Dentro do debate climático global, o Brasil é um País conhecido por suas florestas e pela grandeza da “Amazônia Verde”. No entanto, fora do ambiente terrestre, existe um bioma “equivalente” conhecido como “Amazônia Azul”, que trata das águas pertencentes a esse país-continente. O conceito da “Amazônia Azul” foi criado em 2004 pela Marinha brasileira com o objetivo de conscientizar sobre os rios e o mar nacional, igualmente ameaçados pela ação humana e crise climática. Dos mais de 8 mil quilômetros de costa, o Brasil tem cerca de 3 mil com recifes de corais. Os únicos no Atlântico Sul. Os recifes de corais estão quase que inteiramente na Região Nordeste do País, onde o litoral possui águas claras e quentes, tradição pesqueira e forte apelo turístico.
À medida em que pesquisava a respeito, descobri a existência de uma área de conservação costeira / marinha próximo de Recife, onde resido. A Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais, entre os estados de Pernambuco e Alagoas, é a maior do Brasil nesse segmento. Foi criada via decreto federal em 1997. É composta por 12 municípios, mais de 400 mil hectares de terra, 120 km de praias, além de uma riquíssima fonte de história, cultura e biodiversidade.
Porém, como o nome bem sugere, os protagonistas deste território são os corais, um dos animais marinhos mais sensíveis a alterações na acidez e temperatura da água do mar. Segundo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), no cenário de aquecimento global de 1.5 C° podemos perder entre 70-90% dos recifes de coral do mundo. O ecossistema pode desaparecer por inteiro caso a temperatura suba 2 C°. Para se ter uma ideia do que estamos vivenciando, de acordo com este estudo, a cobertura de corais do planeta e sua capacidade de fornecer serviços ecossistêmicos à sociedade caiu pela metade desde a década de 1950.
Ainda no processo de apuração, encontrei diversas notícias e previsões alarmantes a respeito do futuro desses animais e as comunidades que deles dependem. Mas algumas iniciativas positivas que têm lutado contra esse cenário me chamaram atenção. E era nisso que queria focar ao visitar a APA.
Com uma bolsa preta nas costas, coloquei minha bicicleta no bagageiro de um ônibus intermunicipal e peguei uma carona até chegar ao local da reportagem. Chegando lá, comecei a pedalar. Ao todo, pedalei 301 km sobre ou nas imediações da linha de costa e, quando o acesso à praia era “permitido”, a maré estava baixa e a chuva não atrapalhava, era fácil observar a barreira rochosa coberta por corais emoldurando a paisagem.
Projeto pioneiro
Porém, antes de chegar à unidade de conservação, eu tinha um compromisso em uma cidade próxima chamada Ipojuca. Neste lugar, um projeto de restauração de corais vem sendo realizado desde 2017. Aqui mais de 3.000 corais fadados à morte já foram salvos na Praia de Porto de Galinhas, no litoral sul de Pernambuco.
O Projeto Coralizar, pioneiro no Brasil, é realizado pela Biofábrica de Corais em parceria com organizações da sociedade civil, empresas, setor acadêmico e comunidade local. Para entender melhor como funciona esse processo, conversei com as biólogas Nádia Zamboni e María Gabriela Moreno. Ambas integram a biofábrica, e atuam, respectivamente, como analista de qualidade ambiental e coordenadora de restauração.
Como cheguei em um dia chuvoso, não foi possível conhecer, mediante mergulho, os berçários onde os fragmentos de corais desprendidos de suas colônias ficam “internados” até estarem saudáveis novamente. Cada berço de coral é feito com impressora 3D e custa, em média, 0,28 centavos de dólar, o que financeiramente viabiliza sua replicabilidade em outros pontos da costa brasileira.
Ao contrário do que a aparência sugere, os corais não são pedras, mas sim organismos vivos tridimensionais. Na APA, eles crescem sobre rochas geralmente feitas de arenito. Passam a viver em comunidades ou colônias que formam os recifes e assim servem de abrigo e alimento para diversos animais marinhos. Estima-se que 25% das espécies de todo oceano dependam dos corais em alguma fase da vida.
Quando estão fracos, “embranquecidos”, as colônias de algumas espécies de coral se desprendem dos recifes e tombam no oceano, e isso se deve ao estresse térmico, mas também por ações humanas, como o pisoteamento e o choque de embarcações, algo comum de se observar em territórios turísticos como o litoral do Nordeste do Brasil.
