Especialistas reagem ao discurso do presidente Lula na Cúpula dos Líderes e alertam: sem descentralização e participação social, transição energética não será justa
Ao afirmar que “as decisões que tomarmos com relação ao setor energético definirão o nosso sucesso ou nosso fracasso”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu o tom de urgência no discurso que abriu a Cúpula dos Líderes da COP30, em Belém. Conforme o discurso do presidente, não é “preciso desligar as máquinas e motores, nem fechar fábricas ao redor do mundo de um dia para o outro”.
“Que Lula desculpe, mas esse discurso é a repetição dos setores que exploram a energia como mercadoria. É verdade que a energia elétrica vem de fontes limpas, como a água, o vento e o sol. Mas não há nada limpo o que fazem as empresas para continuarem se apropriando e vendendo essa mercadoria, seja nos rios da Amazônia – bastando lembrar da Belo Monte! – ou em rios médios, ou menores no Pantanal e nos demais biomas, seja na construção de usinas eólicas ou solares, de modo especial no Nordeste”. A crítica é de Ivo Poletto, assessor nacional do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, em resposta ao discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula dos Líderes da COP30, em Belém.
As críticas refletem um debate que se intensifica no Nordeste, região que se tornou símbolo do avanço das energias renováveis e, ao mesmo tempo, dos impactos socioambientais que acompanham esse processo. Em estados como Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia e Paraíba, a instalação de usinas eólicas e solares tem transformado a paisagem e a vida das comunidades locais. Apesar de gerarem energia com menos emissões, muitos desses empreendimentos concentram benefícios econômicos em poucas mãos e trazem conflitos e degradação de áreas da Caatinga.
Poletto também questionou a coerência entre o discurso e as ações do governo: “estaríamos voltando ao teatro do absurdo? Afinal, sendo correto o ‘acabar com a dependência dos combustíveis fósseis’, como entender que isso será feito aumentando a exploração de petróleo – até na Foz do Amazonas! – para financiar a produção com fontes renováveis? É algo parecido com outro absurdo: criar um fundo financeiro para que, ao gerar lucros com sua aplicação,destinar parte deles para manter as florestas para sempre?”
A pesquisadora Ricélia Maria Marinho Sales, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), integrante do Comitê de Energia Renovável do Semiárido (CERSA) e líder do Grupo de Pesquisa em Sistema de Indicadores de Sustentabilidade Urbana, Rural e Ambiental (Sura/UFCG/CNPq), compartilha a preocupação: “uma transição justa, participativa, democrática, inclusiva e sustentável grita pela urgência de haver uma mudança no modelo de negócios que vem sendo conduzido por empresas subsidiárias de multinacionais. É necessário um ordenamento territorial e a realização de diversos estudos interligados que permitam avaliar e gerenciar os diferentes impactos dos projetos de desenvolvimento sobre a saúde comunitária, considerando de forma integrada os aspectos socioambientais e adotando uma compreensão holística desses impactos”.
Ricélia defende que o País precisa ouvir quem vive nas áreas atingidas pelos grandes empreendimentos: “eu só gostaria que o presidente Lula tivesse a oportunidade (pessoalmente) de escutar as pessoas da Comunidade de Sobradinho, em Caetés, de Pernambuco, que é a terra de origem dele, dentre tantas outras comunidades, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, do Ceará, da Bahia, dentre outros estados que estão localizados no Semiárido brasileiro”.
Ainda segundo a pesquisadora, mesmo vizinhas de aerogeradores e usinas solares, a população da localidade continua sem energia ou mesmo com energia de baixa qualidade, com “quedas” frequentes. Ricélia conta que a rotina das famílias afetadas pode começar às 2 horas da manhã, para utilizar a taxa verde da energia para acionar o sistema de irrigação. Ou seja, existe um comprometimento da rotina e do descanso das famílias afetadas, mas “no fim do mês pagam a energia como se tivessem usado o mês inteiro. São contas que ultrapassam 200 reais, em alguns casos”, afirma a professora.
São situações como estas que escancaram a desigualdade energética do País, principalmente no Nordeste que é uma região promissora para a geração de energia limpa. A pesquisadora reforça que o Brasil precisa “ter coragem para enfrentar nossos fantasmas a exemplo da injustiça fundiária” e apostar “em modelos descentralizados que tornem o Semiárido um local promissor e interessante para instalação de agroindústrias de beneficiamento de alimentos saudáveis, agroecológicos e sustentáveis”.
Mas o que, na prática, significa essa justiça no contexto brasileiro, e especialmente para o Nordeste e o Semiárido, onde se concentram os maiores investimentos em energia renovável do País?
Para Ivo Poletto, o discurso do presidente Lula carrega contradições entre o que é dito e o que tem sido feito. “Infelizmente o que está sendo anunciado e praticado pelo governo em relação ao setor energético não é caminho para uma transição justa, e menos ainda equitativa. E de modo particular quando olhamos para o que está acontecendo na Caatinga e em todo o Nordeste, onde estão sendo promovidas empresas de energia que, mesmo usando fontes menos poluentes, estão retomando e ampliando perigosa e criminalmente o desmatamento da Caatinga, e isso tem tudo a ver com os graves riscos de desertificação de uma região semiárida, e a destruição de dunas, vegetação, comunidades de pescadores artesanais e seres vivos das águas no bioma Costeiro Marinho. Enquanto a energia for reduzida a mercadoria, o sucesso favorecerá as grandes empresas, não a população”, afirmou.
“Quando instalamos sistemas descentralizados de energia renovável, há realmente o milagre do combate real à pobreza energética”, destacou Ricélia. Ela reforça que experiências locais, como a padaria solar de Pombal e a Cooperativa Bem Viver em Matureia, ambos na Paraíba, já mostram que é possível conciliar sustentabilidade, geração de renda e fortalecimento comunitário – exemplos que poderiam inspirar políticas públicas de alcance nacional.
No palco global da COP30, as vozes do Nordeste lembram que a transição energética se mede em dignidade, acesso e equilíbrio com os territórios. Entre o sol e o vento do litoral, o Brasil tem a chance de provar que desenvolvimento e justiça podem caminhar juntos.
As jornalistas Maristela Crispim e Isabelli Fernandes viajaram a Belém para a cobertura da COP30 com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e estão hospedadas na Casa do Jornalismo Socioambiental, uma iniciativa que reúne profissionais e veículos brasileiros especialistas de todo o País para ampliar abordagens e vozes sobre a Amazônia, clima e meio ambiente.


