Didática de árvore e pedagogia de passarinho dos Xukuru

A poética sabedoria dos povos originários mostra como a natureza provê e ensina. Esta é mais uma reportagem da série sobre o Nordeste e o Clima, feita durante a Caatinga Climate Week

A foto de um cenário exterior em um dia ensolarado, dominado por uma vegetação densa e variada em primeiro plano. À esquerda, grandes folhas verdes vibrantes (possivelmente de hortelã ou boldo) formam uma borda que se estende para o centro. No meio da imagem, há um aglomerado de arbustos e plantas mais secas e finas, com algumas flores laranjas e roxas espalhadas na base. O fundo é marcado por uma paisagem de terra árida e montículos de areia ou terra clara, com árvores e arbustos de folhagem verde-escura mais ao longe. No lado direito, destaca-se uma estrutura de concreto de formato cônico ou abobadado, de cor cinza, uma cisterna, com uma escotilha de metal visível na lateral. O céu está azul com nuvens brancas e fofas, e uma estrutura alta e avermelhada (que parece ser uma chaminé ou torre de telecomunicações) é visível acima da linha das árvores no centro-direita
Na Serra do Ororubá, em Pesqueira (PE), onde a tradição é ser fiel aos ancestrais, se aprende desde cedo que a mata é um lugar sagrado e a floresta é quem ensina, no tempo dela | Foto: Andréia Vitório

O tempo passa diferente para o povo árvore-passarinho, como são conhecidos os Xukuru do Ororubá, no agreste pernambucano. Mais precisamente, na Serra do Ororubá, em Pesqueira, onde a tradição é ser fiel aos ancestrais, se aprende desde cedo que a mata é um lugar sagrado e a floresta é quem ensina, no tempo dela. Ao viver a filosofia da dispersão de sementes para restaurar o território, reverenciam o passado e dão vida ao presente e futuro. E foi assim que Jamilly Santos, de 21 anos, descobriu o mundo: “me criei dentro do território, dentro das matas e desde o primeiro dia de vida já pertencia a esse solo sagrado. Temos que cuidar, preservar, porque é dessa preservação que a gente vai garantir o amanhã para as novas gerações”.

Lá na Serra, o coletivo Jupago Kreká promove cuidado à floresta e alimento por meio de agricultura agroecológica e banco de sementes, tudo pautado pelo saber ancestral, de onde emergem os conceitos da didática de árvore e pedagogia de passarinho. Isso se traduz no Ororubá: Urú (pássaro) e Ubá (árvore). Quem conta é a liderança indígena Iran Neves Xukuru: “é a tecnologia da floresta, que se baseia na observação da natureza e é inspirada no beija-flor colibri”, que tira o néctar da flor, preservando-a. O manejo da floresta, explica, é “estar atento ao tempo da natureza”.

Cosmoagricultura e saber ancestral

A foto mostra um homem de meia-idade, com cabelos curtos e escuros, vestindo uma camisa polo verde vibrante. Ele está em pé em um ambiente de floresta densa, com uma parede de folhagem verde-escura e espessa atrás dele. Seu rosto está voltado ligeiramente para a esquerda e sua expressão é séria e concentrada. Ele usa colares grandes e escuros, feitos de sementes ou miçangas, que contrastam com a cor da camisa. Em suas mãos, ele segura galhos e folhas de plantas, parecendo estar as examinando ou apresentando-as. A iluminação é natural e suave, filtrada pelas árvores
Liderança indígena, Iran Neves Xukuru afirma “é a tecnologia da floresta, que se baseia na observação da natureza e é inspirada no beija-flor colibri”, que tira o néctar da flor, preservando-a | Foto: Andréia Vitório

A agricultura adotada e disseminada pelo coletivo Jupago Kreká se dá pela defesa da terra e pelos “cuidados e encanto-manejo da floresta” No alto da Serra, onde o clima é mais arejado e tem mais disponibilidade de água, há o cultivo de hortaliças, frutas de época e lavoura de sequeiro, com milho, diferentes tipos de feijão e macaxeira, por exemplo.

A produção é diversificada e adaptada a cada microclima existente na Serra do Ororubá. Enquanto no Vale do Ipojuca a agricultura irrigada pelo rio tem foco na cultura de sequeiro e criação de caprinos, na zona semiárida tem os sistemas produtivos e criação bovina. O roçado por lá, defende Iran, deve ser entendido como “um meio para a floresta, e nunca um fim.”

“Eu sou muito crítico com relação às tecnologias sociais que prevalecem sem considerar as tecnologias ancestrais. A terra é sagrada, o solo é sagrado, a agricultura é um ato de religião, de religação, então, às vezes, a gente trabalha a terra-produção e não discute a garantia de vida para aquelas pessoas que querem trabalhar a terra, a relação com a terra, o cuidar da terra”, destaca.

Resistência e memória

A foto, capturada de cima, exibe uma disposição de itens sobre uma superfície de terra ou areia de cor bege-acizentada, lembrando um altar ou uma exposição. Os objetos são predominantemente produtos naturais, sementes, raízes e artefatos culturais. No centro, destaca-se uma bandeja de madeira redonda, dividida em compartimentos triangulares, contendo diversas sementes e grãos de cores e tamanhos variados, com uma garrafa escura no meio. Ao redor, estão espalhados espigas de milho de cor vermelha (milho crioulo), raízes de mandioca (aipim), pequenas garrafas e frascos de vidro com líquidos escuros ou óleos, sementes grandes e escuras, e flores amarelas e laranjas. Há também elementos como uma moringa de cerâmica, um pilão de madeira, um saco plástico branco com textos e caixas de papelão, e um pedaço de tecido ou papel com uma ilustração colorida no canto superior direito. A composição geral é rica em texturas e cores terrosas, sugerindo um foco em medicina tradicional, agricultura familiar e saberes ancestrais
Falar de saberes, fazeres e resistência dos Xukuru do Ororubá é falar do banco de sementes crioulas | Foto: Andréia Vitório

Falar de saberes, fazeres e resistência dos Xukuru do Ororubá é falar do banco de sementes crioulas. Ou, como a jovem Jamilly diz, “banco de memórias, resgate daquilo que nossos antepassados deixaram para a gente e do que podemos passar para outros jovens e crianças”. Dentro das diversas garrafas PET que armazenam variedades de sementes de feijão, milho, fava, por exemplo. Só de fava, “a gente tem mais de 30 espécies diferentes”, orgulha-se Jamilly.

No Centro Casa de Sementes Mãe Zenilda Xukuru, guardiões se encontram para o que chamam de “partilha da pedagogia ancestral”. Também como forma de restaurar a Caatinga, cuidam do viveiro de mudas que produz cerca de 20 mil brotos por ano e cujas sementes são coletadas em viveiros naturais do território. Tem muda de mulungu, de angico, imburana de cheiro, barriguda, ipês, entre outras.

Mudanças Climáticas e tecnologias

Os Xukuru do Ororubá estão atentos à questão climática. “A Caatinga é muito eficiente no sequestro de carbono e muito sensível a mudanças mínimas. A gente consegue se antecipar e perceber as mudanças, tendo essa experiência acumulada de um bioma seco, mas extremamente eficiente. A Caatinga verdeja só sentindo o orvalho,” reforça Iran Xukuru.

Somam-se aos saberes e fazeres ancestrais de produção e proteção das matas, tecnologias como cisterna calçadão, barragem subterrânea, cisterna de placa, quintal produtivo, sistemas agroflorestais, banco de sementes nativas e reúso de água, o que contribui para o enfrentamento à crise climática.

Como protagonista soberana, a tecnologia de floresta, que é perceber o ritmo da própria natureza para a produção e manutenção de paisagens saudáveis.

É pra pisar devagar

Foto de mulher de pele morena, com cabelo escuro preso, em um plano médio, focada em uma atividade com suas mãos. Ela veste uma camiseta escura com uma estampa em letras brancas e vermelhas. Com a mão direita ela segura uma garrafa plástica transparente, cheia de sementes que despeja na mão esquerda. A mulher está sob uma área coberta ou em uma varanda, visível pela sombra parcial e o pilar escuro no canto superior esquerdo. O fundo é um ambiente externo e rural, de terra batida clara, com uma estrutura cônica de telhado de palha ou sapê e outra de concreto (cisterna) logo atrás. Mais ao longe, há uma vegetação rasteira e arbustos verdes em uma paisagem de colina, sob um céu azul com nuvens brancas
“Aprender com ela (Caatinga) nos mantém vivos, sábios e preenchidos por todo esse saber e conhecimento que tem aqui”, afirma a jovem Xukuru Jamilly Santos | Foto: Andréia Vitório

Proteger as matas é proteger vidas. Das matas vem o alimento e também as medicinas. A jovem Jamilly trabalha para fortalecer essa missão: “me sinto muito gratificada de poder ser indígena e ser da Caatinga, levar nossa voz cada vez mais longe”.

“Aprender com ela (Caatinga) nos mantém vivos, sábios e preenchidos por todo esse saber e conhecimento que tem aqui. Por isso, anda devagar pra não tropeçar, pra não pisar no ciscado do preá, no riscado do calango, porque são inscrições e estão dizendo algo. A Caatinga é a nossa fábrica de produção de mundos”, ensina Iran Neves, liderança Xukuru.

* A jornalista Andréia Vitório esteve na Serra do Ororubá durante a Caatinga Climate Week, a convite da organização do evento.

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