importante, sobretudo no caso do Brasil, para as mudanças climáticas. É por isso que sempre procuramos explicar que a agricultura familiar é portadora de uma dupla solução, para o clima e para a alimentação saudável.

MC – Você poderia contar um pouco a história da agricultura familiar no Brasil?

PP – Nós não estamos falando de uma identidade social, mas de uma forma de fazer a agricultura que é baseada em núcleos familiares, comunitários e isso significa um certo tipo de economia, uma forma de organização do trabalho e da própria economia agrícola que não tem nada a ver com a lógica do agronegócio que tem uma economia baseada na produção de lucro, na ideia de produzir para mercados e obter uma taxa de rentabilidade.

Na agricultura familiar, é claro que a produção para mercado também existe, mas existem outras economias e elas fazem parte de uma agricultura ancestral que tem várias origens, nos povos indígenas, quilombolas e no campesinato brasileiro, criado sempre à margem do agronegócio, mas que tem uma economia com algumas características que a diferenciam do agronegócio. Primeiro, ela produz diversificado, porque é para o próprio consumo. As culturas alimentares são formadas em cima dessa capacidade que a agricultura tem de se ajustar à natureza, aos ecossistemas e sua biodiversidade. Se nós temos uma riqueza de alimentação, de culturas alimentares, vem exatamente dessa lógica econômica da agricultura familiar de se ajustar aos ecossistemas.

O nome agricultura não é à toa e o nome agronegócio também, porque o agronegócio não tem cultura, uma cultura no sentido popular, uma vinculação com os ecossistemas e com a própria comunidade

A nossa formação, em todo mundo, é a agricultura familiar, que muitas vezes também é entendida como agricultura camponesa, que é uma agricultura territorial. Ela tem essa vinculação com a natureza, com a sociedade porque na sociedade é que se formam as culturas. O nome agricultura não é à toa e o nome agronegócio também, porque o agronegócio não tem cultura, uma cultura no sentido popular, uma vinculação com os ecossistemas e com a própria comunidade.

A nossa agricultura familiar, historicamente, sempre foi marginalizada porque nós somos um país formado pelo domínio do agronegócio, pelo latifúndio, monocultor, exportador, mas a agricultura familiar sempre foi muito importante, apesar de ser periférica, produz alimento. Não se consegue manter uma sociedade que não produz seu alimento. Em determinadas regiões onde se expandiam muito as grandes monoculturas, sempre havia um certo espaço preservado para agricultura familiar, camponesa e, quando não havia mais terra, era necessário fazer uma pequena reforma agrária, uma reforma agrária feita para sustentar um sistema econômico dominante. A agricultura familiar sempre foi importante, até para a sobrevivência de um sistema de dominação.

A origem da agricultura familiar precisa ser resgatada, porque nós estamos diante de uma situação brasileira e global que converge várias crises. E a crise climática talvez seja aquela que expõe as contradições e os limites desse modelo de forma mais evidente porque a crise climática nos coloca diante de um tempo determinado de sobrevivência desse sistema. Ele sempre foi conseguindo, com uma reforma agrária, alguma divisão de renda, equilibrar as contradições sociais. Mas contradição ambiental não há como conciliar porque o Planeta é um só. É urgente que a Agricultura Familiar seja colocada na centralidade da pauta.

MC – Qual tem sido o papel da agricultura familiar no Semiárido brasileiro?

PP – O Semiárido brasileiro é o lugar, a região do Brasil onde mais tem agricultura familiar. Pela forma de desenvolvimento do nosso país, era tido como uma região de muita pobreza e miséria. Para o próprio sistema, tinha uma certa função de reserva de trabalho. O Semiárido Brasileiro sempre forneceu aquele trabalho precarizado para sustentar o crescimento urbano e industrial do Brasil.

Agora, depois de ter sido tida como uma região fadada à pobreza, miséria por conta das secas, temos a possibilidade de reverter o olhar, de deixar de falar de problema, pobreza, miséria e passar a olhar para suas vocações, pela cultura que vem da própria Agricultura Familiar da região, deixar de falar de combate à seca e passar a falar de convivência com o Semiárido.

Em 30 anos de políticas mais adequadas, com grande participação da sociedade civil, houve uma mudança radical do perfil do Semiárido brasileiro. Hoje, não se vê mais aquelas cenas que se via no fim da década de 1980, de migração, de fome, de miséria. Pelo contrário, o que se vê hoje é uma agricultura familiar em ascensão, em autoafirmação, produtora de alimentos, geradora de trabalho, de renda, evidentemente com um monte de contradição ainda. E talvez uma das maiores contradições para que essa Agricultura Familiar floresça é exatamente a concentração fundiária que ainda prevalece no Semiárido brasileiro.

