Caatinga: da invisibilidade ao protagonismo climático

Esta é a sétima reportagem da nossa série especial sobre o Nordeste na COP30 e foca a abertura da Icid III e a importância da Caatinga no cenário climático global

A foto mostra um grupo de cactos eretos, altos e cobertos de espinhos, em primeiro plano. Eles se destacam contra o fundo verde e denso de árvores e arbustos com folhas brilhantes, típicos da Caatinga em período de chuvas. A luz do sol atravessa a copa, iluminando partes das plantas e criando contraste entre sombra e claridade
A única floresta 100% brasileira mostrou-se altamente eficiente no sequestro de carbono, mesmo em condições de seca extrema | Foto: Adriana Santiago

Diante da decisão do Brasil de sediar a 30ª Conferência das Partes (COP30) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) em Belém (PA), de 10 a 21 de novembro de 2025, e considerando o impacto desproporcional das mudanças climáticas nas regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas do globo, um grupo de instituições do Brasil e de outros países decidiu organizar a 3ª Conferência Internacional sobre Clima e Desenvolvimento em Regiões Semiáridas (Icid III 2025). 

A conferência, que começa hoje (15), em Fortaleza, e vai até a próxima sexta-feira (19), visa fortalecer e ampliar as discussões sobre os impactos das mudanças climáticas no desenvolvimento sustentável das terras secas globais no âmbito da COP30. Focará em questões de clima, mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável em regiões secas ao redor do mundo.

Grandes temas

  • Aspectos do clima nas regiões secas do Planeta
  • Impactos das variações climáticas (incluindo mudanças climáticas) nas regiões secas (impactos sociais, econômicos e ambientais)
  • Como se adaptar às condições climáticas atuais e às mudanças climáticas inevitáveis (adaptação)
  • Quais são os impactos das mudanças climáticas em regiões semiáridas e como essas regiões podem contribuir para os recursos hídricos, segurança alimentar e energia renovável
  • Como contribuir para a redução das mudanças climáticas (mitigação)
  • Como promover o desenvolvimento sustentável em regiões secas

Objetivos

  • Influenciar a agenda da COP30 com reforço às discussões sobre os impactos das mudanças climáticas no desenvolvimento das terras secas globais
  • Fornecer subsídios científicos e técnicos para garantir uma participação robusta dos delegados nacionais de países com regiões secas na COP30
  • Atualizar o conhecimento sobre temas que afetam o desenvolvimento sustentável das terras secas desde a 1ª Icid em 1992 e a 2ª Icid em 2010
  • Influenciar políticas públicas internacionais, nacionais e locais voltadas para o desenvolvimento sustentável e a adaptação climática das terras secas
  • Produzir uma série de publicações para disseminar conhecimento científico e acadêmico confiável que apoie a tomada de decisões sobre questões estratégicas para o desenvolvimento sustentável das terras secas, incluindo clima, vulnerabilidade, impactos, adaptação, mitigação, estratégias de sustentabilidade e população, recursos e desenvolvimento

O Observatório da Caatinga e Desertificação do Instituto Nacional do Semiárido (Insa) / Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) terá uma participação de destaque na Icid III. O pesquisador Aldrin Martin Pérez Marín integrará mesas redondas, painéis e workshops que tratarão os temas Desertificação e convivência com o Semiárido; Políticas públicas e tecnologias sociais de adaptação à seca; Sinergias entre as Convenções do Rio; e Conservação da Caatinga e sequestro de carbono.

Um dos momentos centrais será o painel “O papel da pesquisa diante dos desafios impostos pelas mudanças do clima no Bioma Caatinga”, promovido pela Embrapa, no dia 16. Ele tratará especificamente da desertificação como ameaça estratégica para o Semiárido brasileiro. No dia 18, Aldrin pela manhã participa do Workshop de Especialistas do Bioma Caatinga, organizado pelo MapBiomas, que reunirá cientistas e gestores para debater estratégias de conservação e restauração do bioma frente às mudanças climáticas. E à tarde, integrará o painel “Participação Social em Ciência, Tecnologia e Inovação e Sinergias entre as Convenções do Rio”, promovido pela World-Transforming Technologies (WTT) e pelo CGEE.

Outro destaque será a COP Nordeste (15 a 17 de setembro), evento estratégico paralelo à Icid III, organizado pelo Consórcio Nordeste. A conferência busca consolidar posições regionais unificadas em preparação para a COP30 e reforçar o protagonismo do Nordeste na agenda climática global.

A presença do Observatório da Caatinga reforça o papel estratégico da ciência brasileira na busca por soluções de convivência sustentável no Semiárido brasileiro. Para o professor Aldrin, a participação do Insa em fóruns internacionais “é uma oportunidade de mostrar ao mundo que o Semiárido não é apenas vulnerabilidade, mas também potência de inovação e resiliência, especialmente por meio do alto potencial da Caatinga no sequestro de carbono”.

Caatinga reposicionada

Pesquisas recentes têm reposicionado a Caatinga no debate climático global. Longe de ser um bioma “pobre”, como se dizia no passado, a única floresta 100% brasileira mostrou-se altamente eficiente no sequestro de carbono, mesmo em condições de seca extrema. O bioma consegue absorver entre 1,5 e 7 toneladas de CO₂ por hectare ao ano, com mais de 70% desse estoque guardado no solo.

As descobertas estão reunidas no artigo “A Caatinga e seu papel estratégico no sequestro do carbono”, de autoria de Aldrin Martin Pérez Marín e John Cunha, ambos do Observatório da Caatinga e Desertificação (OCA), ligado ao Insa e à Universidade Federal de Campina Grande. O trabalho reforça a importância do bioma para a agenda de mitigação e adaptação climática, especialmente no contexto da COP30.

A imagem mostra um homem de pele morena e cabelos escuros e curtos, sorrindo e olhando para a câmera. Ele veste uma camisa de manga longa verde-oliva, com os braços cruzados à frente do corpo. Ao fundo, há uma paisagem ampla e ensolarada: um grande lago de águas azuis, áreas de vegetação verde e algumas casas espalhadas. Montanhas baixas aparecem no horizonte, sob um céu azul claro com poucas nuvens brancas
Para Aldrin Marín, que é pesquisador do Insa, coordenador do OCA e correspondente científico do Brasil junto à UNCCD, chegou a hora de o País reconhecer o Semiárido como ativo estratégico na luta contra a crise climática | Foto: Arquivo pessoal

Os avanços mais recentes na compreensão do papel climático da Caatinga também estão reunidos no artigo “Carbon sequestration potential of tropical dry forests under drought: lessons from the Brazilian Caatinga”, assinado por Aldrin Martin Pérez Marín, John Cunha e outros pesquisadores, publicado na revista Agricultural and Forest Meteorology. O estudo reforça que, mesmo diante de secas prolongadas, a Caatinga mantém um balanço positivo de carbono, funcionando como sumidouro em condições em que outros ecossistemas tendem a se tornar fontes.

A pesquisa, realizada a partir de medições micrometeorológicas em áreas de Caatinga preservada, mostrou que o bioma pode sequestrar até sete toneladas de CO₂ por hectare ao ano, mesmo sob forte estresse hídrico. Esse desempenho se deve, em grande parte, à adaptação de suas espécies vegetais, capazes de manter a fotossíntese em condições adversas e de estocar carbono no solo com elevada eficiência.

Outro achado importante do estudo é que a eficiência do uso da água na Caatinga está entre as mais altas do Planeta, com até 5,2 kg de CO₂ fixado por metro cúbico de água. Em termos práticos, significa que a floresta seca brasileira consegue transformar escassez em produtividade ecológica, assegurando a sobrevivência de espécies nativas e garantindo estabilidade para milhões de pessoas que dependem dos recursos do Semiárido.

Os autores destacam ainda que reconhecer o potencial da Caatinga é essencial para corrigir lacunas em modelos climáticos globais, que frequentemente subestimam em até seis vezes o papel das florestas tropicais secas no sequestro de carbono. Incorporar esses dados às políticas públicas e às negociações internacionais, segundo os pesquisadores, é um passo decisivo para valorizar a Caatinga como ativo climático estratégico.

Para Aldrin Marín, que é pesquisador do Insa, coordenador do OCA e correspondente científico do Brasil junto à UNCCD, chegou a hora de o País reconhecer o Semiárido como ativo estratégico na luta contra a crise climática.

Em entrevista à Eco Nordeste, Marín destaca as evidências científicas mais recentes, aponta caminhos para políticas públicas e defende que agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais estejam no centro da agenda climática. Confira:

Líliam Cunha – Qual é o papel estratégico da Caatinga no sequestro de carbono e como isso se conecta à COP30?

Aldrin Marín – A Caatinga é o único bioma 100% brasileiro e a maior floresta tropical sazonalmente seca do mundo. E, é também uma usina silenciosa de carbono. Mesmo em anos de estiagem, mantém sequestro líquido entre 1,5 e 7 tCO₂ por hectare/ano, com alta eficiência no uso de carbono e água. É um dos biomas mais eficientes do Planeta para conter o aquecimento. A COP30 é a hora de tirar a Caatinga da periferia da pauta climática e lançar um Programa Nacional de Crédito de Carbono Social, regulado e transparente, que remunere agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas e assentados por manterem o carbono no solo e na vegetação.

LC – Antes vista como “bioma pobre”, o que mudou na percepção científica sobre a Caatinga?

AM – Mudou a régua. Com séries longas e torres de fluxo, vimos que a Caatinga segue sequestrando carbono com eficiência de até 62%, mesmo em anos secos. A maior parte do carbono fica no solo, cerca de 70%, funcionando como um cofre subterrâneo que garante estabilidade ao sumidouro. E aprendemos a enxergar seus ciclos fenológicos – verde, cinza e branco -, não como sinais de pobreza, mas como estratégia de adaptação. A ciência mostrou que a Caatinga não sobra no debate: ela é trunfo climático e ecológico do Brasil.

LC – Como o desempenho da Caatinga se compara a outros biomas?

AM – No balanço continental, as florestas tropicais secas, onde a Caatinga se insere, acumulam tanto carbono quanto as florestas úmidas. Popularmente podemos dizer: quando a chuva falha, a Caatinga não desiste, se adapta e continua sequestrando. Essa resiliência é o que explica seu protagonismo no equilíbrio do clima.

LC –  O que significa, na prática, essa alta eficiência no uso de carbono e da água?

AM – Significa estabilidade e resiliência. Com uma eficiência hídrica que chega a 5,2 kg de CO₂ fixado por metro cúbico de água, a Caatinga transforma escassez em potência. Na prática, isso se traduz em solos mais férteis, microclimas mais amenos e sistemas produtivos mais estáveis. Esse pacote de eficiência deve orientar políticas de restauração, assistência técnica e pagamentos por serviços ambientais.

LC – Quais os impactos da expansão do semiárido e da perda de cobertura florestal?

AM – É um efeito dominó. A fronteira do Semiárido avançou quase 200 mil km², enquanto a Caatinga perdeu cerca de 21% da cobertura florestal. Isso significa fragmentação de habitats, erosão, rios intermitentes secando mais cedo e comunidades vulneráveis. Hoje, 39 milhões de brasileiros vivem em áreas suscetíveis à desertificação, com impactos diretos sobre segurança alimentar, hídrica e saúde.

LC – Com o risco de +3 °C inviabilizar a agricultura de subsistência, que adaptações são urgentes?

AM – Precisamos agir já. Agroecologia e sistemas agrossilvipastoris são estratégicos porque diversificam a produção e aumentam a resiliência. É essencial recuperar áreas degradadas com sementes nativas, segurar água no solo com técnicas simples e investir em cisternas, barragens subterrâneas e irrigação de baixo custo. Também é preciso fortalecer bancos de sementes crioulas e serviços climáticos locais, além de criar políticas que remunerem quem conserva.

LC – Como colocar a Caatinga no centro da agenda climática e da justiça socioambiental?

AM – Para colocar a Caatinga no centro da agenda climática e da justiça socioambiental, é preciso juntar regulação, ciência e protagonismo popular, com governança territorial de verdade. Regulamentando o Crédito de Carbono Social, com governança participativa e transparência, é preciso territorializar decisões, envolver conselhos locais e garantir que comunidades sejam protagonistas. Também é hora de transformar a restauração em política de Estado, apoiar cadeias da sociobiodiversidade e incluir a Caatinga nas metas nacionais de clima, de forma visível e valorizada. Ou seja, política pública com raiz e rosto. Quem cuida vira protagonista, e a floresta seca entra no orçamento, no inventário e no mercado, com regras justas.

LC – Quais lacunas de pesquisa ainda precisam ser preenchidas?

AM – São quatro frentes urgentes. Primeiro, o carbono invisível: ainda temos poucas séries sobre solos profundos, madeira morta e raízes finas, que podem mudar a conta do sumidouro. Segundo, a modelagem mais fiel: os modelos globais subestimam em até seis vezes o papel das florestas secas, por isso precisamos incluir melhor fogo, seca e a interação árvore-gramínea. Terceiro, escala e mapeamento: é fundamental separar florestas secas das úmidas nos inventários e nas metas climáticas, para que a Caatinga apareça de fato nas contas. Por fim, a ciência inclusiva, feita no território, com financiamento de longo prazo, inovação social e políticas públicas que transformem conhecimento em prática.

Ao citar Patativa do Assaré, Aldrin Marín lembra que a Caatinga é mais do que resistência: é esperança. “Suas riquezas valem mais que os reinados do Aladim”, diz o poeta, e a ciência confirma que esse patrimônio natural é também uma solução contra a crise climática. Para o pesquisador, a COP30 será a chance de o Brasil mostrar ao mundo que a floresta seca é, na verdade, um ativo climático global que guarda carbono, água, biodiversidade e cultura.

Leia as outras reportagens desta série:

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