Convivência inspira caminhos para a justiça climática

Agroecologia e saberes locais se afirmam como respostas à perda de biodiversidade e à emergência climática no Brasil. Esta é mais uma matéria da nossa série sobre o tema

A foto mostra uma área de jardim ou viveiro de plantas sob uma cobertura de tela de sombreamento preta, sustentada por troncos finos e galhos, criando um ambiente de sombra parcial. O chão é de terra. Diversas plantas de diferentes tamanhos e tipos preenchem o espaço, algumas em vasos e outras diretamente no solo. Em primeiro plano, à esquerda, há um recipiente cinza com o que parece ser cebolinha ou outra erva de folhas longas e verdes, apoiado em uma estrutura de metal branco que parece ser uma escada virada ou um suporte improvisado. Outros vasos e sacolas plásticas pretas contendo mudas e plantas menores estão espalhados, incluindo um grande vaso redondo à direita com plantas maiores. A vegetação é exuberante, indicando um quintal produtivo bem cuidado
Quintal produtivo na Comunidade Sussuarana, em Juazeirinho (PB) | Foto: Arnaldo Sete / ASA Brasil

O Semiárido brasileiro, historicamente associado à escassez e à seca, emerge como referência global na construção de soluções frente à emergência climática. No centro dessa transformação está a lógica da convivência com o Semiárido, um modelo de desenvolvimento baseado na valorização dos saberes locais, na gestão comunitária da água e na Agroecologia como forma de produzir e cuidar da vida.

Essa perspectiva vem sendo fortalecida por iniciativas da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), que destacam, durante o 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), que será realizado de 15 a 18 de outubro, o lançamento do mapeamento “Agroecologia, Território e Justiça Climática”, pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

“A biodiversidade é fundamental para a manutenção da vida no Planeta, para a fotossíntese, para a saúde dos solos e para a produção de alimentos. A perda de espécies nativas e agrícolas, agravada pelo aumento da temperatura e pela alteração do regime de chuvas, revela um cenário de risco”, alerta Helena Lopes, pesquisadora e integrante do Grupo de Trabalho Justiça Climática da ANA.

Ela explica que o estudo identificou o desaparecimento de espécies tradicionais de milho, ameaçadas pela contaminação por organismos geneticamente modificados, e variações extremas no volume e no calendário das chuvas. Ao mesmo tempo, o levantamento mostra o papel das práticas agroecológicas na manutenção e recuperação da biodiversidade, por meio do manejo do solo, da compostagem, dos sistemas agroflorestais e das casas e bancos comunitários de sementes.

Entre as experiências que expressam essa resistência está o trabalho de Roselita Victor, assentada da reforma agrária em Remígio (PB), liderança do Polo da Borborema e integrante da Coordenação Executiva da ASA Brasil pelo Estado da Paraíba. Para ela, a Agroecologia é mais do que uma técnica de cultivo, é um modo de viver e de organizar o território.

Organização social

“A Agroecologia não é apenas produção. Ela é também organização social. Aprendemos a olhar para a natureza, a alimentar a terra, a construir coletivamente”, afirma. “Convivência com o Semiárido não é lutar contra a seca, é aprender com ela. É compreender que esse lugar tem sabedoria e que as famílias camponesas são guardiãs das sementes, das águas e da biodiversidade.”

Roselita destaca o papel das sementes crioulas, conhecidas na Paraíba como sementes da paixão, como patrimônio da humanidade e elemento central da soberania alimentar. “São sementes adaptadas ao território, conservadas há gerações. Essa diversidade é o que garante nossa segurança alimentar”, diz.

Para Cláudio Ribeiro, assessor de coordenação do Programa Sementes do Semiárido da ASA, as experiências com manejo da agrobiodiversidade são as que melhor expressam o potencial de resistência do Semiárido frente aos efeitos das mudanças climáticas. “As sementes crioulas dessa região são adaptadas ao clima quente e a condições extremas, como a falta de água e solos pobres. Elas carregam o conhecimento tradicional acumulado ao longo de gerações e garantem autonomia técnica e diversidade alimentar às famílias camponesas”, explica.

Ele acrescenta que práticas de captação e reúso da água também são essenciais para fortalecer a convivência com o bioma. “A falta de água é o principal limitante no Semiárido. As tecnologias de manejo hídrico e a criatividade popular para responder aos desafios climáticos são expressões da força viva e da capacidade de renovação dos povos da região”, resume.

Descentralização das tecnologias

A foto, capturada em plano detalhe, mostra dois homens em processo de construção e reboco de uma grande cisterna de formato arredondado. A superfície da cisterna é de concreto, com a parte inferior e lateral recebendo uma camada de reboco fresco e úmido. O homem à esquerda usa uma camisa polo listrada de verde e cinza, um boné escuro e manguitos longos nos braços; ele aplica o reboco na lateral superior da estrutura com uma desempenadeira retangular. O homem à direita, vestindo um moletom azul com capuz e um boné por baixo, está curvado e aplica o reboco na lateral inferior com uma colher de pedreiro. Um fino cano azul está visível embutido no reboco na lateral da cisterna. O plano de fundo superior revela terra ou argila, sugerindo que a cisterna pode estar sendo construída semienterrada
Pedreiros constroem cisterna na comunidade Lagoa do Xavier, em Soledade (PB) | Foto: Mickaelly Moreira / Asacom

Essas inovações se somam a outras experiências desenvolvidas no campo, como os fogões ecológicos, que reduzem o uso de lenha e a emissão de fumaça, e para o Programa Um Milhão de Tetos Solares, iniciativa da ASA que propõe descentralizar a geração de energia a partir da captação solar nas propriedades familiares.

“Não queremos um modelo centralizado de energia que repete a lógica dos grandes açudes. Assim como o programa das cisternas democratizou o acesso à água, queremos descentralizar a energia e fortalecer a autonomia das famílias”, explica Roselita. “A convivência com o Semiárido é descentralizar, proteger e conservar.”

Para Cícero Félix, da coordenação executiva da ASA Brasil, essa mudança de paradigma é fruto de uma longa trajetória de organização social. Ele lembra que, durante séculos, o Semiárido foi visto como um território inviável e que a ASA foi decisiva para inverter essa narrativa.

“Os colonizadores impuseram a lógica de enfrentamento: combater a natureza, negar o Semiárido, destruir sua sociobiodiversidade. A convivência propõe o contrário: ver a natureza como aliada, aprender com ela, cuidar das diversas formas de vida”, afirma.

Cícero destaca que políticas como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) transformaram profundamente a realidade das famílias agricultoras, garantindo acesso à água, renda e dignidade. “A água foi o elemento que inverteu a lógica da ‘indústria da seca’. Ela permitiu o florescimento de novas formas de viver e produzir, baseadas no direito e na autonomia”, observa.

Com a COP 30 se aproximando, os movimentos do Semiárido pretendem levar ao debate global uma mensagem clara: a de que a justiça climática passa pelo reconhecimento dos saberes territoriais.

“A mensagem que o Semiárido levará à COP é a da convivência com os biomas e da Agroecologia como estratégia para a justiça climática. Precisamos de políticas estruturantes que garantam o direito à alimentação, à água e à vida digna, sem repetir modelos que expropriam pessoas e natureza”, resume Cícero Félix.

O Semiárido que ensina

As experiências reunidas pela ASA e pela ABA demonstram que o Semiárido, longe de ser um território de carência, é um laboratório vivo de inovação social e ecológica. A convivência com o clima, construída com base na escuta da natureza, no protagonismo das comunidades e na partilha do conhecimento, tem mostrado ao Brasil e ao mundo que é possível produzir, preservar e viver com dignidade mesmo sob condições climáticas adversas.

Agroecologia e Justiça Climática em números

503 experiências agroecológicas identificadas em 307 municípios do País
Mais de 20 mil pessoas envolvidas, entre agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais
56,3% relataram diminuição da produção devido às mudanças climáticas
48,1% registraram perda de alimentos
36,2% perceberam desaparecimento de espécies e variedades vegetais nativas
70,7% das práticas envolvem manejo e conservação do solo
63% diversificação dos sistemas produtivos
52,7% compostagem
42% manejo da água
26,2% tratamento ecológico de esgotos

Fonte: Mapeamento “Agroecologia, Território e Justiça Climática” (ANA, 2025)

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