Nós conseguimos, de certa forma, romper algumas visões e políticas, investir em políticas públicas adequadas, como os programas de cisternas, mas a concentração fundiária ainda é muito grande. O Semiárido brasileiro é o maior exemplo, não só para o Brasil, mas para o mundo, do que significa o papel da agricultura familiar na agenda climática. Nós tivemos uma seca no início dos anos 2000 muito mais drástica do que tivemos no fim da década de 1980, e não tivemos notícia de ninguém, nenhuma criança que tenha falecido por conta dessa seca. Isso, evidentemente, se deve a um conjunto de fatores, mas exatamente à ideia da convivência com o Semiárido.

Hoje a região está muito mais resiliente, que é a palavra da moda aí das mudanças climáticas, está muito mais adaptada. E essa adaptação vem do reconhecimento desse tipo de agricultura, que não foi desenvolvida para produzir commodities para exportação, mas para produzir alimentos diversificados, que vende em mercados locais.

Seca não significa absoluta falta de chuva, mas níveis de chuva bem abaixo da média e com pouca chuva e agora, com a água captada e com técnicas de manejo, sem que as mulheres tenham que percorrer grandes distâncias para ir buscar água contaminada para sua família. A mortalidade infantil caiu muito, as mulheres liberaram o seu tempo, estão produzindo nos seus quintais. A agricultura familiar do semiárido floresceu e dá um grande exemplo. É o lugar onde a Agroecologia ganhou escala.

Se fala muito em crescimento de escala para a Agroecologia, mas nós já temos o exemplo no Brasil. Como é que se faz? É fortalecer a Agricultura Familiar nos territórios, fortalecer as organizações locais, mas está faltando a reforma agrária, um elemento que ainda não foi suficientemente entendido como uma solução para a mudança climática. Se nós não fizermos reforma agrária no Brasil, não conseguiremos enfrentar essa crise climática e a crise alimentar.

Na foto, um homem está em pé ao ar livre, sorrindo de forma simpática. Ele veste uma camisa branca de manga curta com um detalhe bordado colorido em uma das laterais. Ao fundo, há uma copa de árvores com folhas verdes iluminadas pela luz do dia
‘Em 30 anos de políticas mais adequadas, com grande participação da sociedade civil, houve uma mudança radical do perfil do Semiárido brasileiro’, afirma Paulo Petersen | Foto: Túlio Martins / AS-PTA

MC – Qual é exatamente o papel da Agricultura Familiar no cenário do aquecimento global?

PP – Tem uma questão chave numa agricultura baseada na diversidade, que não produz uma coisa só. A monocultura significa um grande desequilíbrio em relação à natureza. Na natureza, na medida em que você vai desequilibrando, ela reage e busca restabelecer o seu equilíbrio. E o que é, no Semiárido, o equilíbrio? É uma floresta de Caatinga. Com a monocultura vai aparecer praga, degradação do solo, desertificação. Isso nada mais é do que um sintoma de desequilíbrio. A agricultura familiar trabalha com essa diversidade de produção que se aproxima muito mais de como funciona a natureza. E não se precisa usar os químicos. O adubo químico, os agrotóxicos nada mais são do que artifícios técnicos para combater o desequilíbrio. A praga não vai aparecer se o ecossistema estiver equilibrado. Quanto mais diversidade, mais equilíbrio e menos pragas e doenças vão aparecer, não precisa de veneno, não degrada o solo, não precisa de adubo químico. E esses venenos e adubos químicos são altamente consumidores de combustíveis fósseis, são emissores de gás de efeito estufa.

Uma agricultura que é baseada na energia solar por meio da fotossíntese consome muito menos energia do que a agricultura convencional do agronegócio. A solução energética do agronegócio é deixar de produzir alimento e produzir biocombustível. Isso é um equívoco. Precisamos da agricultura para produzir alimento. É claro que podemos produzir biocombustível, mas não só ele. Não se pode substituir um território inteiro para produzir soja, dendê para energia. O combustível pode ser produzido junto com arroz, mandioca, feijão, num sistema diversificado, ou seja, biocombustível com biodiversidade. Isso sim faz sentido para uma economia baseada na fotossíntese. Não podemos colocar a questão energética contra a alimentar.

Outra questão: a agricultura consome muita energia. Para cada unidade de produção se consome 1,5 a duas unidades de energia. Ou seja, consome o petróleo do Planeta para transformar em alimento. Tem gente que diz que a agricultura moderna, do agronegócio, é a arte de transformar petróleo em alimento. Isso está completamente equivocado. Precisamos mudar esse sistema. A Agricultura Familiar, em base agroecológica, tem essa vocação. Essa é uma das razões fundamentais para situar a Agricultura Familiar na agenda climática.

MC – O que significa essa primeira participação da Agricultura Familiar na Conferência do Clima?

PP – Significa muita coisa. Primeiro, estamos na 30ª Conferência do Clima. Desde 1992 eu faço parte da ASPTA, ano da Rio-92, quando foram criadas as COPs. Já naquela convenção, nós também tivemos uma Cúpula dos Povos. Organizamos uma tenda para fazer um debate sobre Agricultura Familiar e Agroecologia. Ou seja, nós estamos falando disso desde 1992. As convenções que saíram dali foram as do Clima, da Biodiversidade e do Combate à Desertificação. Isso não pode ser visto de forma dissociada porque as causas da desertificação, da perda da biodiversidade e da mudança climática são as mesmas e a Agricultura familiar de base Agroecológica dá resultado combinado para essas três causas.

Só muito recentemente os temas da agricultura e da alimentação passaram a ser entendidos como importantes porque os sistemas alimentares são responsáveis por uma grande parte das emissões de gases de efeito estufa. Aqui no Brasil chega a 73%. Direta ou indiretamente tem a ver com a agricultura e alimentação. No mundo esse número é menor, mas no Brasil é impressionante. Precisamos muito mudar os sistemas de produção, de distribuição e de consumo de alimentos. Essa é a primeira COP que fala em Agricultura Familiar.

É uma virtude que o Brasil tenha um histórico de reconhecimento da Agricultura Familiar em políticas públicas. Nem sempre essas políticas foram bem concebidas porque muitas vezes a ideia era fazer com que a Agricultura Familiar se comportasse como um pequeno agronegócio. Assim, essa vocação de produzir diversificado, alimentos para mercados locais vai sendo destruída para produzir da mesma forma que o agronegócio faz, commodities para exportar.

Nada contra produzir para exportar, mas muito contra produzir em monocultura com agroquímico. Produzir para exportar? Nenhum problema. Mas precisamos produzir alimentos para abastecer a nossa sociedade. É isso que se chama soberania alimentar. Isso depende da Agricultura Familiar, camponesa. É muito importante conseguir posicionar a Agricultura Familiar. Isso foi uma conquista do Brasil. Se não fosse no Brasil, dificilmente aconteceria essa iniciativa. Agora temos que manter isso na agenda. Não está seguro que a Agricultura Familiar tenha vindo para ficar. Na COP de Belém, a missão que as organizações, os movimentos sociais do Brasil e de fora do Brasil que estão vindo do campo agroecológico e movimentos camponeses é exatamente de fazer com que essa agenda chegue para ficar, a Agricultura Familiar seja reconhecida como uma parte importante das soluções e o financiamento climático canalize para a agricultura familiar de base agroecológica e para o abastecimento alimentar local.

MC – Como está a agenda de vocês na COP30?

PP – Temos uma agenda vasta. São muitos espaços em diferentes lugares, a começar pela própria Cúpula dos Povos, um espaço autônomo, soberano da sociedade civil. É, talvez, o lugar principal onde nós vamos estar enquanto Articulação Nacional de Agroecologia. Vamos apresentar uma pesquisa deste ano que vincula a Agroecologia com a justiça climática.

Vamos participar também dos espaços formais na Zona Verde, que é a zona de participação da sociedade civil, da interação entre os governos e a sociedade civil. Nós vamos organizar um pavilhão inteiro, chamado Raízes e Rotas, em inglês “Roots and Routes”, onde vão ocorrer mais de 40 atividades tratando de sistemas alimentares, do dia 10 até o dia 21.

Eu, como enviado especial, também terei a possibilidade de apresentar atividades específicas da Agricultura Familiar em lugares onde transitam os negociadores. Vamos organizar duas atividades, uma em conjunto com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), onde nós vamos discutir a Agricultura Familiar nos semiáridos do mundo com pessoas do Semiárido do Chaco argentino, do Corredor Seco da América Central, do Sahel africano discutindo a importância das regiões semiáridas.

Vamos discutir, numa outra atividade, a importância das redes territoriais de Agroecologia, ou seja, a ideia de que organizações da sociedade civil e poder público, podem reconstruir sistemas de produção e abastecimento alimentar mais territorializados, mais regionalizados, na medida em que a alimentação ficou muito globalizada e isso significa uma uniformização dos padrões de produção e de consumo. Essa uniformização é a parte importante do problema climático. Nós estamos discutindo que é necessário reterritorializar os sistemas alimentares, isso se faz com a Agroecologia. Esse segundo debate vai apresentar algumas experiências de sucesso e como as políticas públicas devem se orientar para que essa reterritorialização seja feita. Esperamos ter uma grande repercussão com essa expectativa de fazer com que a agenda da Agricultura Familiar venha para ficar.

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: