Há dois dias o mundo celebrou o Dia Mundial da Alimentação, data criada em 1981, por ocasião da fundação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) não apenas para lembrar a importância dos alimentos para todas as pessoas do Planeta, mas um apelo à ação para garantir segurança alimentar em todo o mundo.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente quase 40% da humanidade (3 bilhões de pessoas) não conseguem pagar por uma dieta saudável e a fome cresce, assim como a subnutrição e a obesidade; situação agravada com os impactos econômicos da pandemia de Covid-19, que deixou mais 140 milhões no mundo sem acesso aos alimentos dos quais necessitam.
A ONU destaca, ainda, que, ao mesmo tempo, a maneira como produzimos, consumimos e desperdiçamos alimentos causa um grande impacto no Planeta, pois amplia a pressão histórica sobre o equilíbrio ambiental. Por este motivo, o tema escolhido em 2021 foi “As nossas ações são nosso futuro“.
Reunidos no dia 23 de setembro na Cúpula dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas, os países assumiram compromissos ousados para transformar os sistemas alimentares; tornar as dietas saudáveis mais baratas e acessíveis; e para tornar os sistemas alimentares mais eficientes, resilientes e sustentáveis em cada etapa, da produção e processamento à comercialização, transporte e entrega.
Como destacou a ONU, no Dia Mundial da Alimentação 2021, “todos nós podemos mudar a forma como consumimos alimentos e fazer escolhas mais saudáveis, para nós mesmos e para o nosso planeta”. A questão é que nem todos têm esse direito de escolha, não por opção.
Problemas continuam
Organizações como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e outras da América Latina publicaram um manifesto, ao fim da Cúpula, sobre a urgência de se fortalecer modelos de produção e consumo de alimentos mais saudáveis e sustentáveis.
Para a entidade e seus parceiros da sociedade civil, a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU não atingiu o objetivo de dar voz e espaço para as pessoas que realmente fazem parte dos sistemas alimentares. “Pelo contrário, o evento foi uma oportunidade para formalizar a interferência da indústria no modo em que se produz e consome alimentos, com reforço às crises globais de fome, obesidade e mudanças climáticas“, ressalta.
O manifesto destaca que centenas de promessas foram feitas por líderes de Estados e empresas. No entanto, não há obrigação de cumprimento de nenhuma dessas promessas, uma vez que não são compromissos vinculantes.
A maioria dos pontos favorecem soluções relacionadas a inovações tecnológicas e aumento de produtividade e desconsidera experiências e práticas bem sucedidas de Agroecologia em diversos países, como as do Semiárido brasileiro.
Para Michael Fakhri, relator especial sobre Direito à Alimentação do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH), a Agroecologia é uma maneira de as pessoas assumirem o controle sobre os sistemas alimentares.
“A Agroecologia deve ser o foco principal porque começa com a dinâmica do poder e trata o problema como uma questão relacionada ao acesso a recursos e controle sobre o sistema alimentar”, defendeu em seu relatório.
Segundo ele, a Agroecologia é também economicamente viável: “Pesquisas sugerem que, se calcularmos a produtividade em termos de produção total por hectare e não para uma única safra, e em termos de entrada de energia versus produção, a Agroecologia é frequentemente mais produtiva do que técnicas industriais intensivas”.
Multistake…o quê?
Multistakeholders é um termo em inglês que significa, em tradução livre, partes interessadas. A Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU foi pensada neste formato, para dar espaço a todo ator ou parte interessada – empresas, instituições ou pessoas – em discutir e propor caminhos para os sistemas alimentares.
Mas, segundo as instituições que assinam o manifesto, na prática, este espaço de multistakeholders foi desequilibrado porque as empresas multinacionais dispõem de imensos recursos para promover suas agendas, ao contrário de povos originários, tradicionais, agricultores familiares, extrativistas, consumidores e as pessoas que realmente fazem parte dos sistemas alimentares.
Para Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, a cúpula poderia ter sido uma grande oportunidade da real escuta das necessidades dos povos sobre o seu direito legítimo a uma alimentação adequada e saudável. “Ao invés de soluções reais baseadas nas demandas e direitos, foram apresentados caminhos que consideram os interesses das grandes corporações, os quais irão perpetuar a insegurança alimentar e aumentar as doenças crônicas não transmissíveis”, avalia.
“Não conseguimos identificar nos documentos formais da cúpula o uso do termo ‘ultraprocessado’, por exemplo, mesmo levando em conta o conjunto robusto de evidências dos malefícios do consumo destes produtos, que causam obesidade, doenças crônicas, mortalidade precoce e até depressão”, explica Janine.
A sociedade civil segue na luta por soluções reais, como o reconhecimento dos impactos dos produtos ultraprocessados na saúde e no meio ambiente, reforço das medidas regulatórias (rotulagem frontal, taxação de bebidas regulatórias, restrição de marketing) e a promoção de guias alimentares, como o Guia Alimentar para a População Brasileira, produzido pelo Ministério da Saúde com apoio do Idec.
Promessas brasileiras
Segundo a organização do evento, as agências da ONU sediadas em Roma – FAO, Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida) e Programa Mundial de Alimentos (WFP) – irão, em conjunto, liderar um centro de coordenação para apoiar o acompanhamento da Cúpula de Sistemas Alimentares.
Essa medida, segundo os signatários do manifesto, na prática, ignora o fato de que já existe um espaço participativo e consolidado dentro das Nações Unidas para debater sistemas alimentares, que é o Conselho de Segurança Alimentar, que dispõe de reconhecidos mecanismos de participação, inclusive da sociedade civil.
Além disso, as reflexões e discussões da cúpula terão continuidade por meio de coalizões que foram e ainda estão sendo lançadas e lideradas por países membros e outras organizações, como a OMS, a Organização Mundial da Saúde (OMS). Para essas entidades, isso confirma a suspeita de que uma das apostas da cúpula era a fragmentação das políticas, o enfraquecimento do papel dos países como articuladores de políticas.
Tereza Cristina, ministra da agricultura, pesca e abastecimento, representou o governo brasileiro na cúpula. Anunciou que o Brasil integrará as coalizões de Desperdício, Pecuária Sustentável e Alimentação Escolar, além de lançar uma frente sobre Crescimento Sustentável da Produtividade em parceria com o governo dos Estados Unidos.
“Ao contrário dos fatos – taxas recordes de desmatamento, uso intensivo e indiscriminado de agrotóxicos, ocupação de terras de povos originários e tradicionais, redução de nossa biodiversidade ou as 19 milhões de pessoas passando fome no Brasil – a ministra continua anunciando a sustentabilidade do nosso sistemas alimentar hegemônico e que o País ‘alimenta o mundo’”, pontua Janine Coutinho.
Sistemas Alimentares saudáveis e sustentáveis
Para reforçar as demandas da sociedade civil frente aos resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, as organizações parceiras da Comunidade de Prática da América Latina e Caribe sobre Nutrição e Saúde (Colansa) lançaram um manifesto com 16 pontos fundamentais para a transição de modelos de produção e consumo de alimentos.
Com foco nos direitos humanos, o documento aposta em sistemas alimentares que contribuam para a igualdade social, para promover a saúde da população, além de sustentabilidade ambiental e mitigação das mudanças climáticas.
Serviço
Manifesto sobre a urgência de Sistemas Alimentares saudáveis e sustentáveis