Por Márcia Dementshuk
Colaboradora
Maturéia – PB. Alcançada pelo Sol e os ventos, com locais de alto nível de radiação solar, a Paraíba está em evidência para a instalação de grandes usinas de energia eólica e solar, no modelo de distribuição centralizada da energia produzida. Mas neste estado também aflora um exemplo viável de geração descentralizada, cooperativista e solidária; uma energia sustentável, portanto. Inaugurada neste dia 7 de janeiro, em Maturéia, no Sertão paraibano, a Cooperativa de Compartilhamento de Energia Solar Bem Viver, entre as inovações, apresenta um sistema para recolher água da chuva a partir das placas fotovoltaicas, em entendimento de que, no convívio com o Semiárido, deve visar também a segurança hídrica.
Considera este conteúdo relevante? Apoie a Eco Nordeste e fortaleça o jornalismo de soluções independente e colaborativo!
Vinte e duas pessoas na Paraíba entraram em consenso quanto a buscar alternativas para promover o desenvolvimento regional sustentável. Eles são os sócios fundadores da Cooperativa de Compartilhamento de Energia Solar Bem Viver que, à primeira vista, não oferece nada além do que vantagens nas contas de luz. Mas esta matéria vai mostrar algo mais nesse projeto: inovação na captação de água da chuva; a criação de um fundo solidário solar; a inclusão de produtores rurais da agricultura familiar como beneficiários.
A narrativa começa pela formação da cooperativa. O diretor, Romero Antônio de Moura Leite, conta que o projeto é antigo. Pensado desde meados da década passada, a partir do Comitê de Energia Renovável do Semiárido (Cersa), foi recebendo contribuições em fóruns, encontros, seminários e reuniões com agricultores. “Assim chegamos ao modelo de uma cooperativa que irá fortalecer os espaços comunitários, a energia fotovoltaica descentralizada e a economia solidária”, conta Romero.
No livro “Transição Popular Energética”, o autor Felipe César da Silva Brito explica que a Bem Viver é um conceito em construção que propõe “novas realidades políticas, econômicas, sociais a partir de uma ruptura com os conceitos de progresso, desenvolvimento, caracterizados pela acumulação de bens e de capital, pelo crescimento infinito e pela exploração intensificada dos recursos naturais”.
Embasado em tais concepções e sob articulação do Cersa com instituições e prefeituras foi elaborado o projeto “Cuidando da Nossa Casa Comum” o qual aborda questões relacionadas às mudanças climáticas, à eficiência energética e ao uso descentralizado das energias renováveis. “O projeto buscou promover a conscientização e a mobilização da sociedade civil organizada urbana e rural através de associações, sindicatos, escolas, igrejas, etc., no espaço que envolve o território da Diocese de Patos-PB”, enfatiza o texto de Felipe César. Recebeu apoio financeiro da Misereor, uma organização alemã, e, somados os investimentos dos associados e outros apoiadores, a cooperativa foi formada.
A usina de energia solar está construída na área experimental do Centro de Educação Popular e Formação Social, em Maturéia (PB). O professor doutor Walmeran Trindade, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), que acompanha a parte técnica, informou que são 83 módulos fotovoltaicos de 460Wp (Watt-pico) quem geram 38,2KWp. A capacidade total nesse formato poderá crescer em até 144 módulos. Cada sócio fundador tem uma cota de geração de energia de cerca de 200kWh. Os 22 sócios fundadores têm 61 módulos. Cada um doou uma placa para impulsionar o trabalho com os agricultores familiares que serão incorporados. A cota tem 22 módulos, o embrião para o projeto comunitário.
Economia Solidária Solar
Tendo como semente os 22 módulos doados pelos sócios fundadores e outras doações, a Cooperativa Bem Viver irá colocar em prática a proposta da “solidariedade solar”. “Depois da inauguração, com a solidificação da primeira fase, vamos formar o grupo de sócios das comunidades do entorno da cooperativa. É necessário construir ainda os critérios e a metodologia da segunda etapa, mas temos os processos desenhados”, explicou Walmeran Trindade.
“Iremos trabalhar a ideia do Fundo Solidário Solar. É algo novo. Será um fundo rotativo solar; vamos experimentar para aprender e desenhar um modelo viável. Será uma contribuição de cada cooperado, por períodos, a partir da economia feita na conta de energia. Por exemplo, uma taxa de 50% sobre o valor economizado. Após 24 meses, a taxa ficaria em 20% da economia”, explica Walmeran.
Ele continua: “É o que estamos chamando de Economia Solidária Solar. É o estímulo para a inserção do uso de energia renovável descentralizada nos arranjos produtivos solidários, entrelaçada com as finanças solidárias. O papel da Bem Viver é ser esse exemplo vivo e participativo que pratica a solidariedade solar campo-cidade. Essa experiência pode materializar os ideais de muitas lutas sociais pela soberania alimentar, hídrica e energética.”
