Se construirmos em todo o litoral, o que nos restará?

A imagem mostra um pôr do sol em uma praia. O sol está parcialmente abaixo do horizonte, criando um céu alaranjado e avermelhado com algumas nuvens. No mar, há várias pessoas e barcos visíveis, e algumas pipas de kitesurf estão voando no céu. A praia tem uma pessoa caminhando na areia molhada, refletindo a luz do pôr do sol.

Pôr do sol na Praia do Preá, litoral oeste do Ceará, vizinha à famosa Jeri | Foto: Fernanda Leal

Dez em cada dez pessoas de outras regiões do Brasil, sobretudo Sudeste e Sul, respondem com uma exclamação quando eu digo que moro em Fortaleza: “ai que delícia!” Geralmente eu não estico a conversa. Mas sempre fico pensando que as pessoas não conseguem valorizar devidamente o que têm.

Este texto não é sobre muitas coisas. Mas de uma coisa eu tenho certeza: é sobre inquietações. No meio deste ano fiz duas viagens: para um extremo do litoral oeste do Ceará e para o litoral leste, mas pertinho de Fortaleza. As duas ocasiões foram momentos de relaxamento, mas, ao mesmo tempo, de uma inquietação crescente dentro de mim.

O pior foi que, ao longo dos últimos quatro meses, ao receber algumas notícias, esse sentimento foi crescendo. Uma pergunta a você que está lendo este texto: como você se sente a respeito das áreas naturais da cidade onde vive e das que você visita? Algo te incomoda?

Como é bom ter um lugar para relaxar. E presumo que, quando você pensa em descanso, na maioria das vezes este lugar tem natureza pelo meio. Mas e se todo mundo ao mesmo tempo resolver ir, ou ocupar este lugar? Como ficam as coisas?

Voltando ao Estado do Ceará, onde vivo, destaco apenas um recorte: o litoral. Numa rápida viagem imaginária de oeste a leste, as praias e vilas de pescadores vêm dando lugar paulatinamente a fazendas de camarão, parques eólicos, condomínios e resorts. Não tem mais isso de casa de praia e pousada. São condomínios e resorts. E alguns deles até com lagos artificiais.

Para coroar a minha inquietação, veio a notícia de que a herdeira de uma enorme extensão de terra estava reivindicando toda a Vila de Jericoacoara, um lugar, que ainda é lindo, mas que já perdeu boa parte do seu charme por um turismo que teima numa fórmula de desnaturalização da natureza.

Para minimizar os danos às pessoas que vivem e lucram daquele pedaço de areia na beira dos nossos verdes mares, a Procuradoria Geral do Estado conseguiu um acordo que considerou satisfatório: garantir a propriedade de todos os terrenos não ocupados da Vila. Ao saber da notícia, eu pensei: agora essa proprietária pode fazer o que quiser: vender, lotear, construir, construir.

Daí pensei mais um pouco: se todos os terrenos desocupados da Vila de Jeri forem construídos, o que sobrará daquele local que atraiu tantos forasteiros em busca de um lugar bucólico e privilegiado pela natureza? Será que a propriedade da terra dá mesmo o direito de se fazer o que quiser, inclusive construir cada centímetro do litoral até não restar mais nada de paisagem natural? E os serviços ecossistêmicos? Como ficam se tudo for ocupado e construído no litoral? Que destino terão os resíduos? Qual água abastecerá toda essa população flutuante e residente? E, não menos importante, como ficam as populações que habitam esses territórios há dezenas ou até centenas de anos?

Impactada demais com tudo isso para ficar só pensando sobre, resolvi ouvir algumas vozes mais estudadas que eu para repercutir essas inquietações.

Povos do mar

A imagem mostra duas pessoas na praia ao pôr do sol. Elas estão caminhando perto da água e carregando uma rede de pesca. O mar está ao fundo, com a luz do sol refletindo na água, criando um efeito brilhante. A areia da praia está em primeiro plano, com algumas marcas e texturas visíveis.

Pescadores na Praia de Jericoacoara, litoral oeste do Ceará | Foto: Fernanda Leal

Andréia Camurça, assistente social e coordenadora do programa Direitos Territoriais e Socioambientais do Instituto Terramar, lembra que, a partir da década de 1970, os 573 km de litoral do Ceará começaram a ser pressionados pela especulação imobiliária para instalação de grandes empreendimentos, principalmente turísticos.

Já a carcinicultura, se intensificou na década de 1990. Daí comunidades tradicionais que já viviam ali há décadas passaram a ser pressionadas e se constituíram vários conflitos socioambientais.

