Esta matéria, que destaca a necessidade de freio e salvaguardas na transição energética na Caatinga, é mais uma da série sobre a importância do Nordeste no cenário climático

A energia solar é celebrada como uma das soluções mais promissoras para enfrentar a Crise Climática e reduzir as emissões de gases de efeito estufa. No Brasil, a fonte já responde por 22,2% da capacidade instalada da matriz elétrica, e torna-se a segunda maior em apenas uma década. No entanto, por trás da narrativa de sustentabilidade, há um outro lado que começa a ganhar visibilidade: a expansão acelerada das usinas solares centralizadas no Nordeste tem provocado desmatamento, pressão sobre os recursos hídricos e violações de direitos de comunidades tradicionais e agricultores familiares.
Essas contradições estão no centro do relatório Salvaguardas Socioambientais para Energia Solar Fotovoltaica Centralizada, lançado pelo coletivo Nordeste Potência. O documento reúne mais de 40 diretrizes para que a transição energética ocorra de forma justa, e concilie a necessidade de ampliar as fontes renováveis com a preservação ambiental e o respeito aos direitos humanos.
Quase metade (44,9%) da área já ocupada por usinas fotovoltaicas substituiu vegetação savânica, segundo levantamento do MapBiomas. A Caatinga é um dos biomas mais impactados: entre 2016 e 2024, o desmatamento cresceu 25,48% na Bahia, 17,35% no Piauí e 16,27% no Rio Grande do Norte devido a projetos solares. Além da perda de biodiversidade, comunidades denunciam contratos abusivos de arrendamento de terras, fechamento de passagens e uso intensivo de água em regiões marcadas pela escassez.
“Todos os impactos são igualmente graves, pois dependem de fatores locais e culturais do território. Há problemas que se repetem independentemente do local, como contratos abusivos, desmatamento, fechamento de passagens e consumo alto de água para a limpeza de placas, sem considerar as outras necessidades locais”, afirma Cristina Amorim, coordenadora-geral do Nordeste Potência.
Água, o ponto cego
da energia solar
Um dos alertas mais contundentes do relatório é o uso de água pelas usinas. Embora a associação entre geração solar e consumo hídrico ainda seja pouco percebida, os volumes são expressivos e, em muitos casos, ignoram as demandas da população local. Para manter os painéis funcionando, é necessário limpá-los constantemente, processo que pode se tornar insustentável em áreas semiáridas.
“A maioria das pessoas não associa uma usina solar com água, mas hoje ela é usada em volumes imensos para manter os painéis limpos e produzindo energia. Escolher instalar uma usina solar onde existe escassez hídrica, mesmo que o potencial de geração de energia seja alto, é escolher o conflito. Para piorar, grandes áreas do Nordeste tendem a ficar cada dia mais secas por causa do agravamento da crise climática, então é um contrassenso e um risco reputacional instalar nesses locais uma tecnologia que surgiu para controlar a mesma crise climática”, critica Cristina.
Para o coletivo, governos e empresas precisam incluir a variável hídrica desde a fase de planejamento dos empreendimentos, escolhendo áreas que não gerem conflitos e evitando ampliar a vulnerabilidade das populações locais.
Relações desiguais
e contratos abusivos

Outro eixo central das salvaguardas é a relação entre empresas e agricultores familiares. Muitos contratos de arrendamento firmados para instalação de usinas são assinados sem que os agricultores tenham acesso à assistência jurídica. O resultado, segundo o relatório, é uma relação marcada por cláusulas desproporcionais e prejuízos de longo prazo para quem cede a terra.
“Ainda que o contrato se configure como uma relação privada, há estudos e inúmeros relatos de abuso, por parte das empresas, na hora de arrendar a terra de agricultores familiares. Muitas vezes eles não têm acesso a um advogado para analisar as cláusulas, levando a uma relação extremamente desigual entre as partes. Por esse motivo, entre outros, os agricultores que se sintam lesados podem buscar a Justiça. Esperamos que nossas recomendações sirvam como guia para as empresas reverem seu comportamento e para que os agricultores que desejem arrendar suas terras tenham instrumentos para negociar melhores condições”, explica a coordenadora.
As diretrizes propostas incluem um conteúdo mínimo contratual, maior transparência nas negociações e estímulo a que os agricultores tenham acesso a assessoria técnica e jurídica. O objetivo é equilibrar a balança entre empresas com alto poder econômico e famílias rurais em situação de vulnerabilidade.
Uma transição que não
aprofunde desigualdades
Além da questão fundiária e hídrica, o relatório chama atenção para a necessidade de considerar os impactos cumulativos da instalação de grandes empreendimentos. A recomendação é priorizar áreas já degradadas, sem uso produtivo ou prioridade para recuperação, evitando a supressão de vegetação nativa. Também propõe mecanismos de monitoramento ambiental e a realização da Consulta Prévia, Livre e Informada junto a comunidades tradicionais, conforme prevê a Convenção 169 da OIT – uma prática que ainda é negligenciada no setor.
Para Cristina Amorim, colocar as pessoas no centro é a condição essencial para que a transição energética seja de fato justa: “uma transição energética não pode se resumir a gigawatts, cifras e balanço de carbono, e, definitivamente, não deve aprofundar desigualdades sociais e econômicas. É preciso colocar as pessoas em primeiro lugar, respeitando seus direitos e suas necessidades”, defende.
Com 39 páginas, o relatório não se limita a críticas. Ele apresenta soluções concretas que podem ser adotadas por governos, empresas, financiadores e comunidades. Ao defender salvaguardas socioambientais, o Nordeste Potência coloca em evidência que a energia solar, se mal conduzida, corre o risco de repetir os modelos de exploração que a transição deveria superar.
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