Lutas agrárias do Tocantins têm origem no latifúndio

Dos estados que compõem a fronteira agrícola do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí, Bahia), o Tocantins é o único na Região Norte. Ele também se difere por ter todos os seus municípios (139) dentro da área de expansão de monoculturas, formalizada pelo Governo Federal em 2015.

Foto colorida do Rio Formoso, no Tocantins, na margem esquerda vegetação nativa, verdejante, e à direita uma praia fluvial de areia e vegetação rasteira

Rio Formoso, um dos recursos hídricos da região, sofre pressões do agronegócio. Foto: Cimi

Do ponto de vista jurídico, o Tocantins é o mais jovem dos estados brasileiros. Se emancipou de Goiás em 1988. “Não se criou novas terras, elas apenas foram divididas. Mas aqui nós temos um problema histórico. O norte de Goiás sempre foi o centro do coronelismo goiano. Uma região com grandes latifúndios, tomada por conflitos e abandonada pela justiça. A gente herdou isso. E quando passamos a ser um novo estado, quem passa a comandar são os filhos dos coronéis”, afirma o agrônomo Paulo Rogério Gonçalves, da ONG Alternativas para Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO). Ele conta que, devido à concentração de poder e o descompromisso com a transparência, é extremamente difícil conseguir informações sobre as terras públicas e seus usos. 

Em 2018, um levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) denominado “Transparência dos Órgãos Fundiários Estaduais na Amazônia Legal” mostrou que, na transparência ativa, o Tocantins tinha 79% dos indicadores fundiários ausentes. A pior posição no ranking.  Segundo o documento, o  Instituto de Terras do Tocantins (Intertins), órgão que trata da regularização de terras no Estado, não apresentava informações “sobre títulos emitidos por venda ou doação, áreas estaduais arrecadadas e matriculadas, ou sobre projetos de assentamentos estaduais”.

A completa escuridão quanto às terras públicas e o que tem sido feito com elas abre caminho para um processo de grilagem, exclusão e violência no campo. Segundo a CPT, em 2022, foram registrados, no Tocantins, 504 casos de pistolagem, 113 casas destruídas, 101 ameaças de expulsão, 15 ameaças de morte contra posseiros e um homicídio decorrentes de conflito por terra.

Há pouco mais de três anos, o Tocantins tem em vigor a controversa Lei Estadual 3.525/2019 que, segundo os movimentos sociais, “legaliza o roubo” de terras ao permitir que o título de propriedade privada seja validado apenas em cartório, sem necessidade de comprovação da cadeia dominial (a sequência cronológica das transmissões da propriedade até chegar ao dono atual). Sem passar por um processo administrativo e jurídico transparente, as terras públicas correm o risco de cair na mão de particulares para além do limite legal, que é de 2.500 hectares. O artigo 188 da constituição afirma que acima desse limite só mediante aprovação prévia do Congresso Nacional.

“A gente não consegue mensurar qual está sendo o impacto desta lei na população tocantinense, simplesmente porque não temos acesso às informações. O Intertins só vai atuar na fase final, na liberação do título. Até lá o processo segue praticamente todo no cartório. Do ponto de vista financeiro, não é de interesse dos cartórios que as informações se tornem públicas. A gente não sabe quais são as terras que estão sendo tituladas, onde, quanto e para quem. E essa é nossa maior preocupação”, relata Dinah. Além de permitir que terras de qualquer tamanho sejam tituladas, a lei estadual também é apontada como inconstitucional por legislar sobre matéria que é competência da União, como direito fundiário e registros públicos. 

Em 5 de Dezembro de 2023, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), em parceria com outras instituições, protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). O processo agora segue sob a relatoria do ministro Kassio Nunes Marques, escolhido por sorteio. “Neste primeiro momento, esperamos que ao menos o pedido liminar seja acatado, suspendendo os efeitos da lei. Sabemos que esse processo não vai ser rápido. Mas, ao final, a gente espera a declaração de inconstitucionalidade”, explica a advogada. O texto enviado ao STF afirma que as terras públicas devolutas deveriam ser destinadas prioritariamente à reforma agrária (agricultores familiares, posseiros e povos tradicionais), em consonância com o que rege a constituição federal. No Tocantins, o último assentamento estadual foi criado em 1996, há quase 30 anos. 

Correndo em paralelo à Lei Estadual 3.525/2019, outra ação legislativa, desta vez em tramitação no Senado Federal, tem sido acusada de promover maior segurança jurídica para a expansão do agronegócio no Tocantins. O Projeto de Lei Nº 1199/2023 de autoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO), e sob relatoria da senadora Dorinha Seabra (União-TO), propõe transferir as terras públicas pertencentes à União para o domínio do Estado. Caso aprovada, a lei beneficiaria áreas estratégicas na produção de soja, no entorno da BR-153. Em nota enviada à Agência Pública, a senadora afirmou que a proposta busca reparar um erro histórico do período da ditadura militar e que as terras da União destinadas à reforma agrária serão protegidas.

Mapa colorido do Tocantins, no contexto da região do Matopiba, com um gráfico em forma de pizza ao lado mostra que todos os 139 municípios integram esta grande fronteira agrícola nacional

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

Os 73 milhões de hectares do Matopiba integram três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área); Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%); e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

Com mais de 27 milhões de hectares, o Tocantins é um pouco maior que a Nova Zelândia. Segundo o Levantamento de Legislação Ambiental e Fundiária do Estado, produzido pelo Observatório do Matopiba, 66% do território possui alguma destinação fundiária. Já os outros 34% não têm destinação ou informação a respeito.

Os imóveis privados representam a maior parte da área já ocupada, sendo 13 milhões de hectares, quase metade do estado (48,5%). E é justamente nesse espaço que os índices de desmatamento mais preocupam. Segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado, desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), as grandes propriedades são atualmente as principais responsáveis pela perda de vegetação nativa. Em novembro de 2023, o desmatamento no Cerrado mais que dobrou em comparação com o ano interior, estimulado pelo Tocantins e demais estados que compõem o Matopiba. Dos 115 mil hectares de área derrubada, 87 mil foram dentro de propriedades privadas.

“A gente tem que garantir que as terras do Estado sejam regularizadas e entregues na mão das populações locais, originárias, quilombolas. O Matopiba é a única área contínua de Cerrado no Brasil, aí eu pego e lanço um programa para avançar com o desmatamento e a expansão das monoculturas. É uma política incoerente com a realidade e o discurso do governo brasileiro. Lá na COP (Conferência das Partes da ONU) fica falando um monte de coisa, mas chega aqui e incentiva a destruição”, critica o agrônomo.

No dia 1º de novembro de 2023, o Governo Lula editou decreto que “relançou o programa” e instituiu um comitê gestor para o Plano de Desenvolvimento Agropecuário e Agroindustrial do Matopiba (PDA-Matopiba). 26 dias depois de assinar o decreto que fortalece o agro, o presidente esteve em Araguatins, município que fica às margens do rio Araguaia, entregando a documentação do primeiro (e até então único) território quilombola titulado no Estado do Tocantins. Mesmo com o avanço do ponto de vista jurídico, as 70 famílias do Quilombo Ilha de São Vicente ainda convivem com invasões ilegais, conflitos agrários, além da omissão do poder público em relação ao acesso à água potável, saúde e educação. O Tocantins possui 48 quilombos certificados pela Fundação Palmares, mas apenas seis tiveram avanços recentes na titulação junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O cenário é de desigualdades. Enquanto os imóveis privados ocupam quase metade do Tocantins (48,5%), as comunidades quilombolas ocupam menos de 0,1%. Um pouco acima estão os projetos de assentamento e unidades de conservação, ambas com 4%, e as terras indígenas com 9% do território. Segundo dados do Censo 2022, o Estado tem a 2º maior porcentagem de indígenas vivendo em áreas protegidas, 75,9% dos 20.023 autodeclarados povos originários. O respaldo jurídico, porém, não garante a proteção física dessas terras.

Em novembro de 2023, a Polícia Federal e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fizeram uma ação conjunta contra invasões na Ilha do Bananal, maior ilha de água doce do mundo, onde moram 7 mil indígenas de três diferentes etnias. Na operação foram encontrados vestígios de pesca e caça ilegal, além da perda de 54 mil hectares de vegetação nativa devido a um incêndio que impactou os meios de subsistência da população indígena. 

 “Por mais que tenha um conflito de terra violento, um elemento que fortalece qualquer comunidade, levando ela a se manter, é a produção de alimento. Se não tiver o que comer, inevitavelmente, ela vai precisar sair. Ninguém fica sem comer”, diz Paulo Rogério. Fundada em 1992, a APA-TO oferece assessoria técnica para trabalhadores rurais, contribui com os processos de produção com foco na agroecologia, ajuda na comercialização dos produtos, produz estudos e documentos sobre as populações e também acompanha os conflitos.

Um dos dois escritórios da APA-TO fica justamente no Bico do Papagaio, microrregião no norte do Estado, em plena Amazônia Legal, que tem um histórico sangrento no campo. Quase a totalidade do Tocantins (91%) está inserido dentro do Cerrado. Mas os 9% restantes, entre o Pará e o Maranhão, pertencem ao bioma amazônico. Na década de 1980, fazendeiros da região foram responsáveis por mandar matar o Padre Josimo, uma das principais lideranças do País em defesa da terra. Quase 40 anos depois, em meio à fronteira agrícola do Matopiba, o Tocantins continua sendo um Estado pouco transparente, hostil para quem vive do campo e atrasado em relação à democratização dos direitos territoriais.

Projeto Ma.to.pi.ba

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma iniciativa multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Lançado em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, o projeto aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelos repórteres Alice Sales e Victor Moura, a fotógrafa Camila de Almeida, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação; Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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