Com 47 lixões fechados, Piauí avança na gestão de resíduos

Uma união de esforços vem transformando a realidade dos lixões nos municípios piauienses de 2021 para cá de forma exemplar

A foto mostra um lixão a céu aberto, onde há grande quantidade de resíduos espalhados pelo chão. Em destaque, vê-se muitas garrafas plásticas amassadas, sacolas e embalagens transparentes e verdes. Também aparecem objetos maiores, como um vaso marrom de plástico e parte de um eletrodoméstico branco descartado. A cena é cercada por vegetação verde densa nas laterais, contrastando com o acúmulo de lixo. No fundo, o céu está parcialmente nublado, com nuvens cinzentas que cobrem boa parte da paisagem
Em 2021 mais de 90% dos municípios piauienses declararam destinar resíduos a lixões | Foto: Faruk Morais Aragão / MPPI

O Brasil ainda convive com um passivo ambiental e social que se arrasta há décadas: os lixões. Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC 2023), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 31,9% dos municípios brasileiros ainda despejam seus resíduos a céu aberto, em desacordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), em vigor há 14 anos. A desigualdade regional é evidente. No Norte, 73,8% dos municípios utilizam lixões; no Nordeste, esse índice é de 51,6%. No Sul, apenas 5,7%.

Dentro desse cenário, o Piauí se destaca como um estado em transição. O diagnóstico inicial era dramático. Em 2021, levantamento do Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE-PI) mostrou que 223 dos 224 municípios piauienses destinavam seus resíduos de forma irregular, seja em lixões ou em aterros controlados sem licença ambiental. Apenas Teresina possuía um aterro sanitário adequado. O estudo apontou ainda a necessidade de construir sete aterros sanitários regionais e 40 estações de transbordo, com um custo anual estimado de R$ 65,8 milhões para viabilizar o sistema.

Foi nesse contexto que o Ministério Público do Estado do Piauí (MPPI) lançou o Programa Zero Lixões, em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), o TCE-PI e outras instituições. A iniciativa passou a coordenar esforços técnicos, jurídicos e políticos para mudar a realidade do Estado.

Um passivo histórico

A promotora de Justiça Áurea Madruga, que acompanha de perto a execução do programa, lembra a situação enfrentada em 2021: “mais de 90% dos municípios piauienses declararam destinar resíduos a lixões. Havia confusão conceitual entre lixão e aterro controlado, e também a ausência de educação ambiental nas gestões municipais. Era uma realidade generalizada e preocupante”.

Esse quadro, segundo ela, só começou a mudar quando o MPPI assumiu um papel de articulação, mostrando aos prefeitos que encerrar lixões era não apenas uma exigência legal, mas também uma solução viável. “Demonstramos que era possível encerrar lixões com recursos já existentes, como o ICMS Ecológico. A articulação interinstitucional fez toda a diferença”, reforça.

A solução articulada

O Programa Zero Lixões surgiu como resposta direta ao desafio. Além do MPPI, a Semarh assumiu protagonismo técnico, oferecendo licenciamento e fiscalização ambiental. “A Semarh atua na fiscalização, no licenciamento ambiental e no suporte aos municípios, além de agilizar processos para que soluções adequadas sejam implementadas com mais rapidez. O objetivo é consolidar um sistema eficiente e sustentável”, explica Catharina Teixeira, diretora de Licenciamento do órgão.

Entre as medidas implementadas estão o licenciamento diferenciado para aterros de pequeno porte e a desburocratização dos processos. O foco é permitir que municípios menores encontrem soluções viáveis e sustentáveis.

A reportagem tentou contato com a Associação Piauiense de Prefeituras Municipais (APPM), parceira no programa, por meio da sua assessoria de imprensa e do seu presidente, mas não obteve retorno.

Municípios piauienses que encerraram lixões

Agricolândia, Água Branca, Alegrete do Piauí, Altos, Amarante, Angical, Beneditinos, Buriti dos Lopes, Cajueiro da Praia, Caldeirão Grande, Campo Maior, Caraúbas do Piauí, Caxingó, Coivaras, Cocal dos Alves, Curralinhos, Demerval Lobão, Floriano, Francisco Aires, Francisco Santos, Geminiano, Hugo Napoleão, Ilha Grande, Jardim do Mulato, Joaquim Pires, Lagoinha do Piauí, Luís Correia, Marcolândia, Miguel Leão, Monsenhor Gil, Murici dos Portelas, Nazária, Novo Santo Antônio, Olho d’Água do Piauí, Palmeirais, Passagem Franca, Pau d’Arco, Picos, Prata do Piauí, Regeneração, Santa Cruz dos Milagres, São Félix do Piauí, São Gonçalo do Piauí, São Miguel da Baixa Grande, São Pedro do Piauí, Teresina, União.

Fonte: Semarh, 2025

Estrutura e custos

O levantamento do TCE-PI continua sendo referência para dimensionar o esforço necessário. Ele indica que, dos 223 municípios em situação irregular, 71 poderiam encaminhar resíduos diretamente para um aterro sanitário, enquanto 152 precisariam de estações de transbordo. O custo anual de R$ 65,8 milhões considera transporte e operação dos aterros, valor que pode ser compartilhado entre municípios por meio de consórcios intermunicipais.

Atualmente, o Estado conta com quatro aterros em operação: Água Branca, Buriti dos Lopes, Altos e Francisco Santos. Outros dois estão em processo de licenciamento, em Cristino Castro e Ipiranga. Há ainda cidades que destinam resíduos para aterros no vizinho Ceará.

O MPPI acompanha de perto a destinação correta. “Os aterros enviam relatórios mensais ao Ministério Público, informando a quantidade de resíduos recebida. Se houver queda abrupta ou ausência de envio, isso pode indicar reabertura de lixões ou criação de novos, e imediatamente abrimos procedimento de fiscalização”, explica a promotora Áurea Madruga.

O Caminho da Mudança no tratamento de resíduos | Fonte: MPPI | Arte: Isabelli Fernandes

Experiências locais

O município de Ilha Grande é um exemplo das mudanças em curso. Localizado no litoral do Estado, encerrou recentemente seu lixão e passou a destinar resíduos para um aterro licenciado. O secretário de Meio Ambiente, Agricultura e Pesca, Edmar dos Santos, destaca, no entanto, que o processo não foi simples.

“Encontramos resistência porque muitas pessoas viam no lixão uma forma de sustento. Houve dificuldade em fazer a população compreender que a mudança traria benefícios coletivos, principalmente para a saúde pública e para o meio ambiente. Foi preciso insistir no diálogo e buscar alternativas para não deixar ninguém para trás”, afirma.

Segundo ele, a transição exigiu esforço contínuo de conscientização. “Muitas famílias tinham no lixão sua sobrevivência. Não se tratava apenas de fechar uma vala, mas de mexer em uma realidade social. Tivemos que mostrar que o lixão representava risco à saúde, à dignidade e ao futuro da cidade. Foi uma mudança cultural que está em curso.”

Inclusão como prioridade

O levantamento do TCE-PI identificou 804 catadores em atividade no Estado, sendo 577 atuando de forma individual e apenas 227 vinculados a cooperativas ou associações. Outra contagem chegou a apontar 994 catadores, o que revela dificuldade em obter números precisos, mas evidencia a dimensão social do problema.

A professora Elaine Aparecida da Silva, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), especialista em ciclos de vida, alerta que o fechamento dos lixões precisa ser acompanhado de políticas inclusivas: “não podemos enxergar os lixões apenas como espaços a serem eliminados. É fundamental entender que muitos trabalhadores viam neles sua fonte de renda. A transição precisa abrir portas para empregos mais dignos e seguros, fortalecendo cooperativas, promovendo educação ambiental e incentivando o empreendedorismo social”.

Ela enfatiza que a resistência não deve ser ignorada, mas compreendida: “superar resistências não é apenas convencer. É criar políticas que assegurem renda e inclusão. Só assim as pessoas sentirão que não estão perdendo, mas ganhando”.

Na avaliação da professora, o fechamento dos lixões pode marcar uma transformação estrutural: “estamos diante da chance de substituir uma economia linear, baseada em descarte, por uma economia circular, em que os materiais retornam ao ciclo produtivo e os catadores são protagonistas desse processo. O lixo deixa de ser problema para se tornar recurso, desde que haja responsabilidade compartilhada entre poder público, empresas e sociedade”.

Impactos ambientais e sociais

Os resultados já são perceptíveis. O fechamento de lixões reduz riscos sanitários, evita a proliferação de vetores de doenças e melhora a qualidade de vida de comunidades vizinhas. Do ponto de vista ambiental, contribui para diminuir a contaminação do solo, da água e do ar, além de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, como o metano.

“Estamos observando impactos positivos, tanto para a saúde pública quanto para o meio ambiente. Ao mesmo tempo, buscamos apoiar a inclusão de catadores em cooperativas, para que a mudança seja também socialmente justa”, reforça a diretora da Semarh, Catharina Teixeira.

Comparativo regional

Quando comparado aos demais estados do Nordeste, o Piauí mostra avanços importantes. Segundo o IBGE (MUNIC 2023), Maranhão (86,2%), Ceará (80,9%) e Bahia (74,8%) ainda concentram altos índices de municípios com lixões. Já Pernambuco (0,5%), Alagoas (0,0%) e Sergipe (0,0%) praticamente erradicaram essa prática.

No caso piauiense, embora o levantamento do IBGE aponte que 77,2% dos municípios ainda destinam resíduos a lixões, a lista nominal divulgada pela Semarh confirma que 47 municípios já encerraram esses locais, entre eles Teresina, Floriano, Picos, União, Luís Correia e Ilha Grande. Esse resultado coloca o Estado em posição de destaque no cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), ainda que grandes desafios permaneçam.

A imagem mostra um mapa do Nordeste do Brasil destacado em verde, com os estados identificados por siglas e percentuais. O título na parte superior diz: “Municípios com lixões (%) — IBGE / MUNIC 2023”. Os números representam a proporção de municípios que ainda utilizam lixões em cada estado: Maranhão (MA): 86,2% Ceará (CE): 80,9% Piauí (PI): 77,2% Bahia (BA): 74,8% Paraíba (PB): 44,4% Rio Grande do Norte (RN): 36% Pernambuco (PE): 0,5% Alagoas (AL): 0% Sergipe (SE): 0%
Municípios do Nordeste com lixões | Fonte: IBGE / MUNIC – 2023 | Arte: Líliam Cunha

O que vem pela frente

O Programa Zero Lixões tem como meta encerrar mais 50 lixões até o fim deste ano. Para isso, aposta na expansão da coleta seletiva, no fortalecimento de cooperativas de catadores e no aprimoramento da logística reversa. “O avanço é real, mas precisamos garantir que a mudança seja definitiva. Nosso desafio é não permitir retrocessos. O lixão é crime ambiental, e essa prática não pode mais persistir no Piauí”, conclui a promotora Áurea Madruga.

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