No Ceará, pelo menos cinco representantes entram na disputa para a Assembleia Legislativa, Câmara e até pelo governo do Estado
Em todos os estados do Brasil, pelo menos uma pessoa autodeclarada indígena buscou registrar candidatura para as eleições gerais deste ano. Ao todo, foram realizadas 186 solicitações. E mesmo após 13 delas serem consideradas inaptas, houve pelo menos uma candidatura deferida para um dos cargos disputados neste pleito.
No Ceará, a professora Juliana Alves, a Cacika Irê, é a única mulher indígena a concorrer ao cargo de deputada estadual neste ano, segundo informações divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Diferente da maioria dos candidatos, ela chega ao pleito por uma decisão coletiva e por causas de diversos grupos. Ao ser consultada pelo PCdoB sobre a possibilidade de se candidatar, ela consultou as lideranças de base para ver a viabilidade de assumir o compromisso.
Considera este conteúdo relevante? Apoie a Eco Nordeste e fortaleça o jornalismo de soluções independente e colaborativo!
Recorde desde 2014
Nestas eleições, o número de candidatos indígenas é o maior desde 2014, quando começou a autodeclaração racial das candidaturas. Naquele ano, 84 indígenas se registraram como candidatos. Em 2018, o número subiu para 134, e agora são 178 candidatos indígenas – sendo 58 para a Câmara dos Deputados.
Apesar de ser mais do que o dobro em relação a 2014, a proporção não chegou a duplicar, pois o número de candidatos no total aumentou também. Os indígenas passaram de 0,32% para 0,62% dos candidatos. Neste ano, há 28.505 pedidos de registro de candidaturas; em 2014, eram 26.161.
Nem todos os concorrentes indígenas estão lá por questões da comunidade. Há postulantes com interesses particulares ou outros que não necessariamente dizem respeito às pautas dos povos originários.
Na Região Nordeste, 30 registros seguem em condições de disputar vagas, segundo as regras do TSE. São seis mulheres e 12 homens concorrendo para a Câmara Federal, quatro indígenas do gênero feminino e três do masculino para as assembleias estaduais, além de duas concorrentes a suplência no Senado, um candidato ao governo da Bahia, outro a vice-governador no Ceará e um indígena disputando vaga no Senado pelo Piauí.
A Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) elencou 30 candidaturas pelo Brasil para apoiar nessa campanha. A da Cacika Irê é uma delas.
“Quando recebi o convite, disse para o partido que eu não poderia tomar essa decisão sozinha, sem antes consultar as lideranças em nível de Estado e consultar também a minha mestra, a minha mãe, a Cacica Pequena, para saber qual seria o posicionamento dela”, lembra Juliana, que pertence ao povo Jenipapo-Kanindé, da terra indígena Lagoa da Encantada, no município de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza.
“Foi uma construção coletiva porque eu deixei aberto para que outras pessoas, outras lideranças pudessem optar pela nossa ida ou não para esse pleito eleitoral. E a resposta que eu tive de muitos era que, se a gente realmente fosse, estariam aptos a apoiar, ajudar no que fosse preciso e alguns respondiam dizendo que só se eu tivesse muita coragem de ir para uma campanha eleitoral neste ano em que tudo está tão dificultoso, ferrenho, dentro de um governo genocida, etnocida, que não tem nenhum olhar apropriado para as populações indígenas”, continuou.
Ela conta que a candidatura foi lançada durante o último Acampamento Terra Livre, realizado em abril de 2022, em Brasília, no Distrito Federal, quando, segundo Irê, mais de 20 mulheres lançaram seus nomes à disputa eleitoral deste ano.
Além de Irê, o Ceará tem duas candidaturas parlamentares e uma majoritária neste pleito. Paulo Rubens Barbosa França, o Paulo Anacé, que chegou a pedir registro para disputar vaga no Senado, agora entra na briga por uma vaga na Câmara Federal pelo PSol.
“Desde 2018, o movimento indígena achou mais que necessário o aumento nas candidaturas indígenas, pois, mesmo tendo já existido candidaturas indígenas anteriores a 2018, a quantidade era pequena diante da dimensão da história e luta dos povos originários”, conta Paulo, que é educador social e liderança indígena do município de Caucaia, ainda na RMF.
O candidato também é membro da executiva da Federação dos Povos Indígenas cearense e militante do movimento LGBTQIA+ e da luta contra a mineração e pela preservação da Terra. “Nossa candidatura segue na linha de indígenas como Ailton Krenak, Sônia Guajajara, Joenia Wapichana e muitos outros que colocaram seus nomes como candidatos a disputar vagas, não só na política, mas em quaisquer cargos e setores”, diz Paulo.
O indígena era o nome do PSol para disputar o Senado. Contudo, com a adesão do partido à coligação de Elmano de Freitas (PT), que já tem Camilo Santana (PT) disputando a vaga de senador para o Ceará, a candidatura dele foi retirada.
Em Canindé, Edivania Vieira concorre à Câmara Federal pelo PCB. De Iguatu, José Mácio Alves (PSol) também disputa uma vaga na Assembleia Legislativa do Ceará.
Na chapa para o governo do Ceará do UP, Bita Tapeba concorre ao cargo de vice-governador. De Caucaia, ele leva para o pleito a discussão sobre a demarcação de terras dos povos tradicionais no Estado.
“Entendemos que esse governo não tem uma política voltada o movimento indígena. Até mesmo os que estão tentando a eleição nunca tiveram uma proposta legítima para homologar a nossa terra. Porque não é só demarcar. A demarcação é um processo contínuo. Tem que ser demarcada, homologada e desintrusada para que sejamos donos juridicamente dessa terra. O que é a desintrusão? É a retirada de todos os posseiros, fazendeiros, grileiros, enfim. Por isso que é um processo longo que nem os governos anteriores quiseram fazer, pois é uma luta muito grande”, avalia.
A crítica dele se direciona tanto às gestões estaduais quanto federais. O processo de demarcação de terras no Brasil é feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e está paralisado desde o início da gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), atualmente candidato à reeleição. Barrar processos de devolução de áreas indígenas aos povos tradicionais foi uma das promessas de campanha dele em 2018 e continua sendo defendida pelo mandatário no pleito atual.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera as pesquisas de intenção de voto e tenta vencer a eleição ainda em primeiro turno, no próximo domingo, já prometeu aos povos originários um ministério dedicado aos assuntos deles, coisa que não fez nos outros dois mandatos como presidente.
Outra discussão política que interfere diretamente no processo de uso das terras indígenas é o do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que transfere do Poder Executivo para o Legislativo a competência para realizar demarcações de terras indígenas. Segundo o texto, que tramita na Câmara dos Deputados, a demarcação será feita mediante aprovação de lei na Câmara dos Deputados e no Senado. A proposta altera o Estatuto do Índio.
O PL cria um “marco temporal” e, a partir disso, só serão consideradas terras indígenas os lugares ocupados por eles até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Novos pedidos que não tiverem essa comprovação serão negados, caso a Lei seja aprovada, e o processo de aprovação caberá ao Congresso – e não ao Executivo. Além disso, fica proibida a ampliação das reservas indígenas já existentes.
Se aprovado, o projeto ainda oferece espaço para a exploração hídrica e energética, mineração e garimpo, expansão da malha viária, caso haja interesse do governo, e libera a entrada e permanência das Forças Armadas e Polícia Federal, sem a necessidade de consultar as etnias que ali habitam. Fica também liberado o cultivo de plantas geneticamente modificadas em terras indígenas e o contato com povos isolados em territórios de “utilidade pública”.
Bita argumenta que os territórios atualmente ocupados foram retomados pelos indígenas ou herdados, mas falta os governos tomarem partido pelos povos tradicionais e arcarem com os custos de devolver as terras aos donos originários. Ele explica, ainda, que as candidaturas dele, de Paulo Anacé e da Cacika Irê, apesar de serem de legendas diferentes, dialogam com as bandeiras dos direitos indígenas.
Aldear a política tradicional
“A importância de criar uma bancada indígena, de trazer para o pleito eleitoral de 2022 esse projeto de aldear a política a partir de uma bancada indígena, seja nas assembleias legislativas dos estados, seja na Câmara Federal, é por conta de toda a conjuntura que os povos indígenas vivem recentemente, já de anos, na verdade, mas recentemente se aflorou muito, dessa perseguição, dos ataques aos direitos dos povos indígenas, principalmente nas casas legislativas, no tocante ao Congresso Nacional, tanto na Câmara Federal como o Senado Federal”, afirma Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
Karipuna explica que todas as candidaturas do movimento são importantes, mas a Apib precisou selecionar aquelas com perfil mais progressista para apoiar, já que não há recursos para destacar todos os candidatos. “Como o TSE divulgou 182 candidaturas que foram declaradas como indígenas nessas eleições, não teríamos condição de alcançar tudo isso e sabemos também que, dessas 182 candidaturas, há um certo distanciamento entre algumas dessas pessoas, candidatos e candidatas, declarados como indígenas que não têm essa aproximação maior com o movimento indígena, não atuam mais diretamente com o movimento indígena, isso foi levado em consideração”, aponta.
