Entre a ganância e o colapso ecológico

A Serra de Baturité, um dos redutos remanescentes de Mata Atlântica no Ceará, enfrenta uma ameaça iminente que coloca em risco sua biodiversidade única. Lar de 38 espécies ameaçadas de extinção, essa região se vê cada vez mais vulnerável diante da especulação imobiliária desenfreada. Com a recente proposta de criação de uma autarquia ambiental, no município de Guaramiranga, surge a preocupação com a falta de garantias para a proteção de seus recursos naturais e a necessidade de alertar para o risco do colapso ecológico, caso a ganância continue a prevalecer sobre a urgência da conservação.

Um porco-espinho com espinhos brancos e corpo bege se equilibra em um galho fino, com sua cauda longa e peluda pendurada. Seus olhos escuros e bigodes finos contrastam com a pelagem clara
O quandu-de-baturité (Coendou baturitensis) é uma espécie endêmica do Maciço de Baturité, descrito pela ciência em 2013 | Foto: Fábio Nunes

A criação de uma autarquia municipal de meio ambiente em Guaramiranga, sob o véu da descentralização administrativa e do ‘progresso’, revela uma ironia amarga: enquanto promete aproximar a gestão ambiental dos cidadãos, silencia vozes populares e despreza expertise técnica, curvando-se aos interesses de um setor imobiliário ávido por lucros rápidos. A medida surge como resposta a um histórico de frustrações do setor, que desde 2007 enfrenta restrições devido a um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Ministério Público (Portaria Nº 1.909/2007) no município de Guaramiranga.

O acordo proibia novas construções residenciais acima de 150m² até que estudos críticos — como a capacidade de suporte ambiental e o micro zoneamento ecológico-econômico — fossem concluídos. Mas estes encontraram uma forma de burlar as regras: empreendimentos disfarçados de ‘serviços de hospedagem’ surgiram como brecha para erguer condomínios luxuosos, onde apartamentos e chalés superam os limites legais de construção (150m²), enquanto nascentes secam e moradores dependem de caminhões-pipa para sobreviver.

Autarquia ou máquina de licenças?

Três pássaros amarelos vibrantes com detalhes em preto estão empoleirados em galhos finos com folhas verdes
Classificado como criticamente ameaçado, o pintassilgo-do-nordeste ainda pode ser avistado na Serra de Baturité | Foto: Fábio Nunes

A urgência em implementar a autarquia, sem diálogo ou transparência, parece expor seu verdadeiro propósito: acelerar a liberação de licenças para megaempreendimentos. Enquanto a população local sofre com racionamento de água — reflexo direto do desmatamento de áreas ecologicamente sensíveis, como encostas e topos de morro —, o discurso oficial vende a fantasia de que construções trarão “progresso” e “geração de empregos”.

A realidade, porém, é outra. A Serra de Baturité, último reduto de 1% da Mata Atlântica cearense (segundo a SOS Mata Atlântica e INPE), assiste à substituição de florestas por concreto. Espécies como o uru-nordestino, tovaca-campainha e o pintassilgo-do-nordeste, já à beira da extinção global, perdem habitat para mansões e projetos que ignoram um dado crucial: sem floresta, não há água. Sem água, não há vida.

Florestas vazias gritam

Um pássaro com plumagem branca e preta está empoleirado na ponta de um galho fino, com o céu azul claro ao fundo com folhas verdes desfocadas em primeiro plano
A araponga-do-nordeste (Procnias averano) registrada nas florestas da Serra de Baturité | Foto: Fábio Nunes

A especulação imobiliária não derruba apenas árvores — desequilibra ecossistemas inteiros. A fragmentação das matas abre caminho para um fenômeno perverso: as florestas vazias, que resultam na perda dos serviços ecossistêmicos. Além disso, a presença de espécies como a cascavel, na serra de Baturité é um sinal alarmante: o desmatamento está transformando a serra úmida em um ambiente quente e aberto, hostil à sua fauna nativa e dependente.

Estudos da Nature comprovam que distúrbios humanos (poluição sonora, construções, espécies invasoras) dobram a perda de biodiversidade causada pelo desmatamento. Janelas de condomínios, por exemplo, matam aves aos milhares — um símbolo grotesco de um “progresso” que carrega em si uma profunda contradição: promovem-se casas cujo principal atrativo é a proximidade com uma natureza exuberante, mas são justamente essas construções que contribuem para a destruição dos atributos que as valorizam.

Água para poucos, seca para muitos

Enquanto nascentes minguam e poços secam, a Serra de Baturité testemunha uma gentrificação silenciosa. Moradores históricos são expulsos por pressão imobiliária, substituídos por residências secundárias de elite que consomem água em excesso e geram esgoto não tratado. É o racismo ambiental em sua essência: licenças são concedidas para grandes empreendimentos, enquanto comunidades periféricas lutam por saneamento básico. A Serra de Baturité, que outrora já foi um refúgio de clima ameno e abundância de água, torna-se cenário de colapso — e entre os culpados está quem emite tais licenças.

Uma ave com plumagem verde-oliva e detalhes em amarelo e preto está empoleirada em um galho fino, com o céu claro ao fundo. Seu bico longo e curvo, em tons de verde e amarelo, se destaca
O tucaninho-da-serra (Selenidera gouldii) é mais um exemplo exclusivo da rica biodiversidade da Serra de Baturité ameaçada pela devastação | Foto: Fábio Nunes

O copo da ganância transborda,
mas a sede é inesgotável

A Serra de Baturité reflete um paradigma humano antigo: a ilusão de que é possível sugar infinitamente um ecossistema finito. Os especuladores imobiliários, abraçados pelo poder público, vendem sonhos de moradias idílicas em meio a florestas que sustentam o clima da “Suíça cearense” que eles mesmos destroem.

Enquanto isso, o silêncio da araponga-do-nordeste ecoa no vazio. Sua possível extinção apenas repete os erros dos nossos antepassados: uma civilização que ignora a ecologia e tira o direito de existir de outras espécies. Os especuladores podem até fugir para outras paisagens quando a água secar e as florestas definharem, mas carregarão consigo o mesmo vazio que os motiva — a ganância.”

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: