‘Cuidar dos tubarões e dos oceanos é cuidar de nossa própria saúde’

Por Alice Sales
Colaboradora

Tubarão-cabeça-chata (Carcharhinus leucas), mesma espécie vítima de crime ambiental, em Cascavel-CE, no último mês | Foto: Kadu Pinheiro

Fortaleza – CE. Os tubarões cumprem um papel essencial ao ecossistema marinho. As espécies desses imensos peixes cartilaginosos ocupam uma posição no topo da cadeia alimentar e assim regulam o tamanho da população de vários outros animais ao predá-los, contribuindo para o equilíbrio ecossistêmico.

Vicente Faria, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e biólogo engajado em pesquisas sobre elasmobrânquios (tubarões e arraias), explica que, se eles são removidos do ambiente em que vivem, os efeitos desse desequilíbrio têm impactos ecossistêmicos e econômicos. “A maior parte do oxigênio que respiramos é gerado no ambiente marinho. Logo, cuidar dos tubarões e dos oceanos, é cuidar de nossa própria saúde”, enfatiza.

Por possuírem um ciclo de vida complexo os tubarões podem, em alguns casos, ter uma reprodução lenta. Essa é mais uma razão que deve ser levada em consideração em se tratando da importância de incentivar a proteção desses animais, como elucida o pesquisador: “muitas espécies só atingem maturidade sexual com mais de 10 anos de idade. Sabe-se que algumas só se reproduzem a cada dois anos. Além disso, muitas geram um número pequeno de filhotes”.

Como principais ameaças, a ciência aponta a pesca, degradação ou perda de habitat e poluição marinha. O consumo da carne de tubarão e da sopa de barbatana é um agravante para a conservação desses animas, já que gera pressão pela pesca e resulta na predação. Sobre isso, Faria adverte que a carne de tubarões e raias pode conter concentrações elevadas de metais pesados, o que traz riscos, não só aos animais, mas ao próprio ser humano.

Segundo Erika Beux, bióloga, fotógrafa e guia de expedições subaquáticas “é cientificamente comprovado que um tubarão vivo vale mais que morto”. Ela salienta que, segundo a Fundação Charles Darwin, de Galápagos, um tubarão pescado vale em torno de 100-200 dólares e, por causa da pesca, as populações reduziram em 90% nos últimos 20 anos. Deste modo, 30% das espécies estão ameaçadas de extinção.

Já em locais que protegem os tubarões e investem em atividades de mergulho para observação de espécies, toda a cadeia do ecoturismo envolvida, como companhias aéreas, barcos, serviços de transfer, hotéis, restaurantes, dentre outros, faturam mais de 5,2 bilhões de dólares por ano. “O pescador e a família dele podem ser os facilitadores disso tudo, levando os turistas, vendendo lanches e suvenires, fazendo o transporte do hotel ao local do embarque e muito mais”, pondera.

Tubarão-cabeça-chata (Carcharhinus leucas) e tubarões-lixa (Ginglymostoma cirratum). Ambos podem ser encontrados em mares nordestinos | Foto: Kadu Pinheiro

Barbárie contra tubarão

Apesar das importantes funções que os tubarões exercem no meio ambiente, o ser humano ainda dá sinais alheios à importância da conservação desses animais. Exemplo disso foi um vídeo que circulou pelas redes sociais, no último mês, retratando imagens fortes de maus-tratos a um tubarão avistado próximo à faixa de areia, sendo capturado e morto, na Praia do Balbino, em Cascavel, no litoral leste cearense.

O animal, além de ter sido retirado do seu habitat, foi torturado e amarrado em um veículo, ainda vivo, sendo arrastado pela areia da praia, até ser morto. Conforme as imagens, um grupo de homens envolvidos, e que não tiveram suas identidades relevadas, se divertiam com o feito, enquanto chutavam o tubarão e introduziam pedaços de madeira em sua boca.

O tubarão capturado e morto era uma fêmea da espécie cabeça-chata (Carcharhinus leucas), classificada como “Quase Ameaçada” na lista vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), o que já é motivo de preocupação quanto às condições de conservação.

De acordo com Miller Holanda, analista ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os responsáveis foram autuados por maus-tratos pelo Órgão e intimados a depor pela Delegacia de Crimes Ambientais do Ceará, onde deverão responder por crime ambiental.

Estima-se, nesse caso, um total de R$ 4.300 em multas aplicadas, com pena de detenção de três meses a um ano, podendo ser aumentada de um sexto a um terço, levando em consideração a morte do animal.

Holanda detalha que, a partir do que foi analisado no caso, o ato não deve ser considerado como pesca: “não havia petrechos ou embarcações próximas. Tampouco foi identificada alguma técnica de pesca. Finalmente, após arrastarem para fora da água, os envolvidos se utilizaram de métodos cruéis e desnecessários para o abate do animal”.

Vítimas e não vilões

O cinema ajudou a construir uma imagem de vilão, mas o tubarão é um predador selvagem que não ataca, a não ser em determinadas circunstâncias | Foto: Kadu Pinheiro

Por serem predadores os tubarões podem gerar medo e reações de defesa nos seres humanos, sendo vistos muitas vezes como vilões.  Os históricos de incidentes desastrosos que resultam em ferimentos e morte de banhistas em diferentes lugares do mundo são fatores que influenciam essa ideia. Além disso, o cinema e histórias de ficção também são elementos que endossam a imagem de que esses predadores são assassinos.

“Não tem como fugir do fato de que o filme baseado no livroTubarão’ (Jaws), de Peter Bentley, e incontáveis outros que se seguiram a esse tiveram e têm uma influência nessa má reputação dos tubarões. O mar não é o nosso ambiente natural e, por isso, podemos também nos sentir ameaçados perante ele, reforçando a sensação de um perigo escondido nas águas”, reflete Vicente Faria.

Para o pesquisador, outro fator que contribui para essa visão é que o ser humano se tornou dominante em relação a outras espécies do Planeta, ou seja, em interações com outros animais, em geral, o homem se sobressai. “Por esse motivo, incidentes com tubarões sempre chocarão.  O curioso é que, embora tenhamos em mente o tubarão como vilão, somos nós humanos que os perseguimos de maneira implacável“.

Faria reforça que a carne humana não faz parte da dieta de nenhum tubarão e destaca em que casos esses animais podem oferecer algum risco aos banhistas. Os incidentes podem vir a acontecer por diferentes motivos, incluindo situações peculiares de relevo do oceano, como por exemplo, área muito funda próxima da costa. Desequilíbrios ambientais, tais como a alteração do ambiente e escassez de alimentos que naturalmente façam parte da alimentação dos tubarões também são fatores influentes.

Quanto ao caso de Cascavel, o pesquisador esclarece que o animal possivelmente foi ao raso seguindo algum cardume e logo buscaria águas um pouco mais profundas, não oferecendo risco aos humanos. No entanto, nessas situações, é importante entender como proceder quando nota-se a presença de tubarões em águas próximas à faixa de areia para evitar incidentes com banhistas.

O respeito a animais selvagens em seu habitat natural é algo sempre essencial,  conforme ressalta Faria. Ele recomenda sair temporariamente da água e informar para alguma autoridade local, como por exemplo um guarda-vidas, para que oriente outros banhistas a também se afastarem.

Desmistificar e conservar

Ruver Bandeira,  geógrafo e fotógrafo subaquático, alerta sobre a importância de respeitar o espaço do animal para garantir a segurança em mergulhos com tubarões | Foto: Kadu Pinheiro

Como atividade para desmistificar a ideia de que tubarões são assassinos e para o incentivo da conservação por meio da aproximação das pessoas com a natureza, alguns conservacionistas apostam nas experiências de mergulhos para a observação desses animais.

Em seus 11 anos de experiência de mergulho com tubarões, Erika Beux afirma ser uma atividade segura, tanto para os seres humanos como para os animais. “Mergulhei com umas 15 espécies diferentes e todas elas sem gaiola. Dentre elas tubarão-cabeça-chata, tubarão-tigre, tubarão-limão e tubarão-martelo, que estão na lista das espécies com maior ocorrência de incidentes”, detalha.

Ruver Bandeira, professor, geógrafo e fotógrafo subaquático, também mergulha com tubarões desde 2006 e relata ser uma experiência tranquila, mas avalia que não se pode dizer que é 100% seguro, por se tratar de um animal selvagem, como qualquer outro predador em seu habitat natural. Entretanto, o fotógrafo revela que em suas experiências de mergulho com tubarões, jamais se sentiu ameaçado, mesmo estando em meio a dezenas deles como, por exemplo, em um mergulho que realizou nas Bahamas.

Bandeira, contudo, alerta que é de suma importância respeitar o espaço do animal para garantir a segurança desse tipo de experiência. “Devemos lembrar que ele está no habitat dele. O mais importante é respeitá-lo, contemplá-lo e não tentar tocá-lo”.

Erika Beux explica que o comportamento deles varia de espécie para espécie ou mesmo de população: “o comportamento dos tubarões-cabeça-chata avistados em Fiji é diferente dos encontrados no México, ou na Florida, por exemplo. O recomendado é sempre seguir as regras do dive center ou guia local, que conhecem os animais melhor que ninguém.”

E completa: “Eles saberão dizer qual a distância segura, quais gestos não podemos fazer, como deve ser nosso posicionamento na água, que tipo de roupas ou nadadeiras podemos usar, se é permitido o uso de sticks para afastar os animais mais curiosos ou ousados. Se não desrespeitarmos isso, não haverá estresse nem para os animais, nem para nós”.

Incidentes e desequilíbrios ambientais

Há situações de desequilíbrio ecológico que podem levar a predadores, como o tubarão atacar, mas cada situação requer analise especializada e não justifica crimes ambientais | Foto: Kadu Pinheiro

Apesar de o tubarão-cabeça-chata, mesma espécie do episódio em Cascavel, ser uma das mais registradas em incidentes nas praias de Recife (PE), Hugo Fernandes, biólogo e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), afirma que há zero registros de incidentes envolvendo tubarões cabeça-chata no litoral cearense, mesmo havendo ampla presença desta espécie em mares do Ceará.

O pesquisador explica que não se justificam crimes ambientais contra esses animais com base no histórico de incidentes no litoral pernambucano e em demais locais do mundo. Ele exemplifica uma série de desequilíbrios ambientais específicos existentes em Pernambuco que influenciam no comportamento dos tubarões.

Dentre esses impactos ambientais, destaca-se o resultado da implosão de corais para a construção do Porto de Suape. Essa estrutura implodida servia de base alimentar para peixes, que por sua vez, eram alimentação de tubarões, que chegam famintos de rotas migratórias e já não encontram mais alimento.

“Nessa procura por comida, eles entram na rota Suape-Recife, muito facilitada por uma corrente marítima e por um relevo marinho que também favorece esse fluxo. Em Recife há rios banhados com chorume de matadouros, ou seja, sangue. Uma vez que esses rios encontram o mar, o cheiro de sangue atrai os tubarões para a praia, que na busca pela presa, se depara com banhistas e surfistas e os confundem”, esclarece Fernandes.

Projetos de Conservação

Os projetos voltados para a pesquisa e conservação de animais ameaçados são essenciais para a disseminação de informações e execução de atividades que buscam a proteção dessas espécies. No Brasil, existem diversos grupos de estudo e pesquisa em instituições de ensino superior focados nesse tema ao longo da costa.

Além disso, são muitos os perfis no Instagram que também abraçam essa causa, como: @elasmobranquios.parana, @tintureirapr, @elasmos_br, @tubaroesesuascuriosidades, @atdcrn, @geem.2020, dentre outros.

“Esses perfis realizam um bonito trabalho de extensão, levando conhecimento sobre os tubarões ao grande público. Vale ressaltar que temos uma sociedade científica especificamente voltada para a pesquisa e conservação dos tubarões, raias e quimeras. Trata-se da Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios (SBEEL), (@sbeel.brasil), fundada em 1997”, frisa Vicente Faria.

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: