Lei aprovada ameaça equilíbrio ambiental e urbano do Crato, no sul do CE

Por Adriana Pimentel
Colaboradora

O Crato já tem um histórico de inundação e área semelhante que foi ocupada e urbanizada. Ambientalistas e pesquisadores alertam que este será mais um problema para a segurança da cidade e o abastecimento de água da região | Foto: Márcio Holanda

Crato – CE. Sabemos que 2020 não foi nada fácil para ninguém, mas, para o meio ambiente, a situação foi ainda mais complicada e perigosa. Em todo o País foram inúmeras tentativas de “legalizar” ameaças e agressões. Na Região do Cariri cearense não foi diferente. Na noite desta segunda-feira (28), na última sessão da Câmara Municipal do Crato, por dez votos a seis, o Projeto de Lei (PL) Nº 1412001/2020, que dispõe sobre a desafetação da Zona Especial Ambiental (ZEA) Rio Batateiras, para transformá-la em Zona Residencial de média densidade (ZR3), foi aprovado.

A sessão, que estava marcada para às 9h, foi adiada para as 11h e somente iniciada às 18h, tinha como pauta o PL que foi aprovado há uma semana e logo vetado pelo prefeito José Ailton, que alegou inconstitucionalidade e ainda que era contra os interesses públicos. A discussão da sessão era para aprovar ou derrubar o veto. Depois de quase quatro horas, as mais de 90 pessoas que acompanhavam a sessão virtual comprovaram a total falta de compromisso com o meio ambiente. A derrubada do veto e aprovação do PL teve argumentos evasivos e claramente com base em interesses financeiros.

Segundo o promotor de Justiça Thiago Marques, o Ministério Público do Crato manifestou formalmente seu posicionamento sobre a agora Lei aprovada, apontando uma série de inconsistências legais no seu processo de tramitação, como a ausência de estudos técnicos e debate público aprofundado; sem contar toda a gama de implicações de ordem ambiental para o ecossistema do Rio Batateiras, e por conseguinte, de toda a Bacia Hidrográfica do Rio Salgado.

A fiscalização será um dos principais aliados na luta em defesa dessa área. Em entrevista exclusiva à Eco Nordeste, logo depois da votação, Thiago afirmou: “na continuidade da atuação ministerial, encaminharemos recomendações aos órgãos técnicos da Prefeitura do Crato para que não aprovem licenças para empreendimentos na região, bem como para as instituições financeiras que subsidiam empreendimentos imobiliários, alertando-as sobre as incursões jurídicas que se seguirão, bem como a importância ambiental da área. Por fim, manejaremos as ações jurídicas cabíveis e que se fizerem necessárias. São incursões legislativas como esta que fazem com que o “Cratim de Açúcar” cada vez mais perca seu verde, suas belezas naturais, deixando a doçura ser substituída por um fel que nos amargará pela eternidade”.

A região afetada pela Lei que acaba de ser aprovada fica próxima ao Rio Batateira e ao Rio Granjeiro. Estudiosos e ativistas questionam os riscos que possíveis construções, urbanização, pavimentação para a área que tem um papel fundamental de absorção da chuva e abastecimento hídrico da Região do Cariri.

Segundo Raquel Soares, da ONG BiodiverSe, mais de 40 organizações e coletivos se manifestaram contra o então Projeto de Lei: “Participamos, com outros representantes, da primeira sessão na Câmara. Demonstramos as inconsistências do PL e a importância das ZEAs. Mesmo assim foi aprovado por 11 votos a 5”.

Para embasar as denunciar de irregularidades encontradas, essas organizações e coletivos reuniram informações num abaixo-assinado. Entre elas, que o projeto se apresenta de forma dúbia: “No mapa descritivo, ao invés de constar ZE5 (Parque do Rio Batateiras), que seria o objetivo da proposta, consta ZE6, que corresponde ao Parque do Rio Saco Lobo. No próprio mapa descritivo anexado, as coordenadas e área apresentadas são do Sítio Monte Alegre (área de 5,2686 ha), enquanto no PL são as do Sítio Passagem, área de mais de 9 ha, conforme coordenadas disponibilizadas no PL e que realizamos a plotagem”.

Após a sessão que aprovou o PL, Raquel conversou com a Eco Nordeste e desabafou: “ficou clara uma coisa: a frase ‘contra fatos não há argumentos’ não se aplica ao que presenciamos e ficou gravado. Todos os fatos foram expostos pelo vereador Amadeu (que votou a favor do veto) e contrapostos com os argumentos dos vereadores que defendiam a derrubada do veto, mostrando que esses argumentos eram inverídicos. Mesmo assim, não respeitaram a opinião pública, a técnica e nem mesmo o Ministério Público, o que é lamentável vindo de quem deveria representar e defender os direitos do coletivo, não de particulares”.

Histórico de inundações

Essa decisão, de construir em uma área que deveria seguir protegida, coloca a cidade em mais risco, levando em consideração o seu histórico, com registros de inundações provocadas pela ocupação desordenada no entorno do Rio Granjeiro, onde algumas pessoas perderam até a vida por causa do grave desequilíbrio gerado pela ocupação desordenada do território. O problema é gerado pela combinação do desmatamento com a impermeabilização do solo pelas construções e pavimentações do avanço urbano sobre a área verde.

Segundo Edmar Pinheiro, professor do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri (Urca), essa aprovação é um retrocesso em termos de conservação dos ecossistemas e serviços ecossistêmicos citadinos e segue na contramão das boas práticas legislativas que visam assegurar uma cidade sustentável e o bem-estar para o conjunto da população.

“Permitir a ocupação de áreas de risco, como é o caso da área desafetada, é colocar em risco uma parcela da população que nem sequer sabe que poderá ser impactada diretamente por eventos extremos de chuva, com todas as consequências vastamente conhecidas. Aparentemente, o testemunho do Rio Granjeiro, um caso clássico de intervenção desastrosa em outro rio que corta a cidade, com episódios de perdas materiais e de vidas, não serviu de exemplo para que decisões desse tipo fossem novamente tomadas”, lamenta e alerta.

Na Região do Cariri, a Chapada do Araripe, primeira Floresta Nacional do País, além de todo o potencial ambiental que sua fauna e flora representam, compreende uma área de grande importância para manutenção dos recursos hídricos no clima Semiárido, com a absorção da chuva e a distribuição da água para toda a região. Além de ser o ponto de encontro da Caatinga, bioma predominante, com os biomas Cerrado e Mata Atlântica.

Mas, este importante ecossistema é alvo de muitas agressões, ao longo dos anos. João do Crato, artista e educador popular, além de ativista ambiental desde os 1980, afirma: “a Chapada do Araripe tem sofrido, ultimamente, muito com a especulação imobiliária, as pessoas desmatando, construindo, indo contra as nascentes, as beiras dos rios, sem respeitar as matas ciliares. Não respeitam nada e poluem os rios. É uma coisa que, mesmo a gente tendo uma certa organização nesta militância, a não tem conseguido barrar”.

E não é por falta de luta. Existe uma resistência e uma militância atuantes no Cariri. Mas João do Crato destaca: “nós temos encontrado muita dificuldade porque a especulação imobiliária vem assessorada por um sistema capitalista perverso, que não respeita nada. A nossa inspiração, aqui no Crato, seria de uma cidade que pudesse receber muito turismo ecológico para fazer trilhas na Chapada do Araripe, para conhecer as fontes naturais, até para conhecer a cultura popular, que é muito forte, e também a cultura contemporânea. Mas esse sistema vai na contramão de tudo porque as pessoas imaginam, e até sonham, que o crescimento é isso: destruir”.

Mobilização por um objetivo comum

“Apesar do resultado da sessão, destacaria como ponto positivo é que, normalmente, as ações que a gente realiza aqui são de cada coletivo, cada instituição focada na sua causa, na sua luta, de uma forma mais individual, ou com uma ou duas parcerias. Mas, essa situação serviu para movimentar o pessoal, os militantes pelo meio ambiente. Nós criamos um grupo de WhatsApp, demos o nome de Observatório Ambiental, para nos apoiarmos nas questões ambientais. O que tiver de ação, no mobilizamos lá e estaremos sempre atentos, sabendo que precisamos unir forças”, avalia a ativista Raquel Soares.

A luta em prol da defesa do meio ambiente seguirá, ressalta Edmar Pinheiro: “esperemos que essa decisão seja revista nesta nova legislatura que se inicia em janeiro, uma vez que a nova Lei aprovada, além de vícios técnicos insanáveis e de fragilidades jurídicas patentes, também não se consumou como um ato legislativo em sua plenitude, pois estão ausentes estudos técnicos sobre os impactos do processo de desafetação, bem como não foram realizadas audiências públicas para que o assunto fosse amplamente debatido, como preconiza a legislação pátria”.

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