Por Maristela Crispim
Editora-chefe
Neste Dia Nacional da Consciência Negra, publicamos entrevista exclusiva com Nairobi Aguiar, historiadora, especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) / Universidade Federal da Bahia (UFBA); mestranda em Estudos Étnicos e Africanos / Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-AFRO) / UFBA; e coordenadora de promoção da igualdade racial Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia (Sepromi).
Eco Nordeste – Quanto você acha que falta para que as pessoas conheçam a verdadeira história do Brasil?
Nairobi Aguiar – Sabemos que, na mentalidade social, a imagem das pessoas negras foi construída a partir de um imaginário de inferioridade. Eu aprendi na escola que o negro não tinha alma e era tratado como coisa, como mercadoria. Mas torno a afirmar o papel histórico do movimento negro, “movimento educador”, que ensinou a sociedade a refletir sobre a questão racial, e também resignificou a própria terminologia da palavra negro. O bloco afro Ilê Aiyê, na década de 1970, já nos ensinava que ser negro e negra é lindo/a, e que temos uma linhagem ancestral, de reis e rainhas. O Estado Brasileiro reconheceu a dívida histórica que tem com o povo negro, e; em 2003, na gestão do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi sancionada a Lei Nº 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e torna obrigatório o ensino da História e Cultura Africana e Afro Brasileira que busca dar legitimidade à nossa verdadeira história, de luta, de resistência, enfrentamento ao racismo, e o aquilombamento. Hoje, podemos dizer que temos uma juventude negra e orgulhosa, que mesmo ainda sentindo na pele o racismo, se levanta e enfrenta com altivez. Sabemos que ainda temos muito a avançar, pois ainda nos deparamos com o extermínio da juventude negra. O racismo é tão complexo que ao mesmo tempo que temos uma parte da juventude negra empoderada, temos ainda juventude negra sendo morta por falta de oportunidade, ou seja pelas barreiras impostas pelo racismo. Faço um destaque ainda para o processo de descontinuidade das políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial que estamos vivendo com a gestão do atual desgoverno federal, que se apresenta como um governo racista, sexista, homofóbico e xenofóbico, indo na contramão da história.
E.N. – Em que é necessário investir para que as pessoas se enxerguem como iguais?
N.A. – Creio que as pessoas não precisam se enxergar enquanto iguais, até porque não somos mesmo, mas sim respeitar as nossas diferenças e diversidade étnica, cultural, religiosa. O Quilombo dos Palmares foi um grande exemplo disso, exemplo de uma sociedade socialista, onde convivam pessoas negras, indígenas e brancas, se fortalecendo e se aquilombando, em busca de uma sociedade igualitária.
E.N. – Como fazer as pessoas que não se veem como racistas perceberem que tomam atitudes racistas no cotidiano?
N.A. – O interessante dessa pergunta é que quando perguntamos às pessoas se existe racismo, a maioria responde que sim, mas quando perguntamos se praticou, ninguém nunca praticou. Porque muitas vezes o racismo está introjetado, naturalizado, a partir de algumas práticas e “brincadeiras”, que não são brincadeira, mas sim racismo recreativo, por exemplo, dizer “você é tão bonita, você é tão inteligente, nem parece que é negra”. Ou em falas como “eu não sou racista, tenho (até) amigos negros”. Ou até mesmo segurar a bolsa quando se sente vulnerável à noite numa rua deserta ao ver um homem negro. As pessoas precisam refletir sobre isso. Principalmente que o racismo não é um problema somente das pessoas negras, mas um problema de todas as pessoas, um problema histórico, social. Como nos ensina Ângela Davis, “não basta não ser racista, as pessoas precisam ser antirracistas”.
E.N. – Em que ponto você acredita que a nossa região está em relação ao racismo atualmente?
N.A. – O racismo é um fenômeno mundial, que independe de região, pois é um projeto sofisticado, que cada dia vai se atualizando e se adequando ao cotidiano. Mas o que podemos afirmar é que, devido a uma grande pressão histórica do movimento social, mas especificamente o movimento negro – como bem nos apresenta a pesquisadora, Nilma Lino Gomes, em seu livro, o movimento negro educador -, a sociedade está mais atenta às questões raciais, e o Estado tem adotado políticas públicas direcionadas no sentido de combater ao racismo e promover a igualdade racial.
E.N. – Como você enxerga o racismo estrutural no Nordeste?
N.A. – Como já falei, o racismo independe de região, mas podemos dizer que, na região, ele se intersecciona também com a discriminação direcionada ao povo do Nordeste. Como também nos pontua a pesquisadora Carla Akotirene, algumas encruzilhadas identitárias se conectam e ainda intensificam mais a opressão, no caso do povo negro nordestino, além de sofrer o racismo, ainda sofre com a xenofobia, pois é considerado um povo preguiçoso, e até mesmo uma sub-raça, de uma sub-região do País. Mas precisamos atentar que a Lei Nº 9.459/97 afirma que serão punidos os crimes de discriminação de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, inclusive considerado como crime inafiançável.
E.N. – Ser uma mulher, negra, nordestina é mais difícil?
N.A. – Sem dúvida, pois estamos falando de três categorias sociais de opressão: Ser mulher, ser negra e ser nordestina. Neste caso sofremos a tripla opressão. Podemos perceber no mercado de trabalho, desde a remuneração, até mesmo os sub cargos, nos estereótipos racistas reforçados em torno da mulher negra que “aguenta mais dor”, a hipersexualização dos nossos corpos, e a própria solidão da mulher negra. E quando isso se encontra com a discriminação regional, sem dúvida a violência ganha uma proporção ainda mais dolorosa.
E.N. – Como pesquisadora, o que você pode dizer sobre os negros no meio acadêmico?
N.A. – O pesquisador Boa Ventura de Sousa Santos nos fala sobre epstemicídio. Ele começa pelo acesso a pessoas negras às universidades. Podemos afirmar que, por conta das políticas de ações afirmativas, temos ocupados as universidades, mas precisamos destacar que ainda muito pouco, nos cursos de pós-graduação e na condição de docentes. E também quando a produção de pesquisa acadêmica elaborada por nós é minimizada, ou até mesmo desconsiderada, reforçada ainda pela eurocentrismo, uma base da cultura ocidental moderna que considera que tudo que vem da Europa é superior aos demais continentes, subjuga as demais culturas. Reforço ainda o processo solitário que as pessoas negras encontram ao entrar na academia, desde a falta de referência nos professores/as, até as dificuldades de permanência e pós permanência. Proponho a adoção do pensamento decolonial, ou seja, uma autonomia e consciência epistêmica, contraponto ao colonialismo na perspectiva da reconstrução das contribuições do pensamento africano e afro diaspórico, com afirmação da máxima “nada de nós ou sobre nós sem nós!”