Segundo as pesquisadoras, cerca de 80% dos corais doentes recolhidos no fundo do mar conseguem se reabilitar. São, em seguida, transplantados no ambiente natural. O primeiro contato é feito com delicadeza e rapidez para que o animal passe pouco tempo fora da água.
Atualmente, a equipe trabalha com a restauração de duas espécies: o coral couve-flor (Mussismilia harttii) e o coral de fogo (Millepora alcicornis). O coral couve-flor é endêmico do Brasil e se encontra na lista de espécies ameaçadas de extinção. Já o coral de fogo foi escolhido por crescer mais rápido, o que facilita os resultados do cultivo. Neste vídeo produzido pelo WWF-Brasil é possível visualizar as técnicas usadas na restauração. É uma luta contra o tempo, mas que tem dado resultados.
“O aumento da temperatura atmosférica, que leva ao aumento da temperatura da água, faz com que os corais embranqueçam. É por isso que nós estamos trazendo atividades para tentar reverter e, de alguma forma, fortalecer esse ecossistema, mitigando o impacto que a mudança climática está gerando”, explica Nádia, natural da Argentina. Antes mesmo da entrevista, ela se antecipou: “como você pode ver, nós somos estrangeiras”. A sua colega de equipe, María, é da Venezuela, onde já trabalhava com recifes de coral. Está na biofábrica desde quando ainda era um projeto de pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ela conta que, ao chegar a Porto de Galinhas e iniciar o monitoramento, em 2019, encontrou duas colônias de coral couve-flor “enormes, lindas e saudáveis”, mas que hoje se encontram quase extintas. A morte desses animais impacta o futuro de municípios como Ipojuca que tem uma economia baseada no turismo costeiro.
A Praia de Porto de Galinhas é uma das mais badaladas do Brasil graças ao ecossistema recifal. Ao pedalar próximo à linha de costa, encontrei uma infraestrutura turística consolidada e incontáveis anúncios de passeios tendo as “piscinas naturais” como atrativo. “Começamos, no ano passado, o diálogo com o setor turístico local, com operadoras de mergulho, associação de jangadeiros e pescadores, para irmos integrando eles aos poucos. O foco da biofábrica é restaurar e engajar. Queremos essas pessoas fazendo a experiência junto com a gente. E a ideia do engajamento, além de incluir os profissionais locais, é começar a trabalhar a educação ambiental também com crianças e jovens”, explica María. Ela admite que existem resistências ao “turismo regenerativo”, pois a economia local vem sendo pautada no turismo não sustentável e predatório há muito tempo; mas, apesar das dificuldades, as articulações com diferentes setores da sociedade têm avançado.
Hoje a Biofábrica de Corais também oferece experiências turísticas que incluem a possibilidade de participar do processo de restauração junto dos pesquisadores e até mesmo adotar um coral estando em qualquer parte do planeta. María assegura que as ações de sensibilização têm mudado a percepção de visitantes, que em geral pouco ou nada sabiam sobre a importância dos recifes.
No campo de atuação científico, a equipe iniciou, em 2022, um projeto de pesquisa na APA Costa dos Corais, localizada ao sul da cidade de Ipojuca. “Montamos um laboratório em Tamandaré. E a ideia é fazer o cultivo de corais fora do ambiente natural e também alguns experimentos. Queremos expandir essa iniciativa já para outros municípios, entre eles Tamandaré (PE) e Maragogi (AL), que integram a área de conservação. E mais para frente, quem sabe, ampliar ainda mais na costa brasileira”, afirma a analista Nádia. Ela acrescenta que as futuras restaurações na Costa dos Corais tendem a ser facilitadas graças às parcerias já construídas e também por ser um lugar protegido e com menos atividades humanas.
Quem ganha com o turismo?
Assim que cheguei à APA, encontrei algumas placas que sinalizavam a diferenciação legal do território, que é de uso sustentável. Como fazia sol no dia, havia visitantes aos montes na Praia de Tamandaré. Gente vendendo “raspa-raspa” (um tipo de sorvete), caldinho, ovo de codorna, camarão e amendoim. Um movimento, ainda assim, abaixo do normal por se tratar da baixa temporada. Na medida em que seguia em direção ao estuário do Rio Formoso, a infraestrutura turística se sofisticava e o contingente de pessoas na faixa de areia diminuía. Acompanhado pelos recifes, na margem direita, e pela restinga, à esquerda, parei em um comércio simples, que destoava do cenário ao redor.