Ela fez um destaque para o papel dos governos, iniciando por Tasso Jereissati, que “trouxe o progresso entre aspas e vendeu o Ceará como a terra da luz, do vento. Como esses governos venderam a Zona Costeira? O olhar para esses territórios era como se não tivesse ninguém ali”.

Andréia lembra que o último Zoneamento Ecológico Econômico identificou 324 comunidades que se autodeclaram comunidades tradicionais e que a negação da existência delas continua e somam-se tentativas de expropriar, de retirá-las dos seus territórios. Ressalta também que é desconsiderado que essas populações têm um papel fundamental frente à crise climática porque têm buscado proteger ecossistemas como manguezais e dunas.

A assistente social alerta também para a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 03/2022, que possibilita que áreas públicas nas costas e nos litorais possam ser destinadas para uso privado que tem um potencial de dizimar o que resta dessas populações.

Andréia lembra alguns casos emblemáticos, como o Assentamento Maceió, em Itapipoca (litoral oeste) que foi alvo de muita luta na década de 1980 com o agronegócio e a conquista da terra via Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Seguiu-se o avanço da carcinicultura na década de 1990, e depois das eólicas nos anos 2000, casos como Camocim, da comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati. E fala também c[do mais recente caso, de Jeri.

Ela toma como exemplo Tatajuba, no município de Camocim, mas que faz parte do turismo de Jeri pela proximidade, que vem tendo um avanço expressivo da especulação imobiliária nos últimos 20 anos. Quando você olha do alto para Tatajuba, ela está toda cercada. Está, inclusive, em processo de regularização fundiária pelo Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace). Mas existe uma grande problemática de como é que o Estado vai proteger aqueles ecossistemas frente a todas as ocupações que já se deram: “A gente fica se perguntando o que vai sobrar e até quando as comunidades que ali vivem vão conseguir se manter naquele território”, afirma.

Direito à natureza ou à propriedade?

A imagem mostra uma vista aérea de uma área costeira com uma combinação de paisagem urbana e natural. Na parte inferior da imagem, há uma área de dunas de areia, que se estende até a parte central da imagem. À esquerda e ao centro, há uma área residencial com várias casas e edifícios, alguns dos quais parecem ser de alto padrão, com piscinas e jardins bem cuidados. À direita, há uma estrada que serpenteia pela paisagem, conectando diferentes partes da área. No fundo, há uma praia com areia clara e o mar, que se estende até o horizonte.

Vista aérea da vila de Jeri a partir do Serrote da Malhada | Foto: Conselho Comunitário de Jericoacoara

Para Sheila Pitombeira, procuradora de justiça e professora, a questão de Jeri é muito interessante do ponto de vista do que vale mais: se é a propriedade ou se é o ambiente ecologicamente equilibrado, a paisagem: “começa na geografia do lugar, o meio ambiente equilibrado, as coisas funcionando, as árvores, o vento, o solo, os outros seres vivos e o homem dentro desse cenário. Essa questão de se a paisagem, se a propriedade remonta exatamente à apropriação da forma e do modo de produção em que ser dono da propriedade fica mais importante do que ter a natureza”.

E continua: “é importante um comando constitucional: a propriedade tem que se curvar ao ambiente sadio e equilibrado, à redução das desigualdades. É exatamente a função socioambiental da propriedade. Esses são comandos que estão inseridos no capítulo inicial do texto constitucional, dos princípios fundamentais do Estado brasileiro, no artigo 225. Está no artigo da ordem econômica tudo isso bem claro, bem explicitado”.

Em relação à ocupação do litoral no Ceará, em particular, a procuradora ressalta a necessidade de olhar historicamente: “O litoral era utilizado, no período do século XVI / século XVII para a chegada do nosso colonizador. No caso de Jericoacoara, foi um espaço onde os portugueses andaram por volta do século XVII, assim registram os livros de História do Ceará. Esses espaços eram entreposto de chegada de saída de produtos. E as comunidades indígenas e as comunidades tradicionais, no caso das atividades pesqueiras, essa questão tem que ser respeitada. Como é que as comunidades pesqueiras vão sobreviver com essa desigualdade?”.

Sheila Pitombeira argumenta que há muito tempo precisamos ter o disciplinamento da Zona Costeira: “a Lei do Zoneamento Ecológico Econômico Costeiro (Lei N° 13796/2006) vem exatamente estabelecer as regras para proteger a paisagem e as populações. Mas o Decreto nunca foi editado. A Lei ficou com uma dificuldade de aplicação e por isso houve uma ocupação indiscriminada com atividades que estão se instalando na zona costeira. Esse é um problema que urgentemente precisamos resolver”.

