Design resgata ancestralidade e gera renda no sertão piauiense

A Agência Eco Nordeste está veiculando uma série especial com histórias inspiradoras de Convivência com o Semiárido, colhidas a partir do 6º Seminário Internacional de Convivência com o Semiárido, do Centro Xingó / IABS, em Piranhas (AL). A segunda história é sobre a transformação que o Design Essencial levou à comunidade de Várzea Queimada, no sertão do Piauí, pela equipe do A Gente Transforma, criado pelo arquiteto Marcelo Rosenbaum.

Por Maristela Crispim
Editora

Em Várzea Queimada, a equipe do A Gente Transforma aprendeu a reconectar as pessoas com a sabedoria da ancestralidade da comunidade remanescente de uma fazenda de carnaúba do interior do Piauí | Foto: Tatiana Cardeal

Piranhas – AL / Várzea Queimada – PI. O Centro Xingó de Convivência com o Semiárido encerrou novembro e iniciou dezembro entre o 6º Seminário e o 5º Curso Internacional de Convivência com o Semiárido. Entre as vivências, discussões, interações, aprendizados e trocas, falas inspiradoras, muito inspiradoras. Uma delas foi do autodenominado nômade, comunicador, ativista, designer, empresário, curioso Marcelo Rosenbaum.

Ele contou sobre como começou a trabalhar com comunidades  e destacou a história de vida de João da Cruz, fundador de Várzea Queimada, comunidade com 900 pessoas, no sertão do Piauí. Ele, que nunca tinha visto TV ou gelo até ir trabalhar em São Paulo, mostrou a Rosenbaum a “fé de negro com índio que reza o Pai Nosso, a fé do homem do sertão”.

“Num dos lugares de menor IDH do Brasil, só encontrei desenvolvimento humano. Não achei foi oportunidade. A comunidade foi formada a partir de uma fazenda de carnaúba e a cera gera dinheiro para muita gente. Daí eu me questionei: como eles podem ser pobres? Eu não aceito isso. São pobres por causa de um sistema. É aí que entra o design como ferramenta de transformação. Lá, eles faziam artesanato com palha de carnaúba, mas não sabiam. Hoje, essa atividade garante a renda da comunidade, com comercialização para países como a França e a Itália; assim como o turismo de base comunitária”, revela Rosenbaum.

O designer conta que um dos grandes desafios do projeto foi o fato de tratar-se de um lugar ermo: “Na primeira viagem, passamos um mês com uma equipe multidisciplinar de 40 pessoas”. A partir dessa vivência, foi desenvolvida uma coleção de produtos com base na palha de carnaúba e na borracha de pneu, com muita autonomia, qualidade e cumprimento de prazos. “O que produzem não é brinde de firma para o fim de ano. Eles encontraram um lugar na arqueologia afetiva. Trata-se de uma universidade de saberes ancestrais”, completa.

Também durante o Seminário, a arquiteta e co-fundadora do Instituto A Gente Transforma, Adriana Benguela, destacou a importância da Cultura do Design; do resgate da Ancestralidade, da Sociobiodiversidade; do fortalecimento da cultura de comprar o que tem história; da comunidade tratada como marca; de um diálogo muito grande com o mercado; de um produto perene, uma coleção permanente.

Mostrou, ainda, que Várzea Queimada foi tema da São Paulo Fashion Week (SPFW) 2013; virou livro; ganhou do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o título de “salvaguarda do saber fazer“; e que ganhou destaque no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo; além de garantir sua coleção de luminárias para a La Lamp, registrada na Casa Vogue.

“Esse foi um movimento da saída da Arquitetura do Varejo para contar a história da Sociobiodiversidade brasileira. Eles conquistaram desenvolvimento a partir do mundo da carnaúba. Nós só ajudamos a fazerem a travessia de fronteira para ensinar o que não sabiam que sabiam. A filosofia é não levar, mas provocar, porque senão não é genuíno. Isso é desenvolvendo do conhecimento”, declarou a designer.

Os arquitetos e designers Marcelo Rosenbaum e Adriana Benguela falaram, no 6º Seminário Internacional de Convivência com o Semiárido, sobre design como ferramenta de transformação a partir da própria cultura local | Foto: Laís Bahamondes

A Gente Transforma

“A Gente Transforma é um projeto que usa o design para expor a alma brasileira, um mergulho na cultura dos povos que formam o nosso País. É um resgate de histórias do passado para recriar o presente e construir o futuro sob novas bases, livre e sustentável. O projeto é uma criação coletiva, que envolve muitas mentes e almas, cheias de fé, esperança e criatividade”, conta o site do projeto.

O capítulo de Várzea Queimada começou a ser escrito em 2012. O projeto consistia em levar profissionais de diferentes áreas para uma imersão com os moradores de Várzea Queimada. A ideia era descobrir, por meio do artesanato, os valores essenciais daquela comunidade para que ela se apropriasse da sua memória cultural e adquirisse liberdade para mudar a sua própria realidade.

O objetivo era transformar esse artesanato em produto, usando o design como ferramenta estética para geração de valor. A comunidade entregaria objetos de valor para o mundo, e o mundo reconheceria o valor daquela peça como arte, como acontece nos grandes centros. A equipe seria a ponte e o apoio para criar um negócio criativo a partir de ferramentas que os dessem autonomia.

Em Várzea Queimada, a equipe desenvolveu seu verdadeiro jeito de trabalhar, e começou a amadurecer a ideia do design essencial como metodologia de trabalho. Aprenderam com a comunidade a trabalhar em conjunto, a entender melhor a história de seus antepassados, a compartilhar saberes e entenderam o valor da sua cultura ancestral como algo sagrado.

Processo criativo

“O artesanato de subsistência cria objetos com função definida dentro da casa do brasileiro nativo (índio, negro, caboclo). Esse processo pode conectar o indivíduo com a pobreza, já que é na escassez por necessidade que essa arte se faz mais presente. Quando existe a oportunidade, as pessoas se desprendem desse momento de conexão com a sua própria origem, compram objetos de plástico e se esquecem dessa causa raiz”, narra o site do projeto.

Em Várzea Queimada, a equipe do A Gente Transforma aprendeu a reconectar as pessoas com a sabedoria dessa Ancestralidade, que não se percebe valor. O que fizeram foi ressignificar um processo de reconquista dessa arte de construir objetos com significado e, acima de tudo, função identidade. E com isso entregar novamente, para a gente desse povoado, dignidade e liberdade.

Durante a imersão na comunidade, eles identificaram que o bogoió (cesto de palha trançada usado na rotina doméstica das famílias de Várzea Queimada) e o entalhe de borracha de pneu de caminhão – atividade que os homens desenvolveram para complementar renda das famílias-, seriam os caminhos para essa transformação de realidade. Assim, o trançar da palha de carnaúba ganharia novo significado outra dimensão, da mesma forma que mãos habilidosas deixariam de produzir sandálias de dedo para esculpir verdadeiras jóias de borracha negra.

Isso é o Marcelo chama de Design Essencial: “a capacidade de olhar para uma cultura, descobrir, despertar e potencializar seus valores essenciais, traduzindo-­os em conceitos que, por meio da ferramenta de beleza e estética universal chamada Design, tornam-se agentes de transformação do mundo”. Ao trabalhar a autoestima da comunidade, modificaram suas aspirações, expectativas sobre o futuro e seus desejos.

Durante a imersão na comunidade, a equipe identificou que o bogoió (cesto de palha trançada) e o entalhe de borracha de pneu de caminhão (foto) seriam os caminhos para a transformação de realidade | Foto: Tatiana Cardeal

Impacto e prosperidade

Em 2012, o A Gente Transforma promoveu a constituição da Associação das Mulheres Artesãs de Várzea Queimada (AMVQ), com o apoio técnico do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Desde a data da constituição da associação até a metade de 2016, o projeto já gerou cerca de R$ 100 mil em negócios para a AMVQ.

Turismo Comunitário

Quando o projeto ganhou corpo, Várzea passou a despertar interesse em pessoas que queriam contribuir ou conhecer o projeto relacionado ao artesanato. O A Gente Transforma, em parceria com o Projeto Garupa e a Fundação Casa Grande, desenhou um modelo de turismo comunitário com o objetivo de fomentar desenvolvimento com autonomia.

A comunidade passou a receber visitantes curiosos pelo projeto ou com ideias complementares, e a vontade de acolher estes interessados em suas próprias casas partiu dos habitantes da cidade. O Projeto Garupa ajuda comunidades a formatar projetos de capacitação para que eles se desenvolvam com autonomia. Em Várzea, ajudou a desenhar um programa de turismo comunitário bonito e desafiador: o povoado aprendeu a receber visitantes em suas casas e a gerir o valor recebido pela hospedagem pensando na integração da comunidade e no benefício compartilhado. Um exercício de planejamento e gestão também facilitado pela Fundação Casa Grande, que já trabalha com turismo com propósito há anos e que compartilhou o seu conhecimento.

Clube de Colecionadores do MAM

Os clubes de colecionadores de grandes museus existem para dar espaço a novos artistas e incentivar a produção cultural de um país. Em 2015 o MAM convido a equipe de Rosenbaum para curar as cinco obras comissionadas do Clube de Colecionadores do museu daquele ano. Pela primeira vez na história as obras teriam um tema: Várzea Queimada. A sugestão foi uma coleção alinhada ao patrimônio cultural daquele pedaço de Brasil.

O processo envolveu artistas e designers trabalhando junto com artesãos da região por meio do design essencial. Alfio Lisi, Mauricio Arruda, Neute Chvaicer, Paulo Alves e Rodrigo Ambrósio fizeram uma imersão criativa junto com a equipe do A Gente Transforma para aprender com os saberes coletivos de Várzea e sentir a densidade do projeto. Traduziram as suas experiências em peças inigualáveis feitas de palha de carnaúba, borracha de pneu e madeira.

Centro Xingó

O Centro Xingó de Convivência com o Semiárido tem como objetivo a geração e difusão do conhecimento, a partir do contexto histórico e cultural local. A expectativa é valorizar a troca de saberes, as práticas e experiências inovadoras para a promoção da convivência com o semiárido de forma sustentável, contribuindo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Objetivos temáticos

INCLUSÃO PRODUTIVA – Promover a produção local e sua inclusão em cadeias de valor para geração de trabalho e renda, além de segurança alimentar para as comunidades locais.
TECNOLOGIAS SOCIAIS – Conhecer, aperfeiçoar e disseminar práticas e tecnologias sociais que aproveitem as potencialidades locais e promovam o bem-estar da população.
MEIO AMBIENTE – Gerar e disseminar técnicas e conhecimentos que promovam a adaptação às mudanças climáticas e a conservação e uso sustentável da caatinga e demais ecossistemas da região.
HISTÓRIA, CULTURA E PROTAGONISMO SOCIAL – Resgatar e valorizar a identidade sociocultural e história local, propiciando a troca de saberes e empoderamento do povo sertanejo, principalmente de mulheres e jovens.

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