Sentada numa cadeira de plástico vermelha, a dona do quiosque falou que abrira o comércio só por abrir, pois os clientes raramente apareciam durante os “meses de chuva”. Edivânia, de 50 anos, aparentava desânimo em meio ao ruído do vento úmido e à quebra ritmada das ondas. A praia tem sido sua fonte de renda, dos cinco filhos e suas famílias, desde o início da vida. “A gente trabalha muito no verão, aí nesses meses (chuvosos) a gente passa de boa. Mas quem não tem quiosque e ganha menos sofre, passa necessidade mesmo”, diz.
Ao conversar com Edivânia, descobri que o motivo da sua preocupação tinha a ver com o futuro. O quiosque Pôr do Sol que sustenta a sua família está em vias de ser removido por se encontrar muito próximo da linha de costa, em área que pertence à União. “Tamandaré é um lugar que não tem trabalho para todo mundo e a única renda que existe é a beira-mar. Aqui a gente já foi notificado pela Marinha para sair. Levei uma multa de 8 mil reais. Agora a gente vai para a rua de trás. É complicado se manter na cidade porque não tem uma gestão que esteja ali dando apoio”, reclama.
A estrutura do quiosque de fato está sobre a restinga, uma vegetação rasteira de praia que segura a areia e impede o agravamento de cenários erosivos. Mas pedalando por Tamandaré pude encontrar situações parecidas de “avanço sobre o mar” em empreendimentos mais endinheirados.
Na famosa Praia dos Carneiros, próximo do estuário do Rio Formoso, os acessos públicos ao mar praticamente inexistem. É importante destacar que a APA Costa dos Corais foi criada com o objetivo de proteger os recifes e eles, por sua vez, devem (ou deveriam) fomentar o turismo local e melhorar as condições de vida das comunidades, o que não vem acontecendo, segundo os moradores com os quais pude conversar. A segregação socioespacial e o custo de vida têm aumentado dentro da área de conservação.
O geógrafo Celso Gomes, autor desta tese de doutorado sobre o APA, conta que o poder público (estados e municípios) têm confundido desenvolvimento com crescimento econômico. “O pensamento não é melhorar para a população local, mas sim atender os requisitos necessários para o capital que está sendo ali instalado”, sustenta. A presença deste capital é visível no “boom” de casas, restaurantes, pousadas e resorts de alto padrão. O setor turístico privado tem ocupado as primeiras ruas paralelas à linha de praia onde geralmente existem serviços públicos como ruas pavimentadas, saneamento e iluminação. Mas, ao adentrar o continente, no espaço das pessoas do lugar, o cenário muda.
Durante o doutorado, Celso percorreu 11 municípios da APA, excluindo da pesquisa apenas Maceió, no Estado de Alagoas, que tem uma dinâmica própria por ser uma capital estadual. Ele conta que existe um padrão de uso do território pautado na produção de pobreza e desigualdade. A tese aponta que só 36% da população economicamente ativa da APA se encontra ocupada, o que explica a presença de subempregos na alta temporada e de desemprego na baixa.
“Não estou condenando a atividade turística, estou condenando o planejamento e a forma na qual ela é executada pelos entes governamentais. Os moradores não têm direito aos benefícios que o turismo traz. A especulação imobiliária tem expulsado eles da costa, cada vez mais para trás do território, se distanciando de seu local de trabalho, que é o mar”, declara. Ele acredita que a comunidade local é o melhor agente de fiscalização e proteção do território. Logo, colocar as pessoas do lugar em vulnerabilidade significa também colocar os corais em risco. Segundo relatório do Global Coral Reef Monitoring Network, o turismo de recifes de coral movimenta, no mundo inteiro, anualmente, 36 bilhões de dólares.
Tradição pesqueira
Além do dinheiro de quem visita a unidade de conservação, outra importante fonte de renda na Costa dos Corais é a pesca artesanal. A Escola de Pesca de Tamandaré, no litoral do sul de Pernambuco, foi uma das primeiras do Brasil. Ao longo de 21 anos (1954-1975) a instituição formou 1.287 alunos. Hoje a principal referência para a classe é a Colônia de Pescadores Z-5, presidida, desde 2021, por Madalena, uma mulher negra que se apresenta como pescadora antes de ser presidente. Ela começou na atividade aos 10 anos de idade nos mangues do Rio Ariquindá. Acompanhada de uma amiga, na adolescência, voltava para casa cansada, mas com o balde cheio de peixes e frutos do mar.
Já cedo na vida percebia as desigualdades de gênero impostas no território. “A gente não tinha acesso às embarcações porque eram só os homens que tinham embarcação e, às vezes, eles não queriam dar carona”, recorda. Hoje ela tem a própria jangada e rede. Ganhou independência. Graças à pesca, criou dois filhos praticamente sozinha. Nos últimos anos, porém, conta que tem notado uma perda de biodiversidade devido à pressão urbana sobre o litoral.
“Eu mesma moro na praia, sou pescadora. Mas não gosto de tomar banho de mar. Eu vejo a poluição quando a gente está trabalhando. E ainda tem os veranistas que passam e jogam latinha, garrafa de vidro, dentro do rio. Podemos nos cortar, pegar doenças. Várias mulheres aqui da colônia já ficaram doentes”, denuncia. Há cinco anos um médico pediu que Madalena evitasse pescar ao máximo devido ao adoecimento de seus nervos, pele e ossos. Desde então, ela tem atuado como ativista na defesa dos direitos dos pescadores.
Os associados à Colônia Z-5 de Tamandaré somam 483 pessoas, sendo 264 mulheres. O grupo realiza mutirões de limpeza nas praias, ações de conscientização e também a venda de produtos naturais fornecidos pelos recifes de corais e mangues da APA. Madalena conta que também tem buscado professores para alfabetizar pescadores que não tiveram a chance de estudar.
Enquanto conversávamos, reparava em uma pilha de documentos sobre a mesa. Uma espécie de “carteira de identidade do pescador” que serve para comprovar o exercício da atividade. O excesso de burocracia tem dificultado a regularização da classe que mais tem contato com a “Amazônia Azul”. Entre 2019 e 2022, em todo o Brasil, mais de 67 mil pescadores tiveram o cadastro suspenso do Registro Geral da Atividade Pesqueira.
“Nós sofremos muito na situação de aposentadoria. Nós damos entrada e o pedido é negado. O Estado não quer reconhecer que a nossa atividade é uma profissão. Mas eu corro atrás porque sou pescadora e sei o quanto já sofri. Corro atrás dos objetivos para o grupo. Vou lá, luto, e assim nós vamos”, conta a presidente da colônia.
Enquanto Madalena atendia as demandas e telefonemas, ia observando a diversidade de parcerias entre a comunidade pesqueira e os pesquisadores e órgãos públicos. Uma união que tem crescido no território. A principal referência de órgão público na APA é o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), uma autarquia federal ligada ao Ministério do Meio Ambiente do Brasil.
O ICMBio é o responsável pela gestão e fiscalização na Costa dos Corais. Há 40 anos, o órgão possui também uma estrutura focada em pesquisa, monitoramento de espécies, gestão ambiental marinha e formação pessoal no litoral do Nordeste do Brasil. O Centro de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Nordeste (Cepene) recebe a comunidade local e pesquisadores do mundo inteiro. Tive a sorte de visitar o centro em pleno 5 de junho, o Dia Mundial do Meio Ambiente.
Educação que transforma
Comecei a pedalar pelo Cepene e um grupo de crianças, cerca de 40, chamou a minha atenção. Fardadas, elas caminhavam em uma pequena estrada próxima ao mar rodeada por coqueiros. Estavam ali para participar de uma aula de campo promovida pelo Projeto Converse com Cientistas. Mesmo estando fora da faixa etária (12-13 anos), perguntei à educadora se poderia acompanhar a aula.
Com o “sim”, cheguei a uma das salas do Cepene, onde nos aguardava Ana Paula Leite, supervisora de educação ambiental do Projeto Meros do Brasil, que atua em mais de 1.500 quilômetros da costa nacional. O Mero (epinephelus itajara) é uma espécie de peixe dócil de águas tropicais que habita os recifes e mangues. Ele cresce nos rios e vivencia a fase adulta no oceano. Sua presença é sinônimo de boa qualidade dos ambientes marinhos. Por ser uma espécie em extinção, sua pesca é proibida no País desde 2002.
“Se vocês conhecerem alguém que capturou, conversem, peçam que soltem. Não é mais legal a gente encontrar o peixe lá no mar mergulhando? Vocês que moram aqui (em Tamandaré), quando estiverem tomando banho nos recifes, vocês podem encontrar o mero. E aí a gente pergunta: é melhor ele vivo ou morto?”. “Vivo!”, gritaram os estudantes. A todo tempo as crianças se mostraram atentas e participativas, resultado da abordagem feita pela supervisora, sempre aproximando a ciência da realidade local e o saber popular. “Isso aí é onde vocês moram, viu, gente?”, repetia, apontando para a tela, de forma a criar um sentimento de pertencimento no grupo.
Quando a apresentação terminou, caminhamos “observando a natureza” rumo ao prédio de pesquisa. Antes passamos pelo píer, uma estrutura náutica que avança sobre o mar, de onde é possível ver a Zona de Preservação de Vida Marinha de Tamandaré. Criada em 1999, ela é a primeira área de estudo e recuperação de ambientes marinhos do Brasil. Nesse trecho de cerca de 400 hectares nenhuma atividade turística ou pesqueira é permitida.
Enquanto as crianças seguiam para a exposição de peixes, parei para conversar com uma pesquisadora que observava ao fundo, protegendo-se do sol e do vento no rosto. Beatrice Padovani é uma pioneira nos estudos de conservação marinha no País. São mais de 20 anos dedicados à Costa dos Corais. Além de pesquisadora, ela é professora de oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ao sair de uma aula para outra, fiquei ouvindo Beatrice falar da resistência histórica dos recifes de corais. Por muitos anos, eles foram removidos pela construção civil e pela indústria de cal. Como a colonização portuguesa se deu pelo Oceano Atlântico, a Mata Atlântica se tornou o bioma mais populoso e degradado do Brasil. Tem apenas 24,3% da sua cobertura original. E a destruição continua. Entre 2021 e 2022, mais de 20 mil hectares de floresta foram desmatados. Pelos rios da região escoam esgoto, plástico, pesticidas e fertilizantes que entram em contato com os corais, e provocam o seu adoecimento.
O aquecimento global não é a única ameaça. Por isso, a professora também fala em melhorar as condições locais e restaurar o que foi perdido. Mesmo depois de tantos anos, a natureza continua a lhe surpreender, provando ser resiliente apesar dos desafios. “Vejo por um lado uma escalada de impactos que é desesperadora. Mas por outro vejo a capacidade absurda da natureza de se recompor. Vejo também a maior consciência da sociedade. Hoje em dia as novas gerações têm uma preocupação. O despertar da juventude é importante, principalmente para protestar, para estar ativo, para lutar contra decisões que são tomadas em função de lucros rápidos, mas que no final o prejuízo é coletivo”, diz. Beatrice acredita na educação como ferramenta de luta contra a exploração dos ambientes costeiros, uma realidade crescente por todo o País.
Dentro ou fora de unidades de conservação, a primeira vítima da expansão predatória costuma ser a restinga, um ecossistema adjacente aos recifes. Sem ela, as praias ficam mais vulneráveis a erosões, inundações e um provável aumento no nível médio do oceano. “A água sempre encontra um caminho, e o solo protegido pela restinga é dinâmico, é vivo. O que o mar ‘come’ em um dia, a planta recupera no dia seguinte. Então, em vez de querer morar dentro d’água, nós devemos sempre procurar ter esse serviço da natureza”, afirma.
Pela sua capacidade de defender a costa, a restinga é fundamental para o Brasil. A maioria da população vive concentrada na faixa litorânea, um dos territórios mais ameaçados pelas mudanças no clima. Segundo o IPCC, o oceano pode subir acima de 1 metro até o fim do século. Proteger a entrada do continente também é papel dos recifes, que além de fornecer alimento e impulsionar o turismo, mitigam a força das ondas. Nesse caso vale tanto para os recifes de coral (biológicos) como para os de arenito (não-biológicos). Estes últimos são rochas formadas por grãos de areia cimentados naturalmente ao longo do tempo.
Naquele 5 de junho ensolarado, de frente para o mar, a professora Beatrice me levava a pensar o futuro e a entender os processos naturais como uma cadeia. Ela me apresentou os alunos de mestrado e funcionários do ICMBio que fazem do Cepene uma referência na produção científica.
