A Caravana Nordeste Potência teve como objetivo divulgar um plano que vem sendo construído por várias mãos para garantir que o Velho Chico continue sendo gerador de água e energia na região, mas, sobretudo, de dignidade para sua população, historicamente não beneficiada por suas riquezas como merece. Nesta quinta reportagem, trazemos uma reflexão sobre a exploração elétrica no Rio São Francisco.
É impossível percorrer o Submédio e Baixo Rio São Francisco e não se deparar com histórias relacionadas à construção das usinas hidrelétricas. São relatos de dificuldades de acesso à água, escassez de peixes e mudanças bruscas na vazão. Mas também há histórias de vida e certa prosperidade advinda das intervenções que começaram no início na segunda década do século passado e que tiveram como marco a construção das usinas hidrelétricas de Paulo Afonso (BA).
Quem conta um pouco dessa história é a guia de turismo Joselma Rodrigues, leva os visitantes a mergulhar neste passado duro, mas que fez a cidade ser o que hoje é: “Paulo Afonso é uma cidade jovem porque, em 1948, quando se começou a construir as usinas e a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) se instalou, era apenas um povoado, chamado Forquilha, que fazia parte da cidade Glória. Se emancipou logo quando começou a construção da primeira usina, em 1948. Devido ainda ser um povoado, não houve grande deslocamento populacional. Quando se fala de aspecto econômico, até hoje dizemos que a Chesf é considerada uma mãe da cidade porque quando se instalou não havia trabalho aqui. O acesso à água era muito difícil com paredões de mais de 80 metros até o rio. Quando foi feita essa represa, as pessoas começaram a ter acesso à água”.
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Segundo Joselma, até os anos 1980, a cidade era dividida entre os chesfianos e não chesfianos: “o chesfiano tinha água encanada, escola, pela estrutura da Chesf, gigantesca que atraiu várias pessoas para cá. Paulo Afonso foi construída por pernambucanos, cearenses, essa mistura de toda a região Nordeste que chegou aqui atrás de emprego. Mas isso criou uma segregação. A cidade ficou dividida entre os chesfianos e o pessoal da Vila Poti, formada pelos sacos de cimento Poti usado para a construção da usina. A Chesf cercou suas vilas, de engenheiros, de operários, de funcionários. Nas vilas, os chesfianos tinham toda essa mordomia e quem vinha atrás de emprego e não conseguia ficava do outro lado. Isso foi dos anos 1950 até os anos 1980, quando o pernambucano Abel Barbosa chegou aqui e começou a se incomodar com isso, se tornou prefeito, derrubou o muro que para ele era o muro da vergonha”.
A guia de turismo conta que, até nos anos 2000 ainda se falava sobre isso e havia muito preconceito. Mas o sentimento de a Chesf ser a mãe da cidade existe até hoje porque toda cidade se desenvolveu a partir dela, seu principal motor econômico: “a Chesf paga royalty à Prefeitura que é transformado em educação e emprego para a população. Tem o subemprego, comércio e outras coisas, mas hoje ainda é a energia elétrica o capital bruto de Paulo Afonso. Se não fosse a Chesf eu fico tentando imaginar como ela seria hoje. Aqui é sertão, Semiárido. É difícil enxergar isso porque a cidade hoje é rodeada de água e se tornou como um oásis. Recebeu até esse nome, Oásis do Sertão, Capital da Energia, Sertão Belo, isso devido à Chesf e a Chesf devido ao Rio São Francisco. A cidade tem o privilégio de ser cortada pelo Rio São Francisco e ter uma das paisagens mais exuberantes que são os cânions, um dos poucos grandes cânions navegáveis no mundo”, ressalta.
“No turismo, perdemos muito porque há até 20 anos as cachoeiras eram abertas e hoje não mais, pela falta de água devido à escassez de chuvas no Alto São Francisco. Nós torcemos para que o próximo governo tenha um olhar mais voltado para o turismo e que seja um turismo sustentável, com trilha guiada por condutor habilitado para proteger, preservar”, afirma a guia.
Para finalizar, uma reflexão preocupante: “as usinas Paulo Afonso I, II e III já não geram tanto quanto hoje quanto Xingó, porque ela e a Paulo Afonso IV são mais modernas e usam menos água para gerar mais”.
Hidrelétricas predominam
Heitor Scalambrini Costa, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nos conta que, inaugurada em 26 de janeiro de 1913, a Usina Hidrelétrica de Angiquinho (UHA), no Rio São Francisco, entre os estados de Alagoas e Bahia, é um marco social, político, econômico, e cultural para a população nordestina: “naquela época, a fonte de energia predominante era obtida a partir da queima do carvão vegetal. Somente nas capitais eram utilizados geradores abastecidos por combustível fóssil para obter energia elétrica”.
Atualmente, ao longo da calha do Rio São Francisco, estão instaladas oito usinas hidrelétricas pertencentes à Chesf: Paulo Afonso I, II, III e IV (BA), Sobradinho (BA), Luiz Gonzaga ou Itaparica (PE), Apolônio Sales ou Moxotó (AL) e Xingó (SE).
Sobre potencial e geração, ele explica: “a bacia do Rio São Francisco é dotada de um potencial hidrelétrico estimado em cerca de 26,3 GW, dos quais 10,3 GW estão sendo operados nas usinas hidrelétricas da Chesf. Dificilmente outras usinas deverão, ou poderão ser construídas em sua bacia, mesmo com a pressão exercida pelas grandes construtoras, as mais interessadas nestas obras”.
E revela o motivo: “um dos maiores problemas decorrentes das mudanças climáticas na região é a redução da precipitação, e consequentemente a vazão do Rio São Francisco que não só compromete a geração de energia, mas os outros múltiplos usos, como consumo humano e irrigação. A gestão das águas torna-se imprescindível e vital para a vida humana e animal de todo o território nordestino”.
O professor também alerta que a privatização da Eletrobras (Centrais Elétricas Brasileiras S.A.) e de suas empresas, como a Chesf, introduziu uma questão a mais na discussão sobre a sobrevivência do Rio e seus afluentes: “De certa forma, o Rio foi privatizado e as consequências negativas para o meio ambiente e as pessoas serão rapidamente visíveis e sentidas nos próximos anos”.
Scalambrini ressalta que, desde as primeiras grandes hidrelétricas instaladas, houve grandes danos: “na área que recebe o grande lago que serve de reservatório, a natureza se transforma completamente: o clima muda, espécies de peixes desaparecem, animais fogem para locais secos ou morrem por não conseguirem fugir, muitas espécies vegetais ficam submersas, assim, toda matéria orgânica se decompõem, o que reduz a biodiversidade e produz grande quantidade de metano, que é um gás de efeito estufa”.
“O impacto social é outra consequência gravíssima que desestabiliza as populações, com a remoção forçada de milhares de pessoas que deixam suas casas e têm de recomeçar sua vida do zero num outro lugar. No Brasil, é estimada a existência de 33 mil desabrigadas pela construção destas usinas”, acrescenta.
“Todos os trabalhos técnicos científicos com relação às grandes barragens mostram que as hidrelétricas não são fontes limpas de produção de eletricidade. Afinal, não é pelo fato de ser uma fonte renovável que ela pode ser chamada de limpa. Não existe fonte de energia limpa”, sentencia o pesquisador.
Mas reconhece a dependência da geração hidrelétrica no Velho Chico: “a dependência direta das águas do Rio São Francisco para produção de energia elétrica e atender as necessidades de energia é ainda muito grande. Mais da metade da geração elétrica depende das hidrelétricas”.
Sem cenário para expansão
O professor Ricardo Maia, coordenador do Eletrotécnico Proeja no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF Sertão-PE) – Campus Petrolina, concorda que, se considerarmos a Bacia total do São Francisco, o potencial é focado no sistema de geração hidrelétrico e pode-se dizer que ele está esgotado com a produção de aproximadamente 10 mil MW.
“Outros tipos de energia, como a eólica, consideramos que não dependem do rio. A proximidade é para o aproveitamento do sistema de transmissão existente. Em Itacuruba (PE), aproveitando o leito para resfriamento, existia um projeto para implantação de uma usina nuclear, praticamente abandonado após o acidente de Fukushima. Demais locais com algum potencial estão descartados por serem territórios de povos originários”, resume.
Crescimento vertiginoso das eólicas
Heitor Scalambrini acrescenta que, desde o início dos anos 2000, outra fonte de energia tem se destacado no panorama energético nordestino, a eólica, que provém da energia cinética dos ventos: “o crescimento das instalações eólicas, os parques e complexos eólicos, tem sido vertiginosa. A potência total instalada, em 2001, era de 0,9 GW, e atingiu, no fim de agosto de 2022, 22 GW. Estimativas apontam, em 2024, atingir 28 GW, e em 2026 a 35 GW. Atualmente a potência total instalada no Brasil, pelas diferentes fontes geradoras, é de 193 GW. O que representa 11% da contribuição das eólica na matriz elétrica brasileira”, projeta.
Alerta, no entanto, que a fonte eólica, quando utilizada em larga escala na produção de energia elétrica, necessita de grandes superfícies para a instalação dos aerogeradores e acessórios (100 x 100 m), além da construção de vias de acesso para o transporte de equipamentos, estradas variam de 10 a 12 m de largura, o que torna necessária a supressão de vegetação, ou seja, a caatinga é desmatada.
“Os complexos eólicos têm deixado profundos rastros de destruição do meio ambiente e na vida das comunidades atingidas. Exemplos não faltam. Atingem as populações que cederam suas terras e que acabam recebendo impacto direto devido à proximidade de suas casas aos aerogeradores, com a inexistência legal da distância mínima obrigatória. O barulho e efeito estroboscópico da sombra das pás chega ao interior das residências e surgem doenças como insônia, depressão”, relata.
O professor alerta que a oferta de energia elétrica tanto com a construção de barragens das hidrelétricas quanto com grandes campos de aerogeradores e de placas solares acaba provocando inúmeros impactos socioambientais que devem e podem ser diminuídos e mesmo evitados.
Para tanto, sugere discussões mais amplas que devem incluir a sociedade civil, e que levem em conta os impactos socioambientais das grandes obras de geração de energia diante da transição energética desejada, justa, popular e inclusiva: “transição energética não é mera troca de fontes energéticas na matriz, não deve gerar mais pobreza, injustiças sociais e ambientais e nem violar os direitos das comunidades e populações e da natureza, especialmente dos biomas caatinga, cerrado, mata atlântica e sistema marinho-costeiro”, defende.
Para ele esta é uma grande oportunidade de discutir junto à sociedade e os gestores públicos as inúmeras vantagens dos sistemas de geração descentralizados (distribuídos) de energia. Medidas como a repotenciação das usinas antigas já construídas com turbinas mais eficientes, modernização das linhas de transmissão, e políticas claras de comunicação para mudanças de comportamento com hábitos mais econômicos poderiam evitar uma expansão desenfreada.
Em relação às eólicas, o pesquisador sugere algumas medidas que colaborariam para minimizar ou mesmo evitariam alguns dos danos socioambientais, como a priorização da produção descentralizada de energia, a obrigatoriedade do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto de Meio Ambiente (RIMA) e o efetivo acompanhamento e fiscalização pelos órgãos ambientais, “o que não acontece hoje”, destaca.
Também recomenda o zoneamento territorial com a atualização do Atlas dos Ventos, que considere: as políticas públicas ambientais; a localização das Unidades de Conservação, das áreas de proteção ambiental, dos Brejos de Altitude (Pernambuco e Paraíba), das áreas de proteção de mananciais, das áreas de “hotspot” da conservação biológica, dos territórios indígenas, da zonas de produção agroecológica e das propriedades rurais produtivas da agricultura familiar e de assentamentos agrícolas.
Caravana Nordeste Potência
Esta é mais uma reportagem da série Caravana Nordeste Potência, que, entre 29 de agosto e 9 de setembro, percorreu 2.830 quilômetros, por diversos municípios de Alagoas, Bahia e Pernambuco, ouviu populações tradicionais, pesquisadores e outros atores que ajudam a compreender o processo de construção do que hoje é a Bacia do Baixo e Submédio São Francisco e como a região pode se desenvolver de forma menos impactante, um alerta para os candidatos aos governos da região e de todo o País.
O trabalho resulta de uma coalizão entre quatro organizações civis brasileiras: Centro Brasil no Clima (CBC), Fundo Casa Socioambiental, Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e Instituto ClimaInfo, com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). A Eco Nordeste também participou da caravana para fazer a cobertura. Acompanhem as reportagens anteriores e a próxima!
Não deixe de conferir as outras reportagens desta série especial:
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