Ele menciona o caso do vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) que se registrou como indígena em 2018 e compôs a chapa de Bolsonaro. “Não estamos colocando em questionamento o fato de ele ser ou não indígena, isso quem tem que dizer é o povo pelo qual ele se declarou, mas entre o Mourão estar alinhado com o movimento indígena tem uma lacuna, um abismo gigantesco”, declara.
O coordenador lembra que existem diversas candidaturas indígenas de partidos de direita, o que é “natural do processo”. Contudo, avalia, há um “abismo enorme” entre candidatar-se como indígena e levar as pautas para os mandatos. “Não vamos tapar o sol com a peneira, porque de fato existem pessoas e talvez até oportunistas nesse meio. Não vai caber a nós dizermos se a pessoa é indígena ou não é, isso que tem que dizer é o povo pelo qual ele ou ela se declara”, ressalta.
Governador indígena na Bahia?
Na Bahia, o professor Jerônimo Rodrigues Sousa, do PT, disputa a gestão estadual e tem chances reais de vencer a disputa. Segundo as últimas simulações, ele já toma a dianteira contra ACM Neto (União Brasil), seu principal adversário na corrida pelo executivo estadual baiano.
Caso seja eleito, o ex-secretário de Educação se tornará o primeiro governador indígena do País, pois Jerônimo se declarou desta maneira no pedido de registro de candidatura junto ao TSE. Segundo informações do Bahia Notícias, que buscou a assessoria do candidato, ele se autodeclara indígena por ter uma ascendência do povo originário Tupinambá.
Além dele, o médico Israel Fontes Dutra, do PSol, disputa o governo do Amazonas. conhecido como Israel Tuyuka, ele se tornou um símbolo na luta contra o coronavírus na região ao lançar vídeos nas redes sociais com orientações para evitar a contaminação pela doença. Segundo as pesquisas, o indígena alcança 1% das intenções e não deve chegar ao segundo turno.
Nas chapas como candidatos a vice-governadores, além do cearense Bita Tapeba, também concorrem, no Amazonas, Anne Moura pelo PT; e Francisco Wapixana, em Roraima, pelo PSol. Há também dois candidatos ao Senado, Bartolomeu da Silva Tomaz (PSol-Rede de Roraima) e José Wellington Barroso, que busca reeleição pelo PT do Piauí.
A primeira indígena eleita
Em 2018, Joênia Batista de Carvalho (Rede-RR), conhecida como Joênia Wapichana, foi eleita a primeira deputada federal indígena do País. Desde que o cacique xavante Mário Juruna deixou o Congresso Nacional, em 1987, um indígena não era eleito deputado federal. Ela também é pioneira por ser a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no Brasil.
Também nas últimas eleições gerais, Sônia Guajajara, educadora e enfermeira nascida na Terra Indígena (TI) Araribóia, no Maranhão, foi a primeira liderança indígena a concorrer à vice-presidência da República, ao lado de Guilherme Boulos, do PSol. Neste ano, Guajajara concorre ao cargo de deputada federal por São Paulo, também pelo Psol. Uma de suas principais bandeiras, além da retomada da política de demarcação de territórios indígenas, é o incentivo ao pequeno agricultor e à Agroecologia.
Quem concorre ao Executivo Nacional é Raquel Aguiar Santos, a Raquel Tremembé, que ocupa a vaga de candidata a vice de Vera Lúcia Pereira. A chapa pura do PSTU encampa uma candidatura 100% feminina com uma representante negra e outra indígena. Todavia, a dupla não tem recursos para a campanha, pois não houve nenhum repasse, segundo informações do TSE. Além disso, Vera não participa dos debates entre presidenciáveis, já que as emissoras seguem a regra de convidar somente representantes de legendas que tenham pelo menos cinco representantes no Congresso Nacional. O convite deve ser feito obrigatoriamente a todos os candidatos de partidos que cumprem esse número mínimo, somando Câmara e Senado. Já os candidatos que não atingirem este patamar podem ou não ser chamados, a critério dos veículos de comunicação.
Formato partidário
Para Kleber Karipuna, em geral, há uma dificuldade de apoio das legendas aos postulantes de povos originários, destaca. E o formato partidário pode não ser o mais interessante para os grupos. “Esse formato não nos contempla, tanto por questões da forma como é feita essa disputa entre os partidos, entre a ala esquerda ou de direita, enfim, extrema direita, como também pela questão ideológica. Na maioria dos partidos não nos sentimos tão contemplados”.
Ele aposta que os indígenas eleitos poderão levar esse debate às casas legislativas e pensar na melhor forma da participação indígena no pleito eleitoral: “Isso não só para os povos indígenas, mas para todas as populações tradicionais: indígenas, quilombolas, em termos deste formato posto que entendemos que não nos contempla. E com isso enfrentamos muitas dificuldades internas em vários partidos, sejam eles de direita ou esquerda”, completa.