Espécies sob ameaça
Ao seguir pedalando pelas cidades da APA, percebi a falta de uma integração enquanto roteiro turístico interestadual. A partir de Maragogi, no litoral norte de Alagoas, a estrada ganha acostamento e as placas com as distâncias entre os municípios começam a aparecer. Maragogi é um dos principais destinos turísticos do Brasil com praias de águas quentes e transparentes que lembram as do Caribe.
Um levantamento feito na cidade, em 2020, registrou o pior estresse térmico desde 1985, o que levou a uma diminuição de 18,1% na cobertura média de corais vivos. “O evento aconteceu durante a pandemia, e a gente acabou não acompanhando o processo de mortalidade. Só voltamos à APA no fim do ano. Foi quando pudemos perceber que em alguns locais até 50% dos recifes de corais tinham morrido por conta do aumento de temperatura”, conta Luís Guilherme, graduando em oceanografia e integrante do Projeto Conservação Recifal. A taxa de mortalidade foi maior para a Millepora braziliensis e a Mussismilia harttii (coral couve-flor), duas espécies de coral endêmicas do Brasil e bioconstrutoras de recifes.
Os corais são animais que vivem em um ótimo bastante estreito de temperatura (entre 23° e 29° Celsius). Quando o cenário ao qual estão acostumados muda, eles entram em choque e passam por um processo chamado branqueamento. O branco nada mais é que o esqueleto do animal exposto. Quem dá cor aos corais são as microalgas, também chamadas de zooxantelas. O coral e a microalga vivem em uma parceria benéfica para ambas as partes. Quando isso acontece, recebe o nome de simbiose. A microalga, por meio da fotossíntese, entrega nutrientes para o coral. Já ele oferece proteção e condições para que a microalga cresça.
Com o aumento de temperatura intenso e prolongado, os corais tendem a perder ou expelir as microalgas. Ficam brancos. Começam a “passar fome”, o que eleva a sua chance de morte. O fato de estarem “com febre”, porém, não significa que eles não possam se recuperar. Assim como nós, a recuperação tem a ver com a saúde do ambiente em que vivemos. Como o aquecimento global é uma doença difícil de ser controlada, o que pode ser feito localmente é dar um estresse a menos para o animal. Isso passa pelo turismo e pesca conscientes e também pela melhoria da qualidade da água.
Enquanto movia os pedais pelo litoral norte de Alagoas, pude observar alguns canteiros de obras às margens da rodovia AL-101. O Governo do Estado está investindo mais de 570 milhões de reais em abastecimento de água e esgotamento sanitário na Costa dos Corais. Ao todo, 90 mil pessoas e cinco cidades (Maragogi, Japaratinga, Porto de Pedras, São Miguel dos Milagres e Passo de Camaragibe) serão beneficiadas. As melhorias na infraestrutura urbana andam ao lado da preservação dos recursos ambientais.
Na APA, quem realiza o serviço ecossistêmico de “limpar a água” é o mangue, cujas raízes atuam como filtro biológico contra os poluentes. O mangue também é conhecido como berçário da vida marinha por ser o lugar onde filhotes de diversas espécies são criados. Este artigo acadêmico publicado em 2021 listou 325 espécies de peixes na Costa dos Corais. 40 delas (ou 12%) se encontram na lista vermelha, sob o risco de desaparecer. As causas em potencial listadas pelo artigo são a sobrepesca (quando a espécie é capturada além da sua capacidade de reprodução) e a degradação dos habitats (mangues e recifes).
Resistir no território
No trajeto da reportagem, encontrei diversos barcos de pesca no estuário dos rios. Ao chegar em Japaratinga, no Rio Manguaba, atravessei a bicicleta com o auxílio de uma balsa. O ponto marca o início da Rota Ecológica dos Milagres, um trecho da APA com menos atividade turística que Tamandaré e Maragogi. Moradores me contaram que, há cerca de dez anos, o cenário da rota ecológica era pacato, tomado por cabanas de pescadores e pequenas pousadas. Mas hoje um “boom” de novos empreendimentos e agências de turismo está em curso.
Na praia do Porto da Rua, em São Miguel dos Milagres, a maioria dos pescadores se tornou jangadeiro e oferece passeios aos visitantes. “Tem o das piscinas naturais para ver os peixinhos, os corais, e tirar foto naquele visual bonito. Tem o passeio ecológico na divisa do mar com o rio que vai entrando pelos manguezais e passa na famosa ponte do peixe-boi”, narra Painço, jangadeiro de 34 anos. Painço é um tipo de cereal conhecido por ser “comida de passarinho” e também a forma com a qual prefere ser chamado. Ele conta que migrou da pesca para o turismo influenciado por pessoas próximas, seguindo as transformações locais. O Plano de Manejo da APA exige que os condutores de visitantes passem por um curso de conduta responsável, para então receberem a autorização do ICMBio.
Os jangadeiros começaram a trabalhar juntos na associação. Mas com a chegada dos receptivos de turismo muitos se desfiliaram em busca de melhorias econômicas. Painço também se tornou um prestador de serviço independente. Hoje apenas 12 homens são associados. “Uns trabalham no particular, outros trabalham nas pousadas. Aqui é um preço, ali já é outro preço. Mas o certo mesmo era todo mundo trabalhar na Associação. Os passeios tinham que sair todos pelo grupo”, argumenta. Ele entende que a união seria o melhor para a classe, mas lamenta a ausência de alguém para fazer essa articulação.
Mesmo a maioria trabalhando cada um por si, os jangadeiros costumam se reunir na beira da Praia de Porto da Rua. Durante minha visita, até por volta das 9 horas de uma manhã nublada, nenhuma jangada havia entrado no mar. Os passeios caem bastante durante o período chuvoso. Um ou outro jangadeiro pega a rede e volta a ser pescador. Todos ficam no aguardo do verão, época mais importante para a geração de renda na comunidade.
Ainda na cidade de São Miguel dos Milagres, na tentativa de encontrar os recifes, acabei entrando em um labirinto. As estradas de barro entre os muros das construções de luxo me levaram a um beco de cerca de um metro de largura, por onde finalmente pude acessar o mar.
“O toque é praia particular. Estou me comprometendo em falar isso. Você tem um ‘espaçozinho’ para o pedestre, mas o acesso mesmo não existe. As pousadas compraram as praias”, afirma Maria José, de 59 anos, nascida e criada na pequena cidade de menos de 10 mil habitantes. Ela conta que o setor da construção civil chegou de vez ao território, e provocou alterações na paisagem da APA. Na minha passagem, pude ver operários trabalhando e placas de obras licenciadas pelo Instituto do Meio Ambiente de Alagoas.
“O turista que vem para cá tem um poder aquisitivo maior. É um turismo seleto mesmo. Aqui a gente tem pousada de 2 mil reais a diária. Mas ainda tem muita pobreza. Nós oferecemos atrativos para eles (os turistas) ao mesmo tempo que temos uma qualidade de vida muito abaixo dessa realidade”, afirma. Em seguida, ela lançou o seguinte questionamento: “Quanto preciso ter no bolso para sobreviver 30 dias aqui?”. Maria disse conhecer pessoas nativas que precisaram sair da cidade devido ao aumento crescente no custo de vida.
Há pouco mais de 10 anos, após ser demitida de uma pousada, Maria iniciou um curso de corte e costura promovido pelo recém-criado Instituto Yandê, organização da sociedade civil que desenvolve projetos de impacto socioambiental na Costa dos Corais, no Estado de Alagoas. Tem como base a união de três eixos: educação, cultura e meio ambiente. Um dos primeiros projetos do Instituto foi a Oficina Peixe-Boi e Arte, em 2011, que tem por objetivo melhorar a qualidade de vida de mulheres por meio do empreendedorismo sustentável.
Elas criam souvenirs diversos do peixe-boi-marinho (Trichechus manatus), animal ameaçado de extinção que é símbolo da unidade de conservação. A espécie atua na base da cadeia alimentar e depende dos recifes de coral e manguezais para sobreviver. Tem como santuário as águas do Rio Tatuamunha, que fica dentro da Rota Ecológica dos Milagres.
Na Oficina Peixe-boi e Arte, o trabalho da máquina de costura dá vida ao mamífero de pano e pelúcia, presente nas mesas, estantes e sacolas, nos mais variados formatos e cores. Maria, a mais experiente, comanda o projeto. Quatro mulheres trabalham com ela. “Hoje o ateliê caminha com as próprias pernas porque (lá atrás) o Instituto Yandê deu tudo integral para a oficina funcionar. E eu sou muito grata. O que eu puder fazer por esse Instituto eu faço porque foi ele que me deu essa nova vida. Eu nem sonhava em ser uma costureira, uma artesã. Antes eu batia de porta em porta buscando uma oportunidade e hoje estou gerando emprego na minha comunidade”, diz, com felicidade. Graças à oficina, ela e as demais mulheres garantem a renda integral.
Salvando os corais
Outra mulher que tem feito a diferença na APA é a bióloga Bárbara Pinheiro, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Atualmente ela pesquisa no pós-doutorado a acidificação costeira e seus impactos nos recifes. “O pH está mudando por conta da interação da água do mar com o CO2 (dióxido de carbono), o que está diretamente ligado às mudanças climáticas, com a quantidade de CO2 que nós (seres humanos) estamos colocando na atmosfera”, explica.
Do ponto de vista químico, além da diminuição do pH, os corais próximos à praia também sofrem com o aporte de nutrientes e matéria orgânica que vem dos rios. E isso tem a ver com a ação humana em nível local. A água suja enfraquece o esqueleto dos corais, assim como a carapaça e conchas de siris, ostras e mariscos, dificulta o crescimento e eleva a chance de desenvolverem “osteoporose”. Durante a época chuvosa, a poluição escoa mais rapidamente para o oceano, e torna a química da água ainda pior.
O cenário descrito mostra que, além da “febre” causada pelo estresse térmico, os recifes de coral têm outros problemas para enfrentar. “Por isso dizemos que eles são um dos ambientes mais ameaçados do mundo. Eles não estão tendo folga. Localmente, nós não podemos fazer muita coisa em relação às mudanças de temperatura no oceano. Nós não conseguimos simplesmente colocar água gelada. Mas podemos deixar o ambiente o mais saudável possível para que eles se recuperem por si só. Nós podemos sim lutar por política pública para combater o problema do branqueamento em massa”, afirma a pesquisadora.
A partir da coleta da água (nos rios e no mar) e das análises em laboratório nascem informações que, embasadas na ciência, servem para provocar mudanças. Os dados são entregues a gestores públicos e empresários da região justamente com essa finalidade. A falta de uma consciência ampla em torno de um assunto urgente é o que move Bárbara a agir.
Na tarde em que conversamos, a encontrei mergulhada em meio aos telefonemas e áudios. Buscava recursos e doações para projetos sociais desenvolvidos no litoral norte de Alagoas, por meio do Instituto Yandê, onde é diretora voluntária. Como representante do Instituto, ela integra o Conselho Gestor da APA Costa dos Corais, um fórum permanente de discussão, negociação e gestão de assuntos pertinentes à unidade de conservação. As 40 cadeiras titulares reúnem atores de diferentes municípios e conta com representantes do poder público, da academia e da sociedade civil organizada.
A atuação de Bárbara vai além do papel de cientista. Mas, apesar das diferenças entre os setores, ela conta que, no fundo, o objetivo é o mesmo: conservar os recifes de coral. Bárbara acredita que a conservação passa obrigatoriamente pelas pessoas, que são as principais beneficiárias e impactantes. Uma sociedade mais justa, com educação, emprego, renda, moradia e saneamento, gera melhorias nos ecossistemas costeiro-marinhos que estão ao redor.
Na maior unidade de conservação deste gênero do Brasil, os ambientes recifais se multiplicam da linha de praia até cerca de 30 quilômetros (16 milhas náuticas), na quebra da plataforma continental. “Os recifes de corais têm uma biodiversidade comparada às florestas. A única diferença é que as pessoas não conseguem colocar uma máscara de mergulho para ir lá ver”, afirma a bióloga.
Por habitarmos o ambiente terrestre, é naturalmente mais difícil estabelecermos conexões e visualizarmos as transformações que vêm ocorrendo no oceano. Se os desmatamentos e queimadas realizadas na “Amazônia Verde” são motivo de preocupação, a mesma atenção vale (ou deveria valer) para o branqueamento de corais e mortalidade de espécies marinhas na “Amazônia Azul”.
Ao pedalar pela Costa dos Corais, pude encontrar muita gente que está na linha de frente, fazendo a diferença com ações individuais e projetos coletivos. O que tem dado esperança e força na luta pela preservação de um dos maiores e mais belos patrimônios deste País.
Esta reportagem foi elaborada com o apoio de LatinClima, da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e do Centro de Ciências Tropicais por meio da iniciativa Histórias que contam mudanças.