Por Alice Sales
Colaboradora
Esta é a terceira matéria da série especial da Agência Eco Nordeste sobre os dez anos da Política Nacional dos Resíduos Sólidos no Nordeste. Nela, o enfoque é o Ceará, que ainda tem muito a avançar com 310 lixões em seus 184 municípios, catadores merecendo mais atenção, empresas do setor da reciclagem pagando altos tributos. A constituição de consórcios e a construção de CTRs são conquistas recentes. A próxima e última matéria da série terá como enfoque o Estado de Pernambuco. Não deixe de conferir!
Fortaleza – CE. Catador de materiais recicláveis desde 1986, Cícero de Sousa veio do Interior do Ceará em busca de trabalho e meios de sustento para uma vida melhor. Ao chegar à capital, aos 15 anos, herdou a profissão de seu pai e juntos catavam papelão no Mercado Central para vender a uma fábrica de biscoitos. Não tardou para que as notícias sobre uma ocupação nas imediações de um antigo lixão, no bairro Henrique Jorge, chegassem até ele. Nessa ocupação, Cícero, que até então morava de aluguel, ergueu sua moradia e fez da catação uma oportunidade de sobrevivência.
“Fazíamos a coleta de materiais derivados da seringueira, cobre, alumínio e assim íamos complementando nossa renda. Catávamos ossos também, por que antigamente era possível vender para uma fábrica de produtos feitos a partir desse material. À noite coletávamos papelão no Mercado Central e de dia a gente catava no lixão para tirar outros materiais”.
Entre dias de trabalho árduo em lixões, puxando carrocinha pelas ruas e um acidente de trabalho que o fez perder um de seus pulmões, pouco a pouco Cícero foi conhecendo a importância de seu exercício e se engajando em movimentos em prol dos catadores. Apesar de toda dificuldade enfrentada pela categoria, hoje, ele é presidente da Associação de Catadores Raio de Sol, no bairro Parque Genibaú e representante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) no Estado do Ceará.
A história de Cícero de Sousa representa a de tantos outros homens e mulheres que, dia após dia, exercem a função de coletar materiais recicláveis das ruas como meio de sobrevivência, formando juntos a base de um serviço essencial para a cadeia da reciclagem e para a conservação do equilíbrio ambiental.
Política Nacional
Neste mês de agosto, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) completa dez anos. Criada com o intuito de promover avanços no País sobre o enfrentamento dos principais problemas ambientais, sociais e econômicos decorrentes do manejo inadequado dos resíduos sólidos, segundo o Ministério do Meio ambiente (MMA), a Lei Nº 12.305/10 “prevê a prevenção e a redução na geração de resíduos, tendo como proposta a prática de hábitos de consumo sustentável e um conjunto de instrumentos para propiciar o aumento da reciclagem e da reutilização dos resíduos sólidos (aquilo que tem valor econômico e pode ser reciclado ou reaproveitado) e a destinação ambientalmente adequada dos rejeitos (aquilo que não pode ser reciclado ou reutilizado).”
Com a ampla experiência que possui como catador e pela perspectiva da categoria, Cícero de Sousa avalia o que mudou nesses últimos dez anos, desde a implementação da Política: “Com a chegada da PNRS tivemos tempo para preparar nossas bases, mas se não tivéssemos tido esse aparato, tudo seria mais difícil. Quando comecei a me envolver nos movimentos da nossa categoria, a PNRS já existia. Nesse período, tínhamos espaços dentro das políticas públicas para discutir ações e projetos para os catadores, mas tudo piorou nos últimos anos. Alguns direitos que tínhamos foram extintos. Tivemos nossas ações desmobilizadas, não participamos mais de audiências públicas, não temos mais espaços para as nossas discussões”.
Segundo o representante cearense do MNCR, a partir de 2016, o cenário começou a mudar. Para ele, foi nesse período em que a categoria passou a ser bastante prejudicada, tendo a situação agravada com a mudança do Governo Federal, em 2018.
Com uma perspectiva bastante consciente de sua atividade, para ele, o catador tem uma função significativa dentro da PNRS e para a preservação do meio ambiente. “Sem o nosso trabalho, muita coisa seria pior. A gente não cata esse material à toa. Temos consciência de que esse resíduo é tirado dos lixões e das ruas no intuito de levar alimento para o nosso lar, mas temos certeza de que estamos fazendo um trabalho de recuperação desse material, levando de volta para a cadeia produtiva. Hoje, creio que 70% desse material coletado é recuperado”, finaliza.
Gestão no Ceará
André Pereira, titular da Coordenadoria de Desenvolvimento Sustentável (Codes), da Secretaria do Meio Ambiente (Sema), destaca que com a implantação da PNRS, o Ceará avançou no aspecto do planejamento, na publicação da Lei Estadual de Resíduos Sólidos, do Plano Estadual de Resíduos Sólidos, dos Planos Regionais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos e dos Planos de Coleta Seletivas Múltiplas.
Segundo a Pasta, todos esses instrumentos possuem o intuito de direcionar as ações, visando a melhoria da gestão. “Considerando que toda boa execução é precedida de um bom planejamento, considero que avançamos bastante. Precisamos agora focar em colocar em prática todo esse esforço de planejamento”, avalia.
Segundo a Sema, 38% da população cearense dispõe de equipamentos para disposição adequada de resíduos sólidos, no caso em aterros sanitários. Dos 184 municípios cearenses, apenas 11 fazem parte desse percentual: Acopiara, Brejo Santo, Caucaia, Cedro, Fortaleza, Jucás, Madalena, Mombaça, Piquet Carneiro, Senador Pompeu e Sobral. Quanto ao número de lixões, o último levantamento feito, no ano de 2017, indica a existência de 310 lixões. De acordo com a Secretaria das Cidades (SCidades), atualmente existem seis aterros sanitários em operação.
Na avaliação de Alceu Galvão, analista de regulação da Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce), o Estado conta com alguns avanços, principalmente nos últimos quatro anos. Do ponto de vista da infraestrutura, estão sendo construídas duas Centrais de Tratamento de Resíduos (CTR): um na Região Metropolitana de Sobral (RMS), que atenderá 18 municípios; e outra no Vale do Jaguaribe, que atenderá 13 municípios. As instalações de Sobral serão inauguradas no próximo dia 30 e isso significa que os lixões da região terão seus acessos fechados. As obras da CTR Vale do Jaguaribe seguem em andamento.
Embora a destinação de resíduos sólidos a lixões seja crime ambiental e a extinção desses espaços fosse uma das exigências da PNRS, com prazo prazo para 2014, Galvão destaca que “atualmente, os mais de 300 lixões que tínhamos em 2010 continuam existindo. A intenção é que esse cenário passe a mudar a partir da inauguração da CTR Sobral”.
Paulo Henrique Lustosa, secretário executivo de Saneamento da SCidades, explica que a CTR da Região Metropolitana de Sobral vai além do aterro. O equipamento contará com uma unidade de triagem, um pátio de compostagem, unidade de tratamento dos resíduos hospitalares e o aterro. “Esse será um investimento que seguramente supera os 50 milhões de reais. Estamos entregando esse projeto para o consórcio operar. A unidade do Jaguaribe terá um modelo similar”.
Além disso, a SCidades possui um programa de organização e capacitação para as associações de catadores, a fim de preparar melhor esses trabalhadores com relação à coleta seletiva e alavancar o rendimento que essas pessoas têm na atividade. De acordo com a Pasta, em paralelo à Sema, há um planejamento regional para a Coleta Seletiva Múltipla nos Municípios, investindo na organização de consórcios para essa finalidade. “Também apoiamos os municípios por meio do Índice Municipal de Qualidade do Meio Ambiente (IQM), que atualmente está todo voltado para a estruturação das políticas de resíduos sólidos nos municípios com ênfase na Educação Ambiental e coleta seletiva”.
O secretário executivo da SCidades avalia que, se olharmos friamente para os números, o Ceará e o Brasil pouco avançaram no cumprimento das metas da PNRS. “Ainda temos um número elevado de lixões para fechar. As regiões metropolitanas estão à frente na questão da destinação adequada. Várias tentativas e experimentos vêm sendo feitos por parte do Estado e dos municípios para tentar implementar a PNRS em conformidade com a Lei e esse trabalho que vem nos trazendo grande aprendizado. A partir de 2016, estamos conseguindo dar passos mais consistentes com relação ao cumprimento da PNRS”.
O analista de regulação da Arce pondera que, diante de um cenário de grave crise econômica, a expectativa é que haja uma redução de investimentos por parte do Estado brasileiro no que diz respeito à gestão de resíduos sólidos. Alceu Galvão menciona também o recém-aprovado Marco Regulatório (Lei 14. 026/2020) que fomenta a inciativa privada na atuação no setor de saneamento básico. “Com isso, teremos a construção de novos modelos com a participação privada. Neste sentido, o Governo Federal, juntamente com a Secretaria das Cidades, está discutindo um modelo de consórcio para a Região do Cariri, cujo o projeto encontra-se em estudo”, adianta.
Na Capital
Com relação à capital, Albert Gradvohl, coordenador especial de limpeza urbana da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), afirma que o maior retrocesso foi devido ao Governo Federal nunca avançar em relação ao tema. “Quanto à Fortaleza, considero que o período a partir de 2015 até hoje, foi o que mais teve investimentos e comprometimentos em adequar a cidade com Ecopontos e Ecopolo, equipamentos primordiais para induzir a coleta seletiva na cidade”.
Segundo Gradvohl, Fortaleza se preparou a partir de um plano estratégico de gestão de resíduos sólidos. No caso, o plano envolve o Marco Regulatório, o sistema de monitoramento de Resíduos da Construção Civil, Rede de Ecopontos, Implantação de Ecopolo, programas de geração de renda como o E-carroceiro e Franquia Social, como modelo para que associações de catadores possam se integrar ao programa. “Somado a outras iniciativas de coleta seletiva já existentes na cidade, como Ecoenel, depósitos, associações de catadores e projetos empresariais, a cidade vem atingindo 9,17% do potencial reciclador referente aos resíduos de grupo primário dos resíduos domiciliares. Isso é pouco se comparado com cidades europeias, mas bem superior ao índice do Brasil que é aproximadamente 2%”.
O secretário especial de limpeza urbana da PMF lembra que Fortaleza não possui lixão e conta com o Aterro Sanitário Municipal Oeste de Caucaia (Asmoc), situado no Município vizinho. Ele recebe cerca de 645 mil toneladas ao ano, sendo 36% de materiais recicláveis (grupo primário). O gás dos atuais rejeitos que vão para o Asmoc vem sendo explorado e utilizado pela Companhia de Gás do Ceará (Cegás).
Em artigo, Bruno Bertrand, diretor técnico do Sindicato das Empresas de Reciclagem de Resíduos Sólidos Domésticos e Industriais do Estado do Ceará (Sindiverde), destaca a necessidade de fazer algumas críticas sobre os últimos dez anos: “No plano público, em que se pese todas as suas inovações e qualidades técnicas como diploma legal, nesses dez anos, houve uma quase completa falta de articulação governamental – dentro e entre todas as esferas públicas – que evidencia uma implementação sofrível e ineficiente dos mecanismos de gestão de resíduos sólidos previstos neste marco.”
Consórcios
De acordo com a SCidades, os Consórcios Públicos de Manejo de Resíduos Sólidos no Estado do Ceará possuem modelos horizontais, nos quais o Estado não participa diretamente da sua composição, restringindo-se às ações de apoio e fomento da atividade. Ou seja, são formados apenas pelos municípios. Neste modelo, o Estado atua com a assistência técnica na elaboração de projetos e investimentos.
Atualmente, dos 184 municípios, 168 encontram-se consorciados. Sendo 143 por iniciativa do Estado e 25 por iniciativa dos municípios. Seis municípios não se associaram em consórcio por existir acordos bilaterais na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), quatro decidiram não aderir ao modelo de consórcio e seis não puderam se consorciar.
“Os Consórcios Públicos de Manejo de Resíduos Sólidos precisam cumprir um cronograma de implementação das iniciativas e implantação das instalações físicas definidas pelos Planos Regionalizados de Coletas Seletivas Múltiplas, com priorização das ações voltadas aos resíduos orgânicos, e recursos garantidos pelo repasse de 2% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), avaliado anualmente pela Sema, por meio do IQM”, destaca André Pereira.
De acordo com um estudo publicado pela Arce no último dia 14, a meta para o Plano Nacional de Resíduos Sólidos é ter, no ano de 2040, o percentual de 94,1% dos municípios brasileiros integrantes de um consórcio público para a prestação dos serviços de manejo de resíduos sólidos. Deste modo, segundo os dados apresentados na pesquisa, 70% dos municípios cearenses já estão consorciados, porém resta ainda agregar neste indicador, os municípios consorciados não participantes da pesquisa.
Coleta Seletiva
Criado a partir da Política Estadual de Resíduos Sólidos, que entrou em vigor em 2016, o Plano de Coleta Seletiva Múltiplas objetiva nortear os municípios cearenses quanto às suas potencialidades e deficiências frente à cadeia de reciclagem.
Em 2017, foram elaborados pela Sema, os Planos de Coletas Seletivas Múltiplas que atenderam 81 Municípios, localizados nas Bacias do Acaraú, Metropolitana e Salgado. Já em 2018, os planos de outros 103 Municípios restantes foram elaborados. De acordo com estudo realizado pela Arce, “Os planos de Coletas Seletivas Múltiplas baseiam-se em um modelo tecnológico que permite a implementação de uma coleta seletiva de forma consorciada”.
A partir de 2019, por meio do Decreto Nº 32.981, o Ceará passou a contar com a Coleta Seletiva Solidária, constituída com o objetivo de implantar a coleta seletiva nos órgãos da administração pública estadual, criando assim, processos que contribuam para o correto descarte de resíduos sólidos, além de promover a inclusão social e renda para os catadores de materiais recicláveis, associados ou cooperados.
Com relação à Fortaleza, Albert Gradvohl explica que a coleta seletiva na capital possui uma metodologia ponto a ponto, e não porta a porta: “Considero a coleta seletiva em Fortaleza bem norteada, possibilitando o Município sempre continuar investindo em eco estratégias para a ampliar sua área de abrangência”.
Como estratégia para viabilizar a coleta seletiva, os fortalezenses contam com os Ecopontos, espaços administrados pela Ecofor Ambiental, mesma empresa responsável pela coleta de resíduos sólidos nos endereços da cidade. Os Ecopontos são equipamentos que permitem à população o descarte de resíduos, possibilitando a coleta seletiva. Visam a destinação correta desses materiais, evitando seu abandono em ruas, calçadas e terrenos. Nos Ecopontos é possível trocar os resíduos por créditos na conta de energia ou por moeda social, que posteriormente pode ser convertida em real e utilizada no comércio local. Atualmente, em Fortaleza, existem 70 Ecopontos, em todas as regionais.
Indústria da Reciclagem
Do ponto de vista das Indústrias de Reciclagem, Bruno Bertrand, diretor técnico do Sindiverde, pontua que, “de forma simplificada, para a Indústria da Reciclagem, o Estado, por meio da PNRS, evidenciou e reconheceu o valor dos resíduos como matéria-prima da Indústria, mas pecou na quantificação da importância mercadológica deste, pois não promoveu nenhuma política, por exemplo, que realmente desonere os tributos da cadeia econômica da reciclagem. Erro este que vem se mostrando muito sensível, na medida em que o Estado esperava que o próprio Mercado custeasse a inclusão social dos catadores, o que não acontece e que acaba por criar uma rede econômica frágil e marginal de resíduos”.
O Sindiverde conta atualmente com 60 empresas em sua base de associados, dentre elas: recicladoras, transformadoras, de coleta e destinação final.
A Lumar indústria e Comércio de Plástico é uma das empresas de Fortaleza que obtêm matéria-prima de empresas recicladoras. A indústria compra o grão moído do material já pronto para ser transformado em novos produtos e possui uma linha com mais de 200 produtos, entre utilidades domésticas e brinquedos, e para a produção do último ano, utilizou 700 toneladas de materiais recicláveis.
Luciana Moreira, diretora da indústria, ressalta a importância das recicladoras: “Elas nos ajudam a comprar o material já pronto para a utilização. Vejo como vantagem a utilização dos materiais recicláveis, uma vez que conseguimos baixar o custo de produção, já que muitas vezes pegamos materiais preparados em cores especificas e não necessitamos usar nenhum composto para chegar à cor desejada. Além, claro, de contribuir para o meio ambiente. É uma cadeia em que todos saem lucrando”.
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Assunto de grande relevância que precisa ser visto com mas carinho pelo podepúblico, A PNRS veio para que hamudança de paradigmas. O avanço também está em formar equipes envolvidas e com enteresse que as coisa realmente aconteça.
Existe algum projeto para levar alunos até o aterro sanitário?