Campanha #SalveOsPassarim alerta para as consequências de aprisionar aves

“Eles passarão, eu passarinho”. O trecho de “Poeminha do Contra”, de Mário Quintana, evidencia a característica de liberdade, própria das aves. Em contraponto, o brasileiro cultiva o hábito de criar pássaros em gaiolas. Especialistas avaliam a origem dessa prática e as consequências do comércio de aves no combate ao tráfico de animais silvestres

Corrupião (Icterus jamacaii) | Foto: Fábio Nunes

Por Lívia Priscilla
Colaboradora

Teresina – PI.Animais inocentes condenados à prisão perpétua”. É assim que o ambientalista Dionísio Carvalho define a prática de criar pássaros em gaiolas. Inspirado pela liberdade natural desses animais, Dionísio iniciou uma campanha em Teresina, no Piauí, e passou a percorrer uma antiga feira de pássaros no Centro teresinense para chamar a atenção das pessoas para o tema. “#SalveOsPassarim foi uma iniciativa que eu tomei como ativista autoral e outras pessoas agregaram ao movimento. E criou repercussão quando a gente mostrou as imagens dos animais presos sendo traficados ao ar livre aqui na Capital”, conta.

O movimento que é contra a prática de prender em gaiolas aves nativas e exóticas tem repercutido no Estado do Piauí e já há Projeto de Lei (PL) propondo a proibição da fabricação e comercialização de gaiolas e similares para a criação de pássaros em cativeiro. O PL 136/21 é de autoria do deputado estadual Ziza Carvalho (PT) e tramita na Comissão de Constituição e Justiça, da Assembleia Legislativa do Estado do Piauí.

A discussão também avança no País. “A campanha não é só restrita ao Piauí. Estamos em conversas com a frente parlamentar ambientalista nacional”, destaca Dionísio. Na esfera federal, um exemplo é o PL 1487/19, em tramitação na Câmara dos Deputados, que propõe alteração da Lei Nº 5197/1967 para proibir a criação de pássaros em gaiolas e viveiros. Até o momento, não há proibição expressa na legislação brasileira quanto à criação de pássaros em gaiolas. Mas, em contexto mundial, por exemplo, as gaiolas são proibidas na Índia e a Comissão da União Europeia aprovou o fim gradual da criação industrial de animais engaiolados até 2027.

Origem do hábito

A prática de criar animais silvestres como bichos de estimação é antiga na história da humanidade. E no Brasil esse costume perdura. “Antes da chegada dos europeus, grupos indígenas já tinham o hábito de criar esses animais, tanto que para os falantes do tupi havia o termo cherimbane (‘coisa muito querida’) para designar os animais que viviam nas aldeias na companhia dos seres humanos. Os europeus que aqui chegaram, como os portugueses, também mantinham esse hábito”, detalha Dimas Marques, assessor de planejamento e assuntos estratégicos da organização não governamental Instituto Profauna – Proteção à Fauna e Monitoramento Ambiental.

Além do aspecto cultural, as características dos animais também atraem. É o que diz o biólogo e coordenador geral do Instituto Profauna, Tiago Leite. “Os psitacídeos – que são os papagaios, araras, periquitos, maracanãs e afins – não têm a característica do canto, que é o que muitas vezes chama a atenção nos passeriformes (pássaros), mas têm a beleza deles, que é algo bastante ímpar em termos de plumagem, e a capacidade de esses animais repetirem o que as pessoas falam chama muita atenção”, declara. E essas especificidades acabam sendo visadas pelo mercado clandestino.

A Instrução Normativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) define bicho de estimação ou de companhia como: “animal proveniente de espécie da fauna silvestre nativa, nascido em criadouro comercial autorizado para tal finalidade, mantido em cativeiro domiciliar, sem finalidade de abate, de reprodução, uso científico, uso laboratorial, uso comercial ou de exposição”. E para quem opta por criar aves silvestres, é necessário preparo, conhecimento da biologia da espécie e condições para que o animal tenha qualidade de vida.

“Isso não quer dizer que esses animais estão adaptados ao confinamento e, seja o animal doméstico ou silvestre, caso sejam mantidos de forma inadequada, negligenciando necessidades específicas, estão sujeitos a sofrimentos. Mas também não é verdade que todos os animais em cativeiro estão em sofrimento”, destaca o biólogo Fábio Nunes.

O hábito é controverso. Há quem defenda que a criação comercial legalizada de silvestres e a criação amadora de pássaros ajudariam a conservar e combater o tráfico, por manter certa reserva de animais em cativeiro, evitando a extinção. Contudo, Dimas Marques discorda. “A lista das espécies com maior número de animais apreendidos coincide com as espécies mais criadas legalmente. Ou seja, a criação legalizada não está evitando que as pessoas procurem os traficantes de fauna. E as criações comercial e amadora selecionam características no processo reprodutivo (melhor canto, uma determinada aparência, um comportamento, etc.) para atender exigências do mercado, o que é muito diferente do processo evolutivo natural. Além disso, são raros os criadores dispostos a ceder animais para, ainda que fosse possível, projetos conservacionistas”, argumenta.

Tipio (Sicalis luteola) | Foto: Dionísio Neto

Combate ao tráfico de aves

Os animais sempre foram vistos como “recursos naturais” e, durante anos, não houve fiscalização ou normas referentes ao comércio de animais silvestres. Esse contexto mudou em 1998, com a Lei de Crimes Ambientais. “A legislação passou a prever que o comércio de animais silvestres sem as devidas autorizações e os devidos regramentos seria uma atividade ilícita. A partir daí, foi se trabalhando no que diz respeito ao fortalecimento da legislação ambiental em relação à proteção da fauna no Brasil”, analisa Tiago Leite, biólogo e coordenador geral do Instituto Profauna.

E o combate ao tráfico é um dos aspectos trazidos por essa legislação. “A Lei de Crimes Ambientais – Lei Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, tipifica como crime o tráfico de animais silvestres, prevendo pena de detenção de 6 meses a 1 ano e multa, podendo ser agravada se o crime for praticado contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção e até triplicada se decorrente de caça profissional (art. 29, §§ 4º e 5º)”, menciona Lucíola Cabral, advogada e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Ceará.

No entanto, a aplicação da legislação tem alguns desafios, conforme Tiago Leite. “É uma das leis mais bem estruturadas e elaboradas do mundo em relação à questão da proteção da fauna, contudo você não tem muitas vezes a aplicação dela de maneira efetiva. Falta estrutura, erário e uma série de recursos, o que acaba inviabilizando, muitas vezes, a ação dos órgãos de fiscalização ambiental no Brasil”, avalia.

A Eco Nordeste entrou em contato com o Ibama para pedir indicadores de 2019 a 2021 referentes a operações contra o tráfico de aves, além de resultados de apreensões nos nove estados do Nordeste. Em resposta, o órgão disse que informações sobre apreensões, autos de infração, termos de embargo e de destruição estão disponíveis na Plataforma de Dados Abertos do Ibama. No entanto, os dados estão dispersos, englobando a apreensão de todos os tipos de animais no País e incluindo bens, produtos, subprodutos, veículos e petrechos utilizados no cometimento da infração ambiental.

A questão é complexa, na visão de Dimas Marques, assessor do Instituto Profauna, que defende cinco medidas essenciais para enfrentar o tráfico:

  • Programas de geração e substituição de fonte de renda para combater a pobreza nas áreas de coleta e captura
  • Repressão eficiente e sem corrupção
  • Legislação com punição severa, tipificando o crime “tráfico de fauna” e diferenciando as penas entre quem cria sem autorização e quem trafica
  • Educação Ambiental
  • Boa infraestrutura para o pós-apreensão, com técnicos de primeiros socorros, centros de triagem e de reabilitação, procedimentos eficientes para solturas em áreas credenciadas em todos os biomas e monitoramento pós-soltura

Outro ponto desafiador do tráfico é a ameaça à vida de espécies, como a ararinha-azul, extinta em 2000. “É o caso mais simbólico de uma ave que teve seu direito de existir negado por traficantes de aves aqui do Nordeste. Muitas outras aves foram extintas localmente por conta do tráfico, como é o caso de araras, tucanos, papagaios, jandaia-verdadeira, pintassilgo-do-nordeste, curió, dentro muitos outros”, afirma Fábio Nunes. A espécie da ararinha-azul atualmente só existe em cativeiro, com projeto de reintrodução em andamento, conforme informações do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Periquito cara-suja (Pyrrhura griseipectus) | Foto: Fábio Nunes

Adaptação ao ambiente natural

A adaptação à natureza de pássaros vítimas de cativeiro e de tráfico depende de condições fisiológicas e comportamentais às quais a ave foi submetida. “Para se adaptar ao ambiente selvagem muitas vezes o pássaro precisa treinar seus músculos de voo, ser capaz de identificar e fugir de predadores, de encontrar alimento, o que nem sempre é uma tarefa muito fácil para uma ave que passou muitos anos em cativeiro”, explica Fábio Nunes. Para a soltura de espécies exóticas, o biólogo aconselha que elas jamais sejam libertadas fora dos locais de distribuição original. Aves oriundas de outros países devem ser enviadas aos lugares de origem, em caso de necessidade de serem devolvidas à natureza.

A gaiola é outro elemento que prejudica o animal. “Pássaros em gaiola, no geral, estão impedidos de desempenhar suas funções ecológicas, de se deslocar por grandes distâncias, de buscar seus próprios alimentos, de estabelecer territórios, de formar casais reprodutivos, de construir seus ninhos, também não estão submetidos à fuga de predadores, etc. Tudo isso dificulta o seu retorno ao ambiente natural”, cita Fábio Nunes. É por causa dessas questões que a soltura abrupta de aves nem sempre é bem-sucedida, principalmente se o animal estava em cativeiro por muito tempo.

O especialista complementa que é preciso avaliar a capacidade de voo e a condição comportamental e sanitária para que a ave não carregue potenciais patógenos para as populações selvagens. Os animais sem patógenos podem ser identificados com anilhas e colocados em quarentena para serem submetidos a programas de soltura branda, em recintos abertos de dia e fechados de noite. “Dessa forma, as aves podem sair e voltar ao recinto para se abrigarem e se alimentarem, até que decidam permanecer em vida livre, sendo capazes de sobreviver na natureza”, destaca o biólogo.

Para quem deseja libertar as aves, há um procedimento adequado. “O correto é entregá-lo em um centro de triagem e de reabilitação de animais silvestres, que geralmente têm a sigla Cetas, Cras ou Cetras. A pessoa também pode fazer a entrega voluntária para a Polícia Militar Ambiental, Ibama ou guarda ambiental de seu município”, informa Dimas Marques. E, mesmo se o animal for ilegal, a pessoa que faz a entrega voluntária não sofrerá qualquer sanção criminal ou administrativa, conforme assegura o Decreto Nº 6.154/2008.

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: