No Oeste da Bahia, Bernardino Alves Barbosa transformou sua forma de plantio por meio do sistema agroflorestal. Com meio hectare de terra e sete anos depois, ele tem uma diversidade de plantas e animais e passou a ensinar o que aprendeu. A equipe de reportagem da Eco Nordeste visitou o Sítio Primavera, que é um ponto fora da curva nessa região do Matopiba onde o agronegócio avança e destrói o Cerrado.

Foto colorida de homem pardo de camisa marrom e calça jeans em frente a porteira com placa onde se lê Sitio Primavera tendo atrás uma casa amarela coberta de telhas de argila e cercada de árvores e jardins
Sistema Agroflorestal em Correntina, na Bahia, permite o cultivo em meio ao Cerrado | Foto: Eduardo Cunha

Experimentador é uma palavra que define bem a figura de Bernardino Alves Barbosa, conhecido por Bernardo. Aquilo que não conhece, ele estuda. O que não tem, procura. O que não sabe, testa. Depois de apenas um dia de visita ao Sítio Semente, em Brasília, ele voltou para casa cheio de vontade e disposição para aprender como poderia implantar um sistema agroflorestal na propriedade rural da sua família, na comunidade de Pedrinhas, município de Correntina, Oeste da Bahia.

De 2013 a 2016, Bernardo foi aluno do curso técnico em Agropecuária na Escola Família Agrícola Padre André, que fica na comunidade Arrojado, no mesmo município. Tudo o que ele aprendeu na formação está guardado em pastas bem organizadas que ele mantém até hoje em casa. A convite da Escola, em 2017 ele participou do intercâmbio em Brasília e, no dia seguinte, já começou a colocar em prática o que viu. “Para mim, valeu como se fossem os quatro anos de curso técnico, porque eu cheguei e transformei a minha propriedade”, relembra Bernardo.

Ele atribui essa transformação às técnicas agroflorestais de cobertura do solo e plantio conjunto de uma diversidade de espécies. É bem diferente da forma como seu pai e avô plantavam as roças, sempre com a capina para deixar o solo “limpo”. No sistema agroflorestal, ele traz as folhas, galhos e restos de poda para cobrir as raízes das plantas, o que ajuda na adubação e na infiltração da água da chuva. Plantar uma quantidade maior de espécies diferentes no mesmo espaço também ajuda a fortalecer a saúde do sistema e a produção.

“Com a cobertura, você faz a adubação, já evita da erva daninha sair, a planta consegue sugar todos os nutrientes necessários e a água infiltra no solo sem fazer cratera. O solo fica mais poroso, fino. Diferente da roça, que é só milho e mandioca, na agrofloresta quando você tira o milho, usa aquela palhada para servir de cobertura para a mandioca. Quando tira a mandioca, já serve de cobertura para a banana, depois a banana para a cobertura do abacate e assim sucessivamente. Isso vai fazer com que o sistema evolua”.

A lista de espécies que Bernardo tem na propriedade é bem grande. Entre as frutíferas, são 14 tipos diferentes de banana, abacate, tamarindo, jenipapo, abacaxi, jaca, pitanga, pêssego, café, cacau, pinhão, coco, jabuticaba, morango, caju, manga. Tem também as medicinais e nativas do Cerrado: cagaita, olho de boi (mucunã), ingazeira branca, pequi, araticum, pimenta de macaco, tatarena, pau terra, carapiá. Sem esquecer das hortaliças e animais, que são cabras, ovelhas, galinhas e um sistema de piscicultura.

A criação de galinhas está integrada à tecnologia social do sistema Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (Pais), que tem um formato de mandala onde as aves ocupam o centro e nos canteiros circulares ficam das hortaliças, que são adubadas com o esterco das galinhas. “Tem mais outras coisas que eu não plantei, mas os pássaros ou o vento que trazem as sementes de outras áreas. É tanta diversidade que às vezes até me perco. E eu não sei quem está me dando lucro ou prejuízo, porque é um ciclo, um ajudando o outro”.

Solo e vida transformados

Bernardo conta como o solo mudou desde que começou a implantar essas técnicas. Antes, praticamente só se via areia, “que você até conseguia peneirar de tão fina”, e hoje é muito maior a quantidade de matéria orgânica na superfície. “Você consegue ver as raízes na flor da terra. Foi uma transformação muito rápida, até meus professores ficaram abismados e eu nem fiz muita coisa, só joguei sementes, fiz a cobertura e molhei”.

“As pessoas falam que o Cerrado é um lugar onde praticamente só tem areia e não tem como desenvolver as plantas. Mas basta a pessoa acreditar, fazer o manejo correto, não jogar produto químico. A terra é viva, o Cerrado é vivo. Se você joga produto químico, acaba matando, mas se jogar uma cobertura o solo muda a textura, aparecem as minhocas e as raízes flutuam sob o solo porque tem muito mais matéria orgânica”.

Hoje com 39 anos, Bernardo também teve sua vida transformada pela agrofloresta, assim como a terra. “Me fez viajar, ganhar novos conhecimentos, conhecer novas pessoas”. Desde que começou o curso técnico, já sabia que não queria sair para trabalhar em outras fazendas ou empresas da região, e sim aplicar todo o aprendizado no melhor lugar onde ele poderia trabalhar e já estava ali, esperando por ele: sua própria casa. 

Os quatro anos de estudos foram organizados conforme a Pedagogia da Alternância, que intercala duas semanas de imersão nas aulas presenciais (o tempo-escola) e duas semanas em casa (o tempo-comunidade), onde os estudantes desenvolvem trabalhos em suas propriedades. O avanço de Bernardo foi tanto que agora é ele quem recebe as visitas de novas turmas do curso técnico, e até mesmo de estagiários que vão lá para aprender. “Nas primeiras visitas eu ficava emocionado, porque você ser aluno e depois passar a ser professor do seu professor é muito gratificante”. 

A equipe de reportagem da Eco Nordeste esteve no Sítio Primavera em junho de 2024, e de lá para cá Bernardo seguiu compartilhando sobre os experimentos, trabalhos e visitas recebidas. Em agosto, nos mandou fotos de uma atividade com a associação de agricultores do município de Correntina e também com alunos de um curso de Agroecologia do município de Jaborandi (BA), que contou inclusive com participantes da Guatemala, Equador e Belize.

Tradição e renovação

A comunidade de Pedrinhas compõe o mosaico de povos tradicionais do Cerrado no Oeste da Bahia. É secular a ocupação da região onde está localizada e, assim como várias outras, também enfrentou ameaças e lutas para garantir a permanência no território diante do avanço do agronegócio e da grilagem. Bernardo é bisneto de quem já vivia neste lugar e um dos nove filhos de dona Malvina, de 70 anos, com quem ele mora.

“Aqui era uma área coletiva de fundo e fecho de pasto. De 1980 para cá, chegou uma fazenda dizendo que era dona dessa área que nossas famílias, avós e tataravós já usavam. Quase teve morte, o único jeito foi a gente resistir e lutar mesmo. Com a força e união do povo conseguimos vencer, o Incra comprou a área e dividiu em lotes para as famílias. Mas teve muita gente que precisou correr mesmo dos pistoleiros, ficar feito fugitivo dormindo no mato”.

O pai e o avô de Bernardo eram fecheiros, nome que designa pequenos criadores de gado que utilizam áreas coletivas no Cerrado para soltar os animais em alguns períodos do ano. “Meu avô também usava uma parte para plantar. Ele dizia que o gerais era um lugar de riqueza, porque no período da seca, quando não estava produzindo aqui, ele produzia no gerais, além das frutas que ele conseguia pegar”.

O que os antepassados de Bernardo sofreram ainda ameaça comunidades, territórios tradicionais e grandes áreas de Cerrado por conta do desmatamento, da grilagem e do avanço de empresas de agronegócio no Oeste da Bahia, que integra o Matopiba.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

ma.to.pi.ba.

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação; Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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