A maioria da população do Planeta habita espaços urbanos, e está cada vez mais desconectada dos ambientes naturais. O ar puro, frescor, água limpa e outros serviços ambientais nos são prestados pela natureza diariamente e, sem que percebamos, são fundamentais. Em Fortaleza, felizmente, ainda temos alguns espaços que nos garantem contato com a biodiversidade. Um dos mais importantes indicadores da conservação desses ambientes verdes urbanos é a presença de animais silvestres.
As copas das árvores filtram a luminosidade, amenizam o calor, os ruídos produzidos pela cidade. A nossa presença nesses espaços ajuda, ao mesmo tempo, na reconexão das pessoas com os ambientes naturais, que nos fazem tão bem, e a estabelecer o sentimento de pertencimento necessário à sua valorização e à manutenção desse bem comum.
Foi com o desejo de registrar algo da fauna urbana de Fortaleza que esse material foi produzido. Bastaram três tardes de caminhadas e esperas por trilhas, jardins, incluindo a navegação pelo Rio Cocó para avistarmos e registrarmos o que está lá e nos faz bem, ainda que não estejamos atentos. A meta de testemunhar e mostrar um pouco do que se pode ver além das nossas casas, trabalhos e percursos urbanos foi cumprida.
No Campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Campus da Universidade de Fortaleza (Unifor) e Parque Estadual do Cocó, registramos, nestes curtos intervalos, mais de 35 espécies da fauna silvestre. A acadêmica de Ciências Biológicas Thaís Abreu Camboim acompanhou todas as incursões. A maioria dos registros fotográficos desta reportagem é dela. Mas ouso publicar alguns dos meus também.
Relações perigosas
A Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) da Matinha do Pici tem 42,62 hectares e é constituída pela vegetação de Mata de Tabuleiro. A flora foi alvo de um levantamento em 2018, mas a fauna ainda está em fase de pesquisa. Entre as principais ameaças aos animais relacionadas pelo biólogo Gabriel Aguiar e pela estudante Thaís Abreu estão a falta de conectividade com outras áreas verdes, poluição do açude e presença de animais domésticos (gatos e cachorros).
“A presença de espécies exóticas invasoras é a segunda maior causa de perda de biodiversidade do Planeta”, explicou Gabriel ao avistar um gato sobre uma árvore, na Matinha do Pici. “Cada gato, no sistema urbano, preda uma média de cinco animais silvestres por mês, além de transmitir doenças”, revela. “Sobrevivem melhor os representantes da fauna local mais generalistas e resistentes”, completa.
Caminhando pelo entorno do açude, nós registramos 12 espécies, sendo 11 aves e um inseto, o Bicho-pau (Stiphra sp., gênero da família Proscopiidae, a família dos Manés-magos). Mesmo em meio ao lixo acumulado, a revoada de garças encanta os transeuntes, sobretudo ao amanhecer e ao cair da tarde. Nós, particularmente, fomos brindados, num fim de tarde, com a contemplação de um jovem Socó-boi que não se intimidou pela nossa presença e nos observava tanto quanto nós, por trás das lentes de câmeras e smartphones.
Jardins de contemplação
O campus da Unifor também tem uma grande área verde em torno de um açude, adjacente ao Parque Estadual do Cocó, e muitos jardins com frondosas árvores. Lá, em uma tarde, registramos 30 espécies diferentes, todas aves. Testemunhamos o recolher das garças, entre elas Garças-vaqueiras (Bubulcus ibis), Garças-brancas-grandes (Ardea alba) e Garças-brancas-pequenas (Egretta thula), na vegetação que fica no centro do açude, ao cair da tarde.
Vimos, também um grupo de Periquitos-de-encontro-amarelo (Brotogeris chiriri) comendo os frutos de uma Castanha-da-índia (Sterculia foetida L.), espécie exótica oriunda da Índia e Malásia; e um casal de Sibites-relojoeiros (Todirostrum cinereum) alimentando os seus minúsculos filhotes.
O Campus da Unifor possui mais de 720 mil metros quadrados e se localiza ao lado do Parque do Cocó, tornando-o um local de transição entre o Parque e o meio urbano, onde podemos encontrar espécies de ambos os ambientes. “Porém, espécies mais sensíveis e exigentes, restritas dos remanescentes de vegetação nativa, não ocorrem no Campus, como em outras áreas verdes da cidade”, detalha Thaís.
[blockquote author=”Thaís Abreu” pull=”pullright”]”O Parque do Cocó é fundamental para a sobrevivência de espécies que antes habitavam os locais aonde a gente mora hoje”[/blockquote]Apesar disso, encontra-se na Unifor uma diversidade maior de espécies que no ambiente urbano em si, por essa proximidade com o Parque do Cocó. “A Unifor e as outras áreas verdes de Fortaleza são importantes porque servem como refúgios para a fauna que ainda consegue sobreviver em meio à cidade, lhe sendo importante porque dispersa sementes, controla pragas e doenças e também traz mais vida e sorrisos à nossa cidade”, destaca a estudante.
Entre o rio e as trilhas
“As diversas praças e áreas verdes da Cidade não são suficientes para manter os animais que existiam aqui antes. Fortaleza é quase totalmente urbana e a maior parte da cobertura vegetal que ainda existente está dentro do Parque do Cocó. Em comparação com outras áreas verdes de Fortaleza, o Parque, mesmo bastante degradado, é o que há de mais próximo do que foi a natureza antes. Apesar de não ser da maneira ideal, os animais têm como sobreviver, se alimentar e se reproduzir neste ambiente que já foi tão impactado no passado, e até hoje sofre as consequências disso. A Cidade cresceu e foi empurrando os animais sobreviventes para esse pequeno resto de mata que não foi devorado pela especulação imobiliária. O Parque do Cocó é fundamental para a sobrevivência de espécies que antes habitavam os locais aonde a gente mora hoje”, resume Thaís Abreu.
Começamos nossa expedição vespertina no Parque Estadual do Cocó navegando pelas águas do principal manancial de Fortaleza. O desconforto causado pelos raios solares das 13h foi amenizado pelo frescor do manguezal e dos respingos da movimentação da embarcação. Qualquer incômodo também se desfez quando avistamos exemplares da fauna silvestre que não são percebidos de perto tão facilmente. Entre o passeio pelo rio e a trilha, registramos 25 espécies, na maioria aves. Também avistamos calango (Tropidurus hispidus), um minúsculo caranguejo, o Chama-maré (Uca sp.) e um inquieto grupo de Saguis-de-tufos-brancos (Callithrix jacchus), popularmente chamados de “soins”.
No rio, fomos guiadas por Francisco de Assis Araújo Garcia, o tenente Araújo. Na reserva da Polícia Militar do Ceará (PM-CE), ele trabalhou no Parque entre 1991 e 2014. Ele ainda desenvolve atividades no local, de manutenção (trabalho voluntário); e também proporciona passeios pelas águas do Cocó a turistas, pesquisadores, contempladores da natureza e curiosos.
Para o tenente Araújo, a fauna silvestre do Parque já foi ameaçada pela presença de caçadores, no passado. Mas isso mudou e hoje considera o lugar um refúgio seguro para uma grande diversidade de aves, peixes e até mesmo mamíferos. “A fauna já atingiu uma situação estável aqui”, acredita.
Durante o passeio, vimos grupos de Anus-pretos (Crotophaga ani) e também dois dos seus ninhos, um com ovos e outro com dois filhotes. Tivemos ainda a sorte de avistar espécies incomuns na Cidade, como o tímido Tamatião ou Savacu-de-coroa (Nyctanassa violacea). E muitos Socozinhos (Butorides striata), cuja coloração muda belamente, de acordo com a luz que incide sobre as suas penas.
Oásis na selva de pedra
A área regulamentada do Parque Ecológico do Cocó é de 1.571 hectares e a extensão do Rio, de 46 quilômetros, de Pacatuba, município da Região Metropolitana de Fortaleza, à Praia de Sabiaguaba, na Capital do Ceará. A vegetação é constituída por Mata de Tabuleiro, Restinga e Manguezal.
As principais ameaças aos animais do Cocó, destacadas por Gabriel e Thaís, são destruição e fragmentação do seu hábitat; presença de animais exóticos invasores, principalmente gatos, e de plantas exóticas invasoras; além da ausência de plano de manejo.
Já entre os potenciais, eles o destacam como maior reservatório de fauna de Fortaleza; importante para a pesquisa científica e a Educação Ambiental; polo esportivo-ecológico; banco de espécies para as demais Unidades de Conservação; e aglutinador de movimentos sociais.
A bióloga Cecília Licarião, coordenadora de Educação Ambiental do Parque Ecológico do Cocó desde setembro de 2017, tem percebido muita coisa. “A maior lição é ver, na prática, a importância desses fragmentos florestais na Cidade. Fortaleza é gigantesca, muito habitada e cada vez menos verde. O Parque do Cocó é o maior fragmento verde e corta uma parte relativamente grande do espaço urbano. Imagina o tanto de animais que dependem desse fragmento para sobreviver, que não teriam outras áreas apropriadas para isso?”. Ela cita o exemplo das aves: “muitas que dependem de ambientes aquáticos, das lagoas, do rio; outras só se reproduzem em ocos de árvores, precisam de exemplares com diâmetros relativamente grandes para construírem os ninhos”.
Cecília explica que, na borda do Parque, há muitas espécies generalistas, que não têm muitas restrições, como, por exemplo, o Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus), o Suiriri (Tyrannus melancholicus), o Pitiguari (Cyclarhis gujanensis), o Sibite (Coereba flaveola) ou o Sibite-relojoeiro (Todirostrum cinereum). São espécies que não tão exigentes.
“Mas, quando a gente adentra um pouco mais, consegue observar espécies bem mais exigentes, por exemplo, o pica-pau. A gente não vê pica-pau em qualquer praça ou fragmento verde de Fortaleza, mas, só no Parque do Cocó, tem mais de cinco espécies. Há algumas espécies aquáticas também, como a Jaçanã (Jacana jacana), que é bem difícil de encontrar na Cidade. O Carão (Aramus guaraúna), uma espécie bem grande, no período reprodutivo, anda em bandos, tornando possível ser avistado no Parque. Isso mostra a qualidade do hábitat. Um fragmento de 1.571 hectares tem 130 espécies de aves diferentes. Tendo em vista que todo o Estado, com aproximadamente 410 espécies, é um número relativamente interessante”, anima-se.
Cecília reforça que as aves são muito utilizadas como indicadores de equilíbrio e desequilíbrio ecológico. “Um ambiente com muitas aves generalistas indica que não tem uma qualidade boa. Mas, se encontra espécies mais exigentes, indica que a área está suprindo as necessidades daqueles animais. E o Parque do Cocó tem sido importante, até mesmo para espécies migratórias, como os maçaricos”, destaca.
Segundo a bióloga, a importância para vida das pessoas está justamente no equilíbrio do ambiente. “É pouco provável, num ambiente superurbano, como o da Cidade de Fortaleza, fazer uma caminhada num parque e ele estar repleto de tanta riqueza. Se a gente desperta a curiosidade das pessoas é muito bom. Quantas andam ali diariamente e nunca viram um pica-pau na vida? Elas estão cercadas por eles. Quantas pessoas frequentam o Cocó e nunca viram uma raposa? Todos os dias os nossos funcionários vêm raposas. Essa questão da sensibilização é mais nesse sentido de conhecer, perceber as nossas riquezas de fauna e flora para poder preservar. Como preservar se não temos ideia do que tem ali e quão necessários todos aqueles bichos são para o equilíbrio ambiental?”, questiona.
Cecília admite que o Parque também vem perdendo muita coisa. “Os artrópodes, os crustáceos, vêm diminuindo, a gente vê bem menos caranguejos, isso é um fato, pelo impacto antrópico (do ser humano)”, lamenta.
Da nossa parte, vamos continuar divulgando para que as pessoas conheçam, valorizem e ajudem a preservar esse patrimônio comum que só nos faz bem.
Biodiversidade urbana: como as cidades podem contribuir para a conservação das espécies nativas
Marcelo Freire Moro – Professor do Labomar / UFC
Thaís Abreu Camboim – Graduanda em Ciências Biológicas / UFC
Gabriel Aguiar – Mestrando em Ecologia e Recursos Naturais / UFC
Quando falamos em conservar a biodiversidade, normalmente pensamos em florestas distantes. O que pouca gente percebe é que ela está bem perto dos moradores das cidades, embora muitas vezes passe despercebida aos olhos destreinados.
De fato, é nas florestas tropicais onde está a maior parte das espécies terrestres, mas cidades também podem manter uma boa riqueza das nativas, dependendo do quão amigável o planejamento urbano for para elas.
Em Fortaleza ainda encontramos soins, cassacos, raposas, tatus, guaxinins, iguanas, diversas aves, serpentes e lagartos. E no mar, até mesmo tartarugas, que ainda desovam nas praias da capital cearense, e golfinhos.
Podemos pensar nossas cidades e seu entorno para que sejam mais amigáveis com a fauna e a flora nativas, ampliando o papel ambiental das cidades.
Em primeiro lugar, podemos planejar o crescimento urbano para proteger os ecossistemas naturais ao redor da cidade. Nas florestas ao redor de São Paulo, por exemplo, ainda vivem espécies ameaças de extinção, como onças, tamanduás e macacos-muriqui, como foi recentemente revelado pelo Inventário da Biodiversidade daquele Município.
Fortaleza também tem um conjunto rico de ecossistemas em sua região metropolitana, desconhecidos pela maioria da população e altamente ameaçados. As serras de Pacatuba e Maranguape, as dunas, as lagoas e as florestas costeiras são alguns exemplos.
O segundo modo pelo qual as cidades contribuem para a conservação da biodiversidade é investindo no planejamento da sua arborização, parques urbanos e unidades de conservação de forma integrada, com foco na manutenção da biodiversidade.
Devemos pensar nesses espaços verdes como habitats e corredores ecológicos para as espécies, plantando preferencialmente árvores nativas de nossa região. Assim, teremos uma cidade com muito mais qualidade de vida para nós e para os demais seres que aqui vivem. A biodiversidade agradece.