E completa: “tem uma outra Lei tramitando na Assembleia Legislativa do Ceará que ainda não foi votada. Essa Lei, na minha percepção, apresenta um retrocesso em relação à anterior porque viabiliza muito esse contexto de ocupação”.

A pesquisadora da área do Direito Ambiental também levanta os riscos decorrentes dessa ocupação: “a nossa Zona Costeira vai ser ocupada com atividades que muitas vezes trazem alguma forma de poluição. No caso da carcinicultura, com os insumos que são colocados em determinadas regiões, o habitat natural de determinadas espécies fica prejudicado ou então se constrói em áreas que não deveriam ser construídas e tira aquela naturalidade da natureza. Isso é muito complicado”.

Sobre Jericoacoara, especificamente, ela faz uma reflexão: “Jericoacoara, antes de ser o Parque era uma APA (Área de Proteção Ambiental). Essa APA foi criada em 1984. Na época, Jericoacoara integrava a jurisdição de Acaraú. Depois, em 1991, se tornou município. Nesse contexto, quando ela foi constituída em APA, essas informações sobre os proprietários, ou pelo menos a poligonal, era mais ou menos conhecida. Quando depois veio o Parque e a ampliação do Parque, essas áreas também eram conhecidas, sobretudo o Parque, que precisa ter o domínio público e a posse pública, ou seja, se o Parque foi instituído pelo ente federativo União, as terras são da união e o uso, a posse dessas terras, também”.

Neste caso, para ela, “fica desarrazoado compreender como é que a União, quando foi instituir o Parque, não procurou na poligonal que ficou definida para ser o Parque na primeira versão e depois da ampliação. Lembre que a Vila precisou ter um mercado e um posto de saúde e isso entrou na área do Parque, então houve uma segunda delimitação do Parque para tirar essa área que teria esse serviço de dentro do Parque e colocar na Vila”.

E prossegue: “a questão curiosa é que nesses dois momentos nunca foi verificada essa dominialidade. Eu questiono é que descuido foi este de não se verificar a poligonal e o que é que estava dentro dessa poligonal que faz o Parque, durante tanto tempo uma propriedade que nunca foi reclamada. E o outro lado é exatamente que, quando foi feito o Parque, a parte que ficou a Vila foi exatamente para acomodar primordialmente os nativos daquela região que eram os pescadores. Se os pescadores venderam, trocaram, permutaram, isso estava no âmbito do direito deles de fazer esses negócios, mas ainda assim esse espaço existia e foi reconhecido para aquelas pessoas”.

E completa: “se existe um universo de pessoas delimitadas, essa propriedade que aparece agora, durante 20 anos, sem o uso, função social, sem nada disso, é um caso de se indagar. Eu quero crer que o Idace e a Procuradoria Geral do Estado estão com muita atenção e com muito cuidado nesse contexto jurídico”.

Sheila Pitombeira reconhece que um aspecto que não se observa muito na temática ambiental é exatamente a paisagem, como harmonia do lugar, da beleza que se vê, das sensações de recordação, da vinculação com a memória, do registro do passar do tempo que a própria natureza vai promover nesses lugares. “São informações preciosas para a comunidade e para as pessoas que interagem com esses espaços. Essas paisagens não deveriam ser alteradas. Lá em Jericoacoara já não se tem tantas paisagens naturais, a naturalidade da natureza, aquilo que é próprio da natureza, são poucos os espaços nesse sentido. Precisamos todos acompanhar com muito cuidado e sermos muito vigilantes nas formas de ocupação dos nossos espaços, do nosso litoral, do avanço nas nossas áreas de caatinga, serras, serrotes, dunas e todos os nossos rios, riachos e lagoas”, declara.

Dinâmica costeira

A imagem mostra uma área costeira com vegetação esparsa e algumas palmeiras, provavelmente em uma região tropical ou subtropical. Há uma estrada de areia que atravessa a cena, com algumas casas e construções ao fundo, cercadas por árvores e arbustos. Ao longe, é possível ver o mar e a linha do horizonte. A imagem parece ter sido tirada ao entardecer, com a luz do sol criando sombras longas e uma atmosfera tranquila.

A costa tem uma dinâmica que é alterada pelo processo de ocupação humana, o que pode gerar diversas consequências | Foto: Conselho Comunitário de Jericoacoara

Jeovah Meireles, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), pesquisador dos programas de pós-graduações em Geografia (PPGeo/UFC) e em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema/UFC) e pesquisador sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), afirma que há bastante tempo o seu grupo de pesquisa vem acompanhando a erosão em alguns setores do litoral cearense.

“Em Icapuí (litoral leste), fizemos o levantamento dos últimos 35 anos em 2018, já com o município completamente em erosão e um pequeno setor onde tem as faixas de areia acaba concentrando um certo volume de sedimentos e não se caracteriza como uma erosão contínua, mas o sistema está em processo de erosão”, explica.

Sobre as águas doces, ele informa que o lençol freático do aquífero livre, onde tem as cacimbas, as áreas úmidas e que nas primeiras chuvas afloram, estão já em processo de salinização por conta da erosão e a entrada da água salgada, chamada de cunha salina, que está avançando muito mais para o interior do município.

Para o grupo de pesquisa, a especulação imobiliária está ocupando muito rapidamente as áreas que fornecem sedimentos para o litoral. Mas há 30 anos já se registrava o avanço da erosão, o que significa dizer que pode estar vinculada também à elevação do nível do mar registrada pelos gráficos do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) neste período.

Outro setor que o grupo está acompanhando é a planície costeira de Jericoacoara e Tatajuba que está passando também por processos erosivos, que, embora afastadas, podem estar sofrendo os efeitos de zonas mais ocupadas, como a Região Metropolitana de Fortaleza, justamente devido aos sistemas ambientais que fornecem sedimento para a deriva litorânea.

“O Espigão do Titanzinho (em Fortaleza), por exemplo, acumula sedimentos. É a nossa hipótese. Vamos passar por um período de pouca a entrada de sedimentos, o que já vem sendo notado, ao longo dos anos, essa pouca dimensão dos sedimentos que podem estacionar por conta do nível de ocupação da zona costeira. Mas as ondas e as marés não param, nunca. Teremos, muito possivelmente, um processo mais intenso. Tem um único setor que não tem ainda uma erosão caracterizada como progressiva que é a Praia do Futuro”, explica.

E segue: “existem setores que estão sendo mais dramaticamente submetidos às consequências do aquecimento global com a emergência erosiva da planície costeira brasileira e o nosso Estado também está passando por essa etapa contínua de déficit de areia pela continuidade da ação das ondas e das marés levando esses sedimentos e as áreas fornecedoras desses materiais paulatinamente sendo ocupadas. De Jericoacoara até Tatajuba se percebe que todo o litoral está cercado ”.

Por fim, ele destaca a importância do ecossistema manguezal, bastante ocupado no litoral do Ceará pelas fazendas de camarão: “ele proporciona captura de dióxido de carbono, é o sistema gerador de sais minerais e nutrientes para plataforma continental, presta o serviço ecológico de proteger a zona costeira dos processos erosivos por amortecer a ação das marés, das ondas e também fornece sedimentos”. E adiciona a informação de que o fornecimento dos sedimentos nos sistemas fluviais está interrompido pelas grandes barragens que aprisionam os sedimentos no interior do continente.

Os impactos e os serviços ecossistêmicos

A imagem mostra uma vista aérea de uma área costeira. Na parte inferior da imagem, há uma praia com areia clara e ondas do mar quebrando na costa. Acima da praia, há uma área de dunas e vegetação rasteira, com várias trilhas de terra que se entrelaçam. Na parte superior da imagem, há uma área urbana com várias casas, edifícios e árvores. Algumas das casas têm telhados de cores diferentes e há uma área com um grande telhado azul.

Vista aérea da Vila de Jericoacoara | Foto: Conselho Comunitário de Jericoacoara

Samuel Trajano Rabelo, cientista ambiental doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Marinhas Tropicais da UFC afirma: “nos últimos tempos o que se tem visto é esse avanço acelerado no litoral inteiro do Ceará que já está repleto de empreendimentos, de atividades antrópicas (humanas), desde grandes parques eólicos que já impactam diretamente, especialmente as comunidades do tradicionais do litoral, pesqueiras, muitas barradas de acesso”.

Sobre impactos diretos à fauna, ele destaca os muitos empreendimentos de carcinicultura, criação de camarões, que muitas vezes privatizam determinados trechos dos rios para fazer criatórios com vários impactos, principalmente poluição da água com os rejeitos e medicações, inclusive antibióticos.

Mas o pesquisador considera que, de todas as intervenções, uma das mais impactantes é a urbanização: “a expansão urbana chega simplesmente destruindo tudo. É só ver como ficou a orla de Fortaleza que hoje não tem mais nada original. Na faixa de praia de Fortaleza tudo já foi antropizado, já foi modificado de alguma forma, prédios luxuosos quase dentro do mar, a exemplo da beira-mar. Eles aumentaram o aterro para poder aumentar essa faixa de praia porque os empreendimentos estavam quase caindo dentro no mar”.

E segue: “A urbanização chega e destrói vários ambientes frágeis da zona urbana, desde dunas, lagoas litorâneas, várias áreas de APP estão assoladas. Na região metropolitana, especificamente no Porto das Dunas, vários empreendimentos foram construídos em cima de duna e lagoa litorânea. As leis não são aplicadas a rigor e a tendência é só piorar. Uma das possíveis formas de mitigar, de barrar um pouco esse crescimento acelerado seria a criação de áreas protegidas como o Parque Estadual do Cocó, o Parque Municipal das Dunas de Sabiaguaba, APA da Sabiaguaba e a APA do Rio Pacoti que fica ao lado Porto das Dunas. Aumentar a fiscalização e cumprir a Lei porque nossa ocupação do litoral é toda irregular, toda ilegal, mas os órgãos públicos não fazem a devida fiscalização e punição”.

No caso de Jericoacoara, ele destaca que o terreno reivindicado é o da Vila e que a Vila está fora do Parque Nacional de Jericoacoara: “o Parque é uma área protegida, uma Unidade de Conservação federal onde não pode ser construído nada e tem várias restrições de uso da terra. Só pode utilizar para atividades como educação ambiental,  pesquisas científicas e turismo ecológico. A Vila é bem pequena, era uma vila de pescadores e virou um ambiente turístico. Reivindica a Vila porque não tem como reivindicar uma área protegida”.

A maior preocupação, para ele, é que o aumento do fluxo de turismo na Vila impacta o Parque porque vão entrar mais pessoas e para chegar à Vila tem que passar por dentro do Parque. Vai ter mais poluição por dejetos que precisam ser tratados e destinados para não poluírem o mar, as lagoas, o lençol freático. Também vai impactar a dinâmica dos ecossistemas: “Tem muitas dunas móveis, ambientes dinâmicos que acabam sendo impactados por esse fluxo muito grande de pessoas. A urbanização não vai poder ser feita dentro do Parque. Mas, de qualquer forma, o Parque sofre com essa pressão de movimentação de pessoas”.

Samuel destaca também a falta de proteção ao redor do Parque: “tem muitas florestas ainda, mata de tabuleiro, uma vegetação costeira que protege as dunas do Parque. A partir do momento que eles tirarem tudo para construir esses resorts, esses empreendimentos turísticos urbanizados, o Parque que vai perder plantas que poderiam colonizar lá, que vão proteger as dunas e, consequentemente, os recursos hídricos, o lençol freático, porque as dunas têm esse serviço de criar lagoa e abastecer o lençol freático”.

Ele completa que, de uma forma geral, estamos perdendo diversos serviços ecossistêmicos extremamente importantes para a nossa qualidade de vida, como, por exemplo, água potável, balneável: “aqui na cidade Fortaleza, por exemplo, poderia ter diversas lagoas que seriam polos turísticos onde as pessoas poderiam tomar banho, praticar atividades aquáticas como tem na praia, caiaque, stand up paddle, natação. Mas, infelizmente, as que restaram estão poluídas”.

Esse seria um serviço ecossistêmico para nosso lazer. Outro apontado pelo cientista ambiental seria a manutenção da regulação climática de cidades litorâneas como Fortaleza, uma região litorânea muito próxima do Semiárido, onde o calor começa a aumentar: “também tem o risco de enchentes se continuarmos neste processo de destruir rios, lagoas, dunas. Quando chover não tem para onde a água ir. No caso aqui de Fortaleza, por que fica tão alagado quando tem uma chuva muito grande? Porque os rios foram, em sua maior parte, assoreados e canalizados. A água tem um fluxo natural. A partir do momento em que tiramos esse fluxo natural de um rio, uma lagoa, seja o que for, ela se acumula na cidade”.

“São essas problemáticas que geramos para nós mesmos. Com a degradação da zona costeira, da vegetação, da biota e as mudanças climáticas globais, com o degelo que aumenta o nível do mar, cidades litorâneas, como Fortaleza e outras podem sumir do mapa”, conclui.

Reconexão com a natureza

A imagem mostra uma praia com barcos de pesca coloridos estacionados na areia. A maré está baixa, revelando padrões ondulados na areia úmida. Ao fundo, há uma linha de palmeