Para moradores de grandes centros urbanos, o deslocamento cotidiano para trabalho ou estudo gera estresses com a perda de tempo, de grana e até mesmo de saúde física e mental. A construção de uma mobilidade desigual atinge diretamente o acesso às oportunidades e a possibilidade de ascensão social quando falamos de uma população com menor renda, que depende de metrô, trem e ônibus, ou de ruas com calçadas adequadas ou infraestrutura cicloviária. Problemas urbanos, do trânsito nosso de cada dia, comprometem a qualidade de vida e faz muitas pessoas se questionarem se de fato vale a pena morar nas maiores cidades do Nordeste. O Censo de 2022 mostrou que metrópoles como Fortaleza, Recife e Salvador perderam moradores nos últimos anos, com destaque para a capital baiana que diminuiu em 9,6% em comparação ao censo de 2010.
O Plano Nacional de Mobilidade de 2012 fala em “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados” e “dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”. Mas essa prioridade não se materializa nos incentivos políticos. No primeiro semestre deste ano, a indústria automobilística se fortaleceu com um desconto do Governo Federal para compra de carros. Já em agosto de 2023 um novo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) foi lançado, destinando 349 bilhões de reais para o “transporte eficiente e sustentável”. A mobilidade ativa (não motorizada) não foi incluída. O dinheiro vai para rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias do País.
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Atualmente cerca de um quarto das emissões globais de CO2 tem origem no transporte motorizado movido a combustão. Nas três maiores cidades nordestinas, o principal responsável pela emissão de CO2 é o setor de transportes, com destaque para o veículo particular. Segundo os inventários municipais mais recentes de emissões de gases de efeito estufa, o setor responde por 74% das emissões de Salvador, 59% de Fortaleza e 57% de Recife. Por ser um veículo simples, barato e não poluente, a Organização das Nações Unidas (ONU) classifica a bicicleta como “símbolo do transporte sustentável”.
Atualmente a mais populosa cidade do Nordeste conta com um total de 428 km de ciclovias, ciclofaixas, ciclorrotas ou passeios compartilhados. O Plano Diretor Cicloviário de Fortaleza, lançado em 2015, prevê 524 km até o prazo máximo de 2030. O texto fala em prioridade de atendimento às áreas adensadas com baixa renda. Segundo a plataforma Mobilidados, que reúne informações sobre mobilidade e desenvolvimento urbano, 51% da população mora a até 300 metros de alguma infraestrutura cicloviária. É a maior porcentagem entre as capitais nacionais. Além de rotas pedaláveis, a capital cearense tem investido em bicicletas compartilhadas, conexão com transporte público e redução da velocidade em algumas avenidas. Cerca de 235 mil pessoas realizam viagens diárias de bicicleta. A Prefeitura fala em dobrar esse número nos próximos dez anos.
“Fortaleza tem mais de oito anos de continuidade numa política de ciclomobilidade muito relacionada à segurança viária, ao esforço em reduzir acidentes. Além disso, outro ponto foi a da comunicação interna, para demonstrar à população a importância da pauta, e também externa, para atrair mais olhares e investimentos para a cidade”, diz Bernardo Serra, gerente de Políticas Públicas e Clima do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP). Apesar do destaque em nível nacional, o mapa cicloviário de Fortaleza ainda mostra uma concentração da infraestrutura em bairros centrais, onde mora uma população mais rica, mais motorizada e que, em geral, pedala menos.
“Tem essa mística, que muitas vezes é real, de que as pessoas que vocalizam a pauta da bicicleta são aquelas de renda média e alta. Mas essa é uma classe que não é a principal beneficiada. Via de regra, quem usa mesmo é uma população mais pobre, mais negra, e que está nas periferias”, explica Bernardo. Ele conta que é necessário entender a bicicleta para além do esporte ou do lazer no fim de semana. Afinal, para a maioria das pessoas que a utilizam, ela é um veículo de transporte cotidiano. Sua atratividade, porém, ainda é baixa devido à falta de segurança pública e viária nas grandes cidades.
Apesar de serem maioria da população, mulheres pedalam bem menos do que homens. Além da falta de infraestrutura, elas estão mais sujeitas a violências e manifestações da cultura do machismo na rua. Seu deslocamento também costuma ser mais segmentado ao longo do dia, sendo as principais responsáveis por levar a criança para a escola, fazer compras e visitar familiares com problemas de saúde. Outro ponto da desigualdade de gênero é que, ao contrário dos homens, muitas mulheres não aprendem a pedalar ou não são incentivadas a fazer isso durante a infância.
Em Recife, a arquiteta Bárbara Barbosa começou no ativismo ensinando mulheres a pedalar por meio da rede de voluntários do Bike Anjo. Hoje ela é uma das articuladoras da Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo), que desde 2013 faz pesquisas, estudos e incidência política no território. Em 2014, Pernambuco, em parceria com 14 prefeituras, lançou o Plano Diretor Cicloviário da Região Metropolitana do Recife, um ano antes de Fortaleza. Porém, mesmo saindo na frente, Recife conta hoje com 183 km de rotas cicláveis, quase 250 km a menos que a capital do Ceará. Apenas 30% da população mora a até 300 metros de alguma infraestrutura cicloviária.
Bárbara explica que, por falta de interesse político, o modal fica sempre no fim da fila, e que mesmo as pequenas conquistas só vieram ao custo de muita pressão. “O cicloativismo entra nesse lugar de mostrar para a comunidade os nossos direitos. Foi caro fazer o Plano Diretor Cicloviário, e não dá para todo ano morrer um ciclista. Mas por que a bicicleta? Qual o impacto que ela tem na cidade? Como ela auxilia a agenda do clima? A gente (ativista) senta, se reúne e debate a pauta, lei orçamentária, plano de descarbonização, e mastiga as informações de forma que todo mundo consiga entender”, afirma a arquiteta.
Em 2021, a Ameciclo fez um estudo mostrando que apenas 15% da população recifense se desloca com veículo motorizado particular, mas que esse público fica com 85% dos investimentos da Prefeitura em mobilidade. “Toda vez que eu não incentivo o deslocamento ativo, eu aumento o consumo de gasolina e diesel, eu estimulo o uso de transporte individual com emissão de carbono. A gente precisa pensar numa cidade diferente, com calçadas adequadas, com ruas onde eu possa me sentir segura. A gente precisa priorizar quem está a pé, de bicicleta ou de ônibus”, destaca Bárbara.
Mesmo não sendo totalmente livre de poluentes, o transporte coletivo movido a combustão também é ativo, já que ele não busca o usuário na porta, força seu deslocamento a pé até uma parada ou terminal integrado mais próximo. Além disso, segundo este estudo do Ipea, um único ônibus com 70 passageiros substitui 50 automóveis na via pública, a um média 1,5 pessoa por veículo particular. Mais ônibus significa uma drástica redução nos congestionamentos e nos níveis de poluição atmosférica e sonora nos centros urbanos.
Em agosto de 2023, o Governo de Pernambuco retirou 200 ônibus da frota que atende a Região Metropolitana do Recife, ao passo que aumentou os incentivos tributários para compra e uso de carro e motocicleta. “Se o debate climático não fala de redução da mobilidade passiva e motorizada, da racionalização dos recursos que extraímos e do corte de subsídios concedidos às indústrias automotivas, esse debate climático não está com os pés no chão”, afirma Lucas Vinícius, programador, estudante de Análise de Sistemas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) e também integrante do Observatório de Mobilidade de Salvador (ObMobSSA).
A capital baiana tem 310 km de malha cicloviária. Ao contrário de Fortaleza e Recife, a cidade ainda está elaborando o seu plano diretor cicloviário, instrumento que serve de base para a execução de políticas públicas. O mapa atual expõe uma concentração de ciclovias e ciclofaixas nos bairros mais próximos da Orla Atlântica, rota turística onde reside uma população com maior poder aquisitivo. Neste relatório de diagnóstico, bairros populosos do subúrbio e do miolo da cidade apresentam imensos vazios em termos de infraestrutura. Segundo o Mobilidados, Salvador tem apenas 21% da sua população morando a até 300 metros de um espaço minimamente seguro para se pedalar.
“Pedalar em Salvador é desafio. É um tipo de ‘esporte radical’, pois estamos expostos a ônibus e caminhões em alta velocidade, motoristas debochados, os ‘donos da rua’. Ser ciclista, aqui, é estar sempre no lado mais fraco da corda, exposto a todo o tipo de intempérie. Ainda assim, para alguns motoristas, nós somos uma ameaça, como se nós estivéssemos ‘roubando’ as ruas deles”, relata Lucas Vinícius. Na sua opinião, a bicicleta ainda é vista como um acessório para pequenos grupos desfrutarem de pequenas partes protegidas de Salvador, o que se reflete em uma malha reduzida, desconectada, em mau estado de uso e perigosa. Um ‘desenvolvimento urbano’ que não promove equidade, não reduz a emissão de poluentes, tampouco os sinistros e episódios de violência no trânsito.
É consenso entre pesquisadores que investir em infraestrutura cicloviária atrai mais pessoas à rua. A bicicleta, além de ser um carro a menos, pode ser utilizada tanto para deslocamentos curtos, dentro de uma comunidade, como para longos percursos metropolitanos em integração com ônibus ou metrô. No entanto, nas três maiores cidades nordestinas, pedalar continua sendo um ato de resistência, ainda que em graus de dificuldade diferentes. Em meio a uma estrutura desigual e com a conta climática batendo na nossa porta, já passou da hora de inverter as prioridades no espaço público. Só existe futuro sustentável possível com o direito à mobilidade no centro do debate.