A liberdade que chegou com a pandemia no Piauí

No período da pandemia, até agosto, dois estados do Nordeste tiveram aumento no número de feminicídios: Maranhão e Piauí. Mas foi em um deles (PI), que nossa personagem conseguiu, justamente neste período, se livrar de décadas de agressões e sofrimentos. Esta matéria, da Eco Nordeste, faz parte do Projeto ‘Um vírus e duas guerras’ – parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.

A sensação de liberdade depois de uma vida de humilhação e violência é até difícil descrever para a nossa personagem | Foto: Adriana Pimentel

Por Yara Peres
Colaboradora

Teresina – PI. A situação de confinamento estabelecida desde o início da pandemia no Brasil foi para muitos um momento difícil devido à reclusão imposta e necessária. Para uma mulher, porém, ele teve um significado muito maior: o de libertação. É o caso de Júlia*, que, durante a quarenta, sentiu na pele a intensidade nos atos violentos cometidos pelo marido por décadas, mas que, felizmente, chegaram ao fim justamente durante a pandemia.

Júlia, uma menina do interior do Piauí, seguiu o caminho de muitas jovens do sertão nordestino ainda criança, em busca de “acolhimento” e uma vida melhor na Capital. Ela foi aos 12 anos de idade trabalhar na casa de amigos da sua família, em Teresina, com a promessa de custeio dos seus estudos e um trabalho fixo. Hoje aos 44 anos, nunca teve a sonhada oportunidade de estudar, vetada pelo trabalho doméstico prestado àquela família.

Essa história se assemelha à de muitas Júlias no Nordeste. Faz parte de um contexto de trabalho infantil, falta de oportunidade, da história do trabalho doméstico na Região. Porém, a realidade, até hoje, ainda é turva. De acordo com o último retrato sociodemográfico do trabalho doméstico no Brasil, divulgado em dezembro de 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), na região nordeste se concentra o maior número de empregadas domésticas do País e revela que o fato de trabalhadoras morarem com seus empregadores propicia situações de práticas de exploração, com jornadas de trabalhos mais longas e de assédio, em sua maioria, o sexual.

Júlia infelizmente não fugiu à triste estatística e engravidou aos 16 anos do filho de seus patrões. “Eu era inocente, não sabia de nada. Quando a família ficou sabendo, fui desprezada, agredida e me devolveram para minha mãe. Disseram que tudo era uma mentira criada por mim e que seu filho jamais faria isso”, relata. Cedo Júlia já sofria com a imposição do machismo estrutural.

Em uma situação de fragilidade emocional, a menina do interior deixou a filha aos 2 anos com os pais e retornou à Capital, na esperança de um novo trabalho e, dessa vez, encontrar um pai para sua filha. “Mesmo sendo muito jovem, eu sempre quis ter uma família, para ter alguém que ajudasse na criação da minha filha”, revela. Foi nesse momento, aos 17 anos, que encontrou o seu atual ex-marido, Pablo*. “Ele era muito atencioso e começamos a namorar. Depois de dois meses de relacionamento, começou o ciúme. Ele achava que eu poderia ter um relacionamento com meu patrão. Mas disse que queria ser um pai para minha filha e a registrou”.

A atitude de Pablo logo preencheu as expectativas de Júlia. Em poucos meses de relacionamento eles se casaram e o então marido pediu para que ela deixasse o emprego para se dedicar à família. “A partir daí, ele começou a controlar minha vida. Era muito ciúme. Ele falava que eu deveria ser grata por ele ter me dado boas condições. Quando ele saía com a família dele e os amigos, eu só poderia ir quando ele autorizasse porque eu tinha uma filha de outro homem. Mesmo sendo humilhada, eu aceitava porque acreditava que era uma forma de gratidão pelo fato de ele custear a minha vida, já que eu não trabalhava mais”.

Com menos de um ano de convivência, Júlia passou a viver uma realidade matrimonial de agressões verbais, físicas, psicológicas e morais. Como na maioria dos casos, o alcoolismo do marido era o gatilho para as situações de violência. “Ele rasgava minhas roupas se achasse transparentes, batia na minha cara, me enforcava… Eu era apaixonada porque ele. Meu sonho era casar e ter uma família. De certa forma, ele me ajudou a criar minha filha, por isso suportava. Eu achava que devia agradecer que ele me deu uma casa”, relembra com a voz embargada.

Aos 19 anos, Júlia engravidou do primeiro filho do casal e a situação de violência só se agravou. “Ele dizia que eu teria que suportar mais sofrimento por ter um filho de sangue com ele. Eu nunca contei à minha família, mas eles desconfiavam porque eu me afastei deles. Dormi muitas vezes no chão com meus filhos pequenos porque ele não me deixava dormir na cama”.

Após os 32 anos, Júlia teve mais duas gestações. Dessa vez com uma característica similar entre os filhos, ambos nasceram com autismo e isso, para o marido, era mais um motivo para agredi-la. “Ele dizia que a culpa era minha porque não consegui dar um filho normal”. A primeira filha deixou de conviver com a família aos 17 anos por não suportar as situações de violência no cotidiano da mãe e sempre a orientava a procurar ajuda. Com dois filhos pequenos que precisavam de uma atenção especial e sem emprego, Júlia mantinha a família afastada para sua própria proteção: “Eu criava confusão com a minha família para não me visitarem porque quando eles iam embora eu sempre apanhava muito. Ele me ameaçava dizendo que ninguém deveria saber sobre as agressões e eu mantinha minha família afastada”.

Apesar de uma história com agressões diárias, em 2014 ela considera que viveu um dos momentos mais difíceis. “Meu filho mais velho viajou a trabalho e ficamos só eu, ele e meus filhos autistas. Foi o ano que mais sofri apanhando. Ele me batia sempre na frente das crianças. Num desses dias eu saí e fui dormir numa casa abandonada. Estava sangrando no rosto, com machucados roxos… Foi quando eu fiz o primeiro boletim de ocorrência (B.O.), exame de corpo e delito… No meio do processo, ele me pediu para retirar a queixa”. A atitude corajosa de Júlia voltou à estaca zero após ser coagida pelo defensor de seu marido na época. “Ele pediu para eu dizer que fui eu quem o agrediu por ciúme. E que ele só se defendeu, por isso eu estava machucada. Daí eu desmenti tudo que tinha acontecido durante a audiência por medo”.

Em meio a uma vida atribulada e marcada pela violência, ela também lutava em paralelo pelo direito dos filhos em receber ajuda psicossocial e econômica, por meio dos programas do Governo Federal. Com a vitória conquistada na Justiça para os filhos com autismo, a sua liberdade parecia estar mais perto. “O meu maior medo era porque eu não tinha uma independência financeira. Quando passei a receber o benefício comecei a traçar uma estratégia para me livrar dele, mesmo sob ameaças”, comenta. Em muitas situações de violência doméstica, a independência econômica é um fator determinante para que mudanças encorajem mulheres a fazerem denúncias.

Com o início da pandemia, a quarentena foi estabelecida em Teresina (PI). A partir daí, para Júlia, iniciava o mais dolorido momento de sua vida, porém, o mais libertador em toda essa história de sofrimento e dor. “Em maio, eu testei positivo para a Covid-19 e fiquei muito mal. Ele já estava o tempo todo em casa, foi mandado embora do trabalho e bebia todos os dias. Todos na minha casa pegaram a Covid, mas minhas consequências foram as piores. Ele dizia que eu trouxe a doença e passou a me torturar ainda mais”.

Debilitada pela doença e com uma sobrecarga de décadas de sofrimento diário, Júlia decidiu falar para uma de suas irmãs, que morava em Juiz de Fora (MG) e não poderia visitá-la, sobre tudo que vivera com o marido.

“Achei que não ia resistir com os sintomas do coronavírus e as agressões. Dormia com uma faca embaixo do colchão porque tinha medo de ele agredir meus filhos para me atingir. Contei tudo à minha irmã pelo Whatsapp. Ela pegou meus documentos, fez boletim de ocorrência e no dia 8 de junho o oficial de justiça chegou pela manhã e informou que eu estava sob medida protetiva. Eu ia para o abrigo, mas não fui por causa do meu filho. Minha família alugou um apartamento e me ajuda até hoje”.

Durante uma pandemia inédita e imprevisível nos dias de hoje nossa personagem teve a forças para vencer duas guerras importantes na sua história de vida como mulher, mas ambas com um fator comum: o de sobrevivência | Foto: Adriana Pimentel

Foram 26 anos de convivência com o agora ex-marido Pablo. E foi durante uma pandemia inédita e imprevisível nos dias de hoje que Júlia teve a força para vencer duas guerras importantes na sua história de vida como mulher, mas ambas com um fator comum: o de sobrevivência. Dentre tantos momentos inimagináveis de violência, ameaças de morte, agressões com água quente, cicatrizes, que vão muito além do físico e psicológico, Júlia segue em uma nova e primeira oportunidade real de uma vida nova, apesar de tudo. “Eu não sei o que é ter uma vida, eu não sei o que é ter um parceiro, não sei o que é ser alegre. Eu não tenho vaidade, nunca liguei para mim. Minha prioridade sempre foram meus filhos. Espero que ninguém nunca passe pelo que eu passei. Ficam muitas marcas”, comenta.

Não importa quem, quando, onde ou porque, mas em todos os casos de violência doméstica, o histórico do “homem de bem” segue sempre as mesmas características comportamentais. “Se alguém tem com você qualquer tipo de violência, na primeira situação, denuncie. Eles nunca mudam. Se mudar é para pior. Eu estou conseguindo me refazer. Não tem outro caminho que não seja a denúncia. Estou só há três meses. Ainda estou assustada e nervosa. Mesmo separada, eu cheguei a sentir falta dele porque foi uma vida toda juntos. Mas de forma alguma eu quero voltar para aquela situação”, reflete.

Aumento dos feminicídios

Conforme levantamento do Projeto ‘Um vírus e duas guerras’ – parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo – os estados do Piauí e Maranhão foram os únicos a ter aumento no número de feminicídios do Nordeste de março a agosto (período pandêmico), num comparativo com igual período do ano passado.

No Piauí, em 2019 foram contabilizados 11 assassinatos contra 15, entre os meses de março a agosto deste ano, um crescimento de 36%. Tudo indica, que o confinamento foi determinante para o avanço, tendo em vista a convivência diária com os agressores. Segundo a coordenadora de Estado para Políticas Públicas para Mulheres, Zenaide Lustosa, os dados da Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP-PI), referente ao número de registros de boletins de ocorrência aumentaram “no comparativo entre os meses de junho e julho as denúncias feitas pelas Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs) do ano passado. Já os números do app Salve Maria diminuíram, o que significa que as mulheres já começam a procurar presencialmente as delegacias. No mês de agosto a campanha ‘Ei Mermã’ foi reforçada pelos 14 anos da Lei Maria da Penha com várias atividades”, informou.

* Nome fictício para preservar a identidade da vítima.

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