A Bem Viver está organizando a instalação do primeiro entreposto (filial) da cooperativa. Será no assentamento Novo Horizonte, em Várzea, na Paraíba. Vai atender 10 famílias, inicialmente. A área do terreno está em fase de regularização junto ao Incra, mas a usina fotovoltaica está pronta e o grupo de sócios, mobilizado. O equipamento é oriundo do projeto apoiado por Misereor. O entreposto tem 28 módulos de 470Wp e um inversor de 10kW. Nessa filial também serão aplicadas as regras do Fundo Solidário Solar. À medida em que são arrecadados recursos suficientes, são incluídas mais famílias.
“Vamos também inserir a Catajampa como sócia Pessoa Jurídica, como um exemplo de solidariedade solar entre o campo e a cidade. A Catajampa é uma cooperativa de catadores de materiais recicláveis de João Pessoa e estamos tratando dessa cooperação”, informa Walmeran.
Felipe César da Silva Brito salienta no livro “Transição Popular Energética” que “para entender sobre a economia solidária, é necessário compreender que ela está relacionada a atividades econômicas organizadas coletivamente por trabalhadores associados, adotando práticas de autogestão. As suas principais características estão relacionadas com a apropriação coletiva dos meios de produção, a cooperação.” Nesse sentido, “a articulação entre a Economia Solidária e o Bem Viver se apresenta como de grande importância em espaços comunitários”, registra o autor.
Autossuficiência hídrica
Na área experimental do Centro de Educação Popular e Formação Social, a usina de energia fotovoltaica se articula com a gestão hídrica, com a coleta de água para a manutenção das placas fotovoltaicas. José de Anchieta Assis, colaborador da cooperativa Bem Viver, esclarece a relação entre a água e os cuidados com as placas: “Depois de funcionando, a única manutenção a ser feita com mais frequência é remover o pó de cima das placas. Precisa de uma lavagem com água. Como estamos instalados em Maturéia, no Sertão, onde a oferta de água é escassa, essa simples questão se torna um grande problema”.
A cooperativa desenvolveu um sistema de calhas e cisterna para a coleta de água, com o uso dos módulos fotovoltaicos como telhado. Até o momento não há conhecimento de qualquer solução parecida a essa. O sistema foi montado no ano de 2022 e já recolheu 16 mil litros de água da chuva na cisterna. O esforço auxilia a comunidade que não terá que dividir seus recursos hídricos para o funcionamento da usina.
Enquanto os grandes empreendimentos solares centralizados no Semiárido serão mais concorrentes pela água, uma pequena organização social implementou uma solução simples de ser replicada.
Mais um viés a ser destacado é o potencial para a educação ambiental. O Centro de Educação Popular e Formação Social é uma referência no local para projetos de convivência com o Semiárido, especialmente em segurança hídrica e alimentar. Recebe estudantes de escolas dos municípios circunvizinhos para conhecerem as experiências. A usina é um projeto que agrega diversas características econômicas, sustentáveis, mas há um debate importante que trata da popularização dessa forma de energia que vem do Sol.
“Esse projeto acredita que as cooperativas de energia contribuem para que seja distribuída de maneira justa e popular, mas explicar isso para as pessoas é complicado porque o sistema de distribuição centralizada de energia no Brasil é complexo”, informa a professora Maria Joseni de Lima, da Escola de Ensino Fundamental e Médio Coriolano de Medeiros, em Patos.
A pedagoga, que também é uma cooperada, afirma que, diante de uma experiência como a consolidada pela Bem Viver, é mais prático para os alunos entenderem o processo de distribuição de energia no Brasil e, portanto, aprenderem e implementarem alternativas para o desenvolvimento regional.
O desafio da Cooperativa de Compartilhamento de Energia Solar Bem Viver para esse ano, segundo o diretor, Romero Antônio de Moura Leite, é a formação da cultura de cooperação entre os cooperados. “São pessoas diferentes, com capacidades diferentes e podem contribuir dentro das suas especialidades. Nós criamos comissões técnicas para que cada associado pudesse incorporar e dar sua contribuição porque esse é o sentido da cooperativa, com a participação de todos. É o desafio que teremos nos próximos anos, o aprendizado solidário, colaborativo que nós iremos insistir, pois é o nosso diferencial”, ressalta.
Ele lembra, por fim, que a trajetória até a inauguração foi um grande aprendizado no sentido burocrático, jurídico e técnico, inclusive a integração da usina com rede de energia. Contudo, a visão de um futuro mais justo, inclusivo, sustentável, passível de ter início no presente, mobiliza forças para seguir em frente.
Este é um grande exemplo de projeto inovador e integrador das comunidades rurais e urbanas nele envolvidas! Parabéns ao CERSA e às sócias e sócios da Cooperativa, assim como às lideranças do projeto
1