Bancos de sementes reforçam resiliência do Semiárido

Estruturas cuidadas por agricultores e agricultoras oferecem respostas concretas à crise climática. Novo levantamento da ASA reforça a urgência de fortalecer essas iniciativas. Esta é mais uma reportagem da série sobre a importância do Nordeste na pauta climática

A foto mostra uma fileira de garrafas plásticas reaproveitadas, alinhadas sobre um balcão cor-de-rosa. Dentro de cada garrafa estão diferentes tipos de sementes, como milho e feijões de várias cores e tamanhos, algumas mais claras, outras escuras. As tampas das garrafas são variadas — vermelhas, verdes, laranjas, brancas e pretas. Ao fundo, vê-se o interior simples de uma casa com paredes pintadas de rosa e teto de telhas à mostra
Essas estruturas comunitárias fazem parte de um sistema de gestão coletivo, organizado pelas próprias famílias agricultoras | Foto: Cláudio Ribeiro / ASA

Enquanto o mundo debate as metas climáticas e o colapso dos ecossistemas, no coração do Semiárido brasileiro pulsa uma rede silenciosa de resistência. São as casas e bancos comunitários de sementes crioulas, estruturas simples carregadas de história, saber e biodiversidade.

Ali, agricultores e agricultoras selecionam, guardam, multiplicam e trocam variedades de sementes adaptadas ao clima local, mantêm vivas práticas ancestrais e constroem, dia a dia, respostas concretas à crise ambiental.

As famílias estão envolvidas profundamente nessa movimentação. Trazem até uma carga de emoção nos nomes de “batismo” das sementes, como: sementes da “liberdade”, “resistência” ou “paixão”.

Essas estruturas comunitárias fazem parte de um sistema de gestão coletivo, organizado pelas próprias famílias agricultoras. Muitas nasceram dentro do Programa Sementes do Semiárido, coordenado pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), e hoje representam uma frente importante na luta contra a desertificação e o esvaziamento rural.

O mais recente mapeamento promovido pela ASA, o “Levantamento Avaliativo das Casas ou Bancos de Sementes no Semiárido” – lançado durante um seminário transmitido pelo YouTube – revela a abrangência e o impacto dessa rede. São 875 casas e bancos de sementes em 29 territórios, que beneficiam diretamente mais de 15 mil famílias. Ao todo, foram identificadas 262 variedades de feijão, 108 de milho, 75 de fava e dezenas de hortaliças, frutíferas e espécies florestais nativas.

É importante destacar o papel dessa linha de ação ao se considerar, no panorama nacional, o Boletim Temático Desertificação, lançado em julho de 2025. Ele mostra que cerca de 18% do território brasileiro está suscetível à desertificação.E que aproximadamente 39 milhões de pessoas vivem em Áreas Suscetíveis à Desertificação (ASD).

Essas regiões cresceram 170 mil km² entre 2000 e 2020, um território maior que os estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas somados. A desertificação, nessas áreas, compromete solos, água, biodiversidade e segurança alimentar.

Do território às negociações

A foto mostra uma pequena casa simples de alvenaria pintada de branco, com telhado de telhas de barro, no meio de uma área rural. Acima da porta, em letras verdes, está escrito: “Casa de Sementes da Fartura Lauro Chaves dos Santos”. Em frente ao prédio estão dois homens usando chapéus de palha, um deles vestido de preto e o outro de jaqueta amarela, ambos sorrindo. À esquerda, no primeiro plano, há flores cor-de-rosa. O céu está azul com nuvens brancas, e a casa é cercada por árvores e um cercado rústico de madeira
A cada safra, guardiãs e guardiões escolhem os grãos mais resistentes e adaptados às condições climáticas da região e com isso, alimentam o ciclo da agrobiodiversidade | Foto: Kléber Nunes / ASA

A cada safra, guardiãs e guardiões escolhem os grãos mais resistentes e adaptados às condições climáticas da região. Com isso, alimentam o ciclo da agrobiodiversidade e enfrentam os efeitos do aquecimento global com práticas sustentáveis, sem depender de pacotes tecnológicos externos.

“O uso de sementes adaptadas é extremamente importante porque garante, num primeiro momento, a autonomia e a soberania alimentar dessas famílias. Além disso, é um elemento fundamental para a manutenção da diversidade biológica, pois essas sementes estão adaptadas ao clima local”, explica o pesquisador Fernando Curado, da Embrapa Alimentos e Territórios.

Para a ASA, o fortalecimento desses bancos deve ser entendido como política climática e não apenas como ação agrícola. “As práticas desenvolvidas pelas famílias guardiãs em seus territórios servem como recomendações para a formulação de novas políticas públicas capazes de superar esses desafios revelados pelo estudo (Levantamento Avaliativo das Casas ou Bancos de Sementes no Semiárido). São medidas que precisam promover a agrobiodiversidade, entendendo esta como ferramenta para criar sistemas mais resilientes de produção e consumo de alimentos saudáveis, ao mesmo tempo preservando os biomas”, defende Claudio Ribeiro.

Esse protagonismo das comunidades é ainda mais relevante diante dos desafios ambientais enfrentados por territórios como o de Jucati (PE), onde vive o agricultor Givaldo Pimentel. O município está entre os 100 brasileiros com maior percentual de área em desertificação severa – níveis 4 e 5 -, segundo o Boletim Temático Desertificação. Diante desse cenário, a expectativa do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) é que a realização da COP30 no Brasil ajude a colocar o tema no centro das negociações globais e a atrair investimentos que fortaleçam soluções baseadas na natureza e no conhecimento dos povos do Semiárido.

Patrimônio ameaçado

A imagem mostra de perto uma vagem de feijão aberta, segurada por uma mão. Dentro dela, estão três grãos de feijão ainda frescos, de cor branca com manchas e pintas rosadas, que dão um aspecto rajado. O fundo da foto está desfocado, mas é possível perceber outras vagens
A seca prolongada, a falta de apoio técnico, o avanço de transgênicos e o desinteresse das novas gerações ameaçam a continuidade do trabalho | Foto: Cláudio Ribeiro / ASA

Apesar da importância, os bancos de sementes enfrentam riscos reais. O estudo da ASA revela que pouco mais da metade das casas e bancos mapeados estão desativados ou extintos (50,4%). Dos 49% restantes, 42,6% estão funcionando e outros 7% não existem mais. As porcentagens correspondem a 441, 373 e 61, respectivamente. A seca prolongada, a falta de apoio técnico, o avanço de transgênicos e o desinteresse das novas gerações ameaçam a continuidade do trabalho.

“Muitas vezes o pessoal desanima da roça de sementes, principalmente pelo valor comercial da semente crioula”, relata Givaldo, que faz parte da Rede Municipal de Sementes de Jucati. O agricultor também afirma que existem questões financeiras que dificultam, principalmente na hora de realizar encontros e reuniões, “Isso é o nosso grande desafio para manter o banco de sementes”.

As dificuldades se agravam com o afastamento das novas gerações. “Nós temos dificuldades com os jovens. Tanto na sucessão rural, quanto no banco de sementes”, conta Givaldo. Ele explica que, mesmo dentro da própria família, o incentivo à educação formal acaba afastando os jovens do campo: “A gente mesmo costuma dizer que o filho ou o sobrinho tem que estudar para ter uma vida melhor”.

Apesar do êxodo rural ser uma realidade em muitas regiões, há movimentos que apontam para o caminho inverso. Em diversas comunidades, jovens que tiveram acesso à educação formal estão retornando ao campo com um novo olhar sobre a agricultura familiar. Combinam o saber acadêmico com os conhecimentos tradicionais.

Além das dificuldades de sucessão, outro risco preocupante é a contaminação por transgênicos. Segundo o pesquisador Fernando Curado, o problema atinge especialmente cultivos de polinização aberta, como o milho crioulo, que sofre contaminação cruzada por meio do pólen transportado por vento, água ou insetos.

Essa realidade tem gerado preocupação entre agricultores, que relatam a perda de variedades crioulas. Curado reforça que “as ações têm se voltado para o monitoramento dessa contaminação”, mas reconhece que isso ainda é insuficiente. Para ele, “os riscos principais estão exatamente na perda dessa agrobiodiversidade, a partir da erosão genética”.

Mesmo diante desse cenário, a ASA reforça que é possível reverter parte das perdas. “As que estão inativas podem voltar a operar com ações simples, como a recomposição dos estoques”, afirma Claudio Ribeiro, assessor de coordenação do Programa Sementes do Semiárido da ASA.

Ele ainda destaca que manter quase metade das casas ativas já é, por si só, um feito relevante: “Essa realidade de resistência das famílias agricultoras e guardiãs tem ainda mais valor se considerarmos que, em mais da metade desse tempo, vivemos sob os governos Temer e Bolsonaro, marcados por severos contingenciamentos de recursos públicos destinados aos programas sociais”.

A desmobilização, segundo ele, foi agravada pela pandemia de Covid-19, que paralisou ações em campo e enfraqueceu redes locais. “Essa conjuntura evidencia a importância de políticas públicas contínuas, investimento em assessoria técnica agroecológica e o fortalecimento de redes de cooperação entre as comunidades, como pilares fundamentais para garantir a sustentabilidade e a longevidade dessas iniciativas”, defende.

Ações de restauração

O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima considera os bancos de sementes como instrumentos estratégicos para ações de restauração ambiental e combate à desertificação. Uma das propostas é incluir sementes nativas da Caatinga nas casas já existentes.

Em resposta à Eco Nordeste, a pasta afirma: “o relatório do projeto aponta a viabilidade de incorporar as sementes nativas da Caatinga nas casas e bancos comunitários de sementes crioulas. O que é algo muito positivo”. A ideia é utilizar essas estruturas como uma base de dados sobre os recursos genéticos disponíveis e facilitar ações de recuperação ambiental.

“Se pensarmos que as mais de 1.000 Casas e Bancos Comunitários de sementes crioulas estão espalhadas por dezenas de municípios da Caatinga, podemos ter uma plataforma de informações de onde estão as disponibilidades desses recursos genéticos, que podem apoiar projetos de restauração produtiva e recuperação da vegetação nativa da Caatinga”, pontua.

A construção de políticas efetivas, segundo o Ministério, depende da articulação com outros programas, como o Cisternas e o de Assessoria Técnica Agroecológica. “Construir esse arranjo requer dialogar com várias áreas do governo e atores estratégicos”. Segundo o MMA, esse é um ponto de atenção recorrente para a ministra Marina Silva, que tem reforçado a urgência de garantir meios para financiar a proteção dos recursos genéticos e fortalecer a cadeia da restauração.

A força das redes

O Projeto Redeser, retomado em 2023 após uma paralisação de quase 4 anos, destina R$ 19 milhões para ações de conservação da biodiversidade e práticas agroecológicas, do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF). Segundo a ASA, a expectativa é que, com essa etapa do projeto, sejam manejados mais de 13 mil hectares de forma sustentável em 14 municípios, de forma a beneficiar cerca de 200 famílias com a implantação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) e práticas de Gestão Integrada dos Recursos Naturais (GIRN).

Mas, conforme alertam agricultores e especialistas, a restauração do Semiárido precisa ir além do plantio de mudas. “Estamos em um momento muito positivo, de retomada de um projeto em parceria com a ASA, dialogando com as unidades gestoras para ações voltadas exatamente para o fortalecimento dos bancos e casas de sementes, para realização de ensaios de variedades crioulas, testes e avaliações com os agricultores, em experimentação participativa. Tudo isso em ambientes profundos de capacitação, de diálogo de conhecimentos”, aprofunda Curado.

Para a ASA, fortalecer essas redes é fortalecer também as bases de uma política climática de longo prazo. Afinal, a sabedoria popular que seleciona, cultiva e compartilha sementes há gerações oferece caminhos viáveis para construir sistemas produtivos resilientes, alinhados com a recuperação dos biomas e a segurança alimentar.

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