A região desponta como território estratégico no enfrentamento da crise climática global e aponta saídas criativas para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável

O Semiárido brasileiro começa a ocupar um novo papel no mapa do clima global: o de potência verde. Região antes associada à escassez, o Nordeste desponta como um dos territórios mais promissores para o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono, baseada em energias renováveis, bioeconomia e saberes tradicionais.
Essa visão foi reafirmada durante a terceira Conferência Internacional sobre Clima e Desenvolvimento em Regiões Semiáridas (ICID III) e a COP Nordeste, realizadas em setembro, em Fortaleza, e que colocaram em pauta a urgência de valorizar as regiões secas, territórios que abrigam quase metade da população mundial e que são vulneráveis à desertificação.
“As ações para enfrentar a crise climática têm que acontecer na dimensão da economia. É na economia que está a origem dos impactos ambientais e também onde estão as soluções”, afirma Sérgio Xavier, coordenador executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima e enviado especial da COP30.
Energia e novas cadeias produtivas
Xavier destaca que o Nordeste é “uma das regiões do mundo com mais potencial para gerar energia renovável – solar, eólica, biomassa e hidrogênio verde – e para desenvolver uma bioeconomia baseada nas suas vocações locais”.
Ele propõe modelos cooperativos de mercado de carbono que incluam pequenos agricultores e remunerem a preservação ambiental, a partir de experiências já em curso na Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro e um dos mais eficientes na captura de carbono.
“Já passou o tempo de termos uma economia destruidora e um movimento artesanal tentando consertar. Agora, a própria economia precisa internalizar os compromissos de regeneração e restauração em seus modelos de negócios”, completa Xavier.
Para ele, a construção de cadeias econômicas sustentáveis exige integração entre todos os setores: “O consumidor, o trabalhador, o investidor, o cientista, o agricultor, todos precisam estar presentes desde o início. Estamos construindo um laboratório vivo de soluções”.
Carbono Integral

Gestor ambiental e ativista socioambiental em prol do bioma Caatinga e do Rio São Francisco, Haroldo Oséias de Almeida é o atual presidente da Associação dos Produtores de Crédito de Carbono Social do Bioma, diretor técnico da Cooperativa de Crédito de Carbono Integral, Turismo Regenerativo, Energias Renováveis e Agroecologia Familiar do Bioma Caatinga e do Semiárido.
Ele explica que, tanto a Associação quanto a Cooperativa estão há um bom tempo constituídas. “Uma das vitórias é a escrita científica do modelo de identificação de processo de absorção de carbono, apresentada em alguns espaços científicos, como congressos. Já estamos com cerca de oito artigos científicos falando um pouco sobre toda essa dinâmica do crédito de carbono integral’, comemora.
No momento, eles estão com a proposta Crédito de Carbono Integral (CCI-BSHE): metodologia brasileira para identificar e certificar absorções em vegetação nativa – experimental na Caatinga para ser uma das impulsionadas pela COP30. Mas carece de voto popular, na Plataforma Brasil Participativo.
Mas reconhece ainda muitos desafios. Primeiro, a implementação: “a base teórica está bem fundamentada, mas precisamos de um fomento inicial para a estruturação técnica, principalmente de todo o aparato para colocar a ideia do carbono integral para avançar”.
Ele informa que a associação já tem membros em Alagoas, Sergipe, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Piauí. Hoje, com 108 associados, e a Cooperativa com 85. “Estamos bem avançados nesta organização e com uma proposta de legislação de governança estadual e municipal para o mercado carbono”.
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Território estratégico
O Nordeste, que tem a maior parte do seu território sob o clima semiárido, abriga 28 milhões de pessoas e representa 10% do território nacional. Essa densidade humana e ambiental torna a região essencial na agenda climática. “O importante é que as regiões secas precisam ser ouvidas nos debates climáticos”, defende Antonio Rocha Magalhães, diretor das três edições da ICID.
Ele lembra que as terras secas cobrem 45% dos continentes e abrigam 2,4 bilhões de pessoas e enfrentam desafios comuns de desertificação e escassez hídrica. “O interior sustenta as capitais da região e o Semiárido é vital para o equilíbrio do País”, reforça.

Políticas públicas e integração
Para Alexandre Pires, diretor do Departamento de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), a transição para uma economia verde depende de fortalecer as políticas locais e integrar os níveis de governo.
“Já há muitas iniciativas. Precisamos de arranjos entre municípios, estados e Governo Federal”, diz. “Nos municípios é onde a degradação acontece, mas também onde nascem as soluções”, completa.
Pires também defende que o Brasil deve usar melhor seus próprios recursos: “a cooperação internacional é importante, mas o País tem capital suficiente. O que falta é inteligência na aplicação e conexão entre as instituições e os territórios”.
Ciência pelo desenvolvimento

A pesquisadora Lúcia Kiill, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Semiárido, vê a região como um laboratório natural de soluções climáticas tropicais. “Há mais de 40 anos desenvolvemos pesquisas com espécies nativas da Caatinga, promovemos alternativas de bioeconomia antes mesmo de esse termo se popularizar”, explica.
Ela destaca que o Semiárido brasileiro é um dos maiores territórios semiáridos tropicais do mundo, o que o torna estratégico para pesquisas e inovações replicáveis em outras regiões do Planeta.
“Nosso trabalho na Embrapa Semiárido se organiza em três frentes: agricultura dependente de chuva, agricultura irrigada e manejo sustentável dos recursos naturais, pilares que colocam o Semiárido no centro do debate climático”, diz.
Saberes e resiliência

O físico e climatologista Alexandre Araújo Costa, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), destaca que o Semiárido carrega um patrimônio imaterial de saberes tradicionais que nasceram da convivência com a seca: “a cultura das comunidades locais se fortaleceu em oposição à antiga lógica de ‘obras contra as secas’ e criou um modelo próprio de convivência com o Semiárido”.
Costa, que é membro do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, defende que políticas de adaptação precisam dialogar com o conhecimento tradicional, pois “não se faz plano de recursos hídricos ou de combate à desertificação ignorando os movimentos sociais e as experiências comunitárias”.
O professor critica ainda a invisibilidade do Nordeste nas agendas climáticas: “mesmo com uma COP no Brasil, o Semiárido e a Caatinga seguem esquecidos. E isso é um erro grave, porque aqui está a outra perna do enfrentamento climático: a construção de resiliência a partir das comunidades”, reforça.
A força da bioma
Esse mesmo olhar de convivência é o que move Francisco Campello, diretor técnico da Fundação Araripe e membro da Reserva da Biosfera da Caatinga. Ele afirma que o Nordeste aceitou a seca como um fenômeno e aprendeu a conviver com ela, transformando-a em oportunidade: “trabalhamos com boas práticas de produção que têm um olhar carinhoso e técnico para o solo, com tecnologias sociais acessíveis ao agricultor”.
Campello destaca práticas de manejo florestal sustentável e integração lavoura-pecuária-floresta que mantêm a biodiversidade, garantem segurança alimentar, hídrica e energética e geram renda: “hoje a Caatinga responde por 30% da matriz energética do Nordeste e sustenta o rebanho caprino do País. Isso é bioeconomia na prática”.

Inspiração para o mundo
A convergência entre ciência, políticas públicas e saberes locais mostrou, na ICID III, que o Nordeste não é apenas uma região vulnerável, mas um território estratégico. Em suas paisagens de resistência, emerge uma síntese possível entre adaptação, inovação e tradição.
Mais do que resistir, a região aponta caminhos para uma economia regenerativa, que alia tecnologia, natureza e conhecimento popular. “O Semiárido é parte da solução, e não um problema”, resume Lúcia Kiill. “O desafio agora é fazer da convivência com o Semiárido um modelo global de prosperidade climática”.