Povo Anacé, que chegou a acampar na sede da Semace no início de agosto, agora se soma a outras entidades em busca da suspensão da autorização do projeto

Lideranças do povo Anacé, entidades da sociedade civil e o Escritório Frei Tito de Alencar de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular (EFTA) protocolaram, nesta terça-feira (26), uma representação junto ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) contra a instalação de um data center em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). O empreendimento prevê a construção de uma grande estrutura destinada ao processamento e armazenamento de dados.
A iniciativa marca a primeira mobilização de povos indígenas e organizações sociais no Brasil contra um equipamento desse porte. O documento encaminhado aos MPs denuncia a falta de transparência no processo de licenciamento e solicita a suspensão imediata da autorização do projeto, que foi analisado apenas com base em um Relatório Ambiental Simplificado (RAS), sem a realização de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).
Um dos principais pontos questionados é a ausência de consulta prévia, livre e informada ao povo Anacé, cujo território tradicional aguarda demarcação há mais de 20 anos. O cacique Roberto Anacé reforça a posição da comunidade: “O data center nós não aceitamos, não houve consulta prévia, livre e informada respeitando nossos protocolos”.
‘Não somos contra o progresso’

Para o cacique Roberto Anacé, a falta de consulta agrava uma situação que vem de longe: “o governo nos invisibiliza e chega a usar até outros do nosso povo para legitimar suas ações. Os Anacé já provaram que não são contra o progresso. Criamos um protocolo próprio para orientar esse processo. O data center é mais uma violação desse protocolo, que atinge nossa tradição e ignora nosso direito de consulta”.
“Um empreendimento com esse nível de complexidade e, sobretudo, com tamanhos impactos do ponto de vista energético, ambiental e social jamais poderia ser licenciado por meio de um Relatório Ambiental Simplificado”, reforça o deputado estadual do Psol-CE, Renato Roseno.
“A implantação de um data center, por todos esses fatores envolvidos, precisa ser feita com muita transparência e muito debate com a sociedade, o que não vem acontecendo. Isso é importante porque outras cidades do mundo rejeitaram esse tipo de empreendimento justamente por conta dos prejuízos causados à segurança hídrica e ao meio ambiente”, finaliza.

No início de agosto (4), os Anacé ocuparam a sede da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) em protesto contra o descumprimento do seu Protocolo de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo os indígenas, o projeto foi aprovado sem qualquer diálogo real com o povo diretamente afetado.
A representação também contesta a classificação do empreendimento como atividade de baixo impacto. A estimativa é que o data center ocupe uma área equivalente a 12 campos de futebol. Na primeira fase, o consumo diário de energia deve alcançar 210 MW, podendo chegar a 300 MW na expansão — volume comparável ao consumo de 2,2 milhões de pessoas por dia.
Quanto ao uso da água, a empresa afirma que haverá recirculação em circuito fechado, com demanda de 30 m³ por dia (cerca de 10,9 milhões de litros ao ano). Contudo, especialistas alertam que esse modelo tem limitações: a água se deteriora, acumula contaminantes, exige tratamentos constantes e precisa de reposição frequente (20% a 30%) devido à evaporação.
Em um estado historicamente afetado por secas, como o Ceará, priorizar o abastecimento de data centers em detrimento do consumo humano representa um risco significativo. Cidades como Amsterdã e Haarlemmermeer (Holanda) e Mesa (EUA) já suspenderam a instalação de empreendimentos semelhantes diante dos altos impactos socioambientais.
Outro ponto crítico destacado pelo movimento é a poluição sonora. O projeto prevê níveis de ruído de até 96 dBA, muito acima do limite considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (70 dBA). A exposição contínua a esse volume — 24 horas por dia, sete dias por semana — pode provocar sérios danos à saúde das comunidades vizinhas, como distúrbios do sono, dores de cabeça, estresse crônico, ansiedade e até problemas cardiovasculares.
Questões levantadas
Água
O projeto declara consumo de apenas 30 mil litros por dia, número incompatível com referências internacionais (entre 11 e 19 milhões de litros/dia para data centers de porte médio). O Relatório Ambiental Simplificado (RAS) não detalha o sistema de recirculação nem as compensações por evaporação. Há risco direto ao aquífero Dunas, classificado como altamente vulnerável e já pressionado por indústrias pesadas do Complexo do Pecém. Comunidades vizinhas, que dependem de abastecimento precário por carros-pipa, podem ser ainda mais prejudicadas.
Energia
A previsão inicial é de 210 MW, com possibilidade de chegar a 300 MW, equivalente ao consumo de toda a cidade de Fortaleza e maior que o de 99% dos municípios brasileiros. Apesar desse porte, o empreendimento foi enquadrado como atividade de “baixo impacto”, dispensando a exigência de EIA-RIMA. A operação demandará novas linhas de transmissão e parques de geração exclusivos, mesmo em uma região que não apresenta déficit energético.
Ruído
Data centers operam continuamente, com níveis que podem alcançar 96 dBA, acima do limite considerado seguro (70 dBA). A legislação brasileira (NBR 10151/2019 e Resolução CONAMA 01/1990) estabelece limites de 55 dBA diurnos e 50 dBA noturnos em áreas residenciais. Sem estudos acústicos no licenciamento, há risco de degradação da qualidade de vida e da saúde das comunidades vizinhas.
Empregos
A promessa de 15 mil vagas corresponde apenas à fase de obras (supressão vegetal, terraplanagem e construção), com postos temporários e de baixa remuneração. Na fase de operação, o próprio RAS prevê apenas cerca de 400 funcionários, em grande parte com alta qualificação técnica e contratados fora da região. A experiência internacional mostra que os data centers geram poucos empregos permanentes.
Consulta prévia
O licenciamento desrespeitou o direito do Povo Anacé à consulta livre, prévia e informada, assegurado pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT. O Protocolo de Consulta elaborado em 2022 e publicado em 2024 foi ignorado. Em 4 de agosto de 2025, lideranças Anacé ocuparam a sede da Semace em protesto, denunciando a ausência de diálogo e de respeito aos seus direitos.
Soberania digital
O empreendimento utiliza recursos estratégicos nacionais — água e energia — para atender principalmente a interesses de empresas estrangeiras. Sem garantias de contrapartidas locais, o projeto fragiliza a soberania digital e territorial do Brasil.
Pedidos apresentados
* Suspensão imediata do processo de licenciamento ambiental do data center diante da ausência do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) e do indevido enquadramento como atividade de baixo impacto.
* Anulação da licença já concedida, por vício insanável de legalidade, considerando a dispensa irregular de EIA-RIMA e a ausência de consulta prévia ao Povo Anacé.
* Garantia da realização de consulta livre, prévia e informada ao Povo Anacé, em conformidade com a Constituição Federal e a Convenção nº 169 da OIT.
* Envio de ofício ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), para que se manifeste sobre a ausência de participação no debate sobre a instalação de data centers em áreas vulneráveis.
Impactos ocultos
Recentemente o veículo jornalístico independente The Intercept trouxe à tona os riscos envolvidos na instalação de grandes data centers para o meio ambiente e as populações próximas. A jornalista Laís Martins participou da investigação jornalística a respeito dos impactos dos data centers sobre as populações e alertou para a falta de transparência em torno da chegada de grandes projetos de data centers no Brasil. Ela destaca que a população não tem acesso às informações cruciais sobre os impactos desses empreendimentos.
“A nossa denúncia inicialmente vem num contexto em que entendemos que esses grandes projetos de data center estavam chegando em várias localidades do Brasil, mas que a população não estava sendo suficientemente informada”, afirma.
Diferente de outras indústrias, os data centers possuem características específicas que intensificam seus impactos ambientais. “O data center tem algumas especificidades que o tornam diferente de outras indústrias, principalmente duas: o consumo de água e energia”, explica.
Laís lembra que essas informações costumam ser ocultadas pelas empresas: “esses dados são muito cruciais e as empresas tentam a todo custo manter as informações longe dos olhos da população para que ela não entenda a dimensão e o impacto do projeto”.
Em uma das reportagens do The Intercept, a equipe conseguiu acesso ao Relatório Ambiental Simplificado e traduziu em números comparativos os impactos do projeto. “Mostramos, por exemplo, que se esse empreendimento fosse uma cidade, ele seria a sétima no Brasil em consumo de energia. Isso ajuda a visualizar o potencial e o impacto desse projeto”, destaca.
Para a jornalista, a prática de decisões tomadas a portas fechadas não é exclusiva do Ceará. “Esse modus operandi de manter as informações ocultas e só revelar os projetos quando já estão em vias de instalação é a norma de como esse setor opera no mundo inteiro”, denuncia.
E é justamente nesse ponto que entra o papel do jornalismo investigativo. “Um dos objetivos de operar dessa maneira é afastar a mobilização popular. Ao trazer essas informações à tona, oferecemos insumos para que a população se organize, demande respostas ou até mesmo diga que não quer esse projeto”, afirma.
Segundo Laís, a questão central é garantir um debate público e qualificado: “estamos falando sobre informação como meio para que a população decida por si só se ela quer ou não receber esses empreendimentos. O debate precisa ser transparente e não imposto de cima para baixo”, conclui.
Discurso ‘verde’
O coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin), Felipe Rocha, alerta para a necessidade de olhar de forma crítica para o discurso de sustentabilidade dos grandes data centers. A organização da sociedade civil, dedicada à proteção dos direitos humanos frente às tecnologias digitais, publicou recentemente um relatório no qual analisa os compromissos ambientais das principais empresas do setor no Brasil e no mundo.
“A pesquisa surgiu num contexto em que se difundiu um discurso de que os empreendimentos de data centers para tratamento de dados, principalmente para inteligência artificial, seriam verdes ou sustentáveis, com baixos impactos ambientais”, explica Rocha. “Eles ainda se apoiam no fato de o Brasil ter uma matriz energética predominantemente renovável em comparação a outros lugares onde se depende muito de combustíveis fósseis”, acrescenta.
Segundo ele, a proposta do estudo foi aprofundar esse debate: “decidimos dar um zoom nesse discurso para entender o que tem por trás dele, quais são as implicações e quais dados podem deixar mais claro para o debate público o que realmente são as consequências desses empreendimentos”.
O levantamento do Lapin analisou os relatórios de sustentabilidade de seis empresas, sendo três gigantes internacionais e três companhias com atuação mais forte no Brasil e na América Latina. “Em um primeiro momento, o que identificamos é que as empresas internacionais, no debate público e de forma mais explícita em seus relatórios, elaboraram compromissos ambientais ambiciosos”, afirma.
Entre as promessas, Felipe Rocha cita algumas das mais relevantes: “neutralidade de carbono em poucos anos, diminuição ou até mesmo retribuição de água para o meio ambiente no lugar de consumir mais, e a utilização de energia renovável em vez de combustíveis fósseis”.
Outra questão apontada foi a preocupação declarada com a cadeia de suprimentos: “há compromissos de garantir que a extração de minérios utilizados nesses empreendimentos seja confiável e não dependa de regiões de conflito. O caso do Congo é o exemplo mais citado”, acrescenta.
Em suma, o relatório mostra que a distância entre discurso e prática ainda precisa ser melhor investigada, especialmente quando se trata dos impactos locais desses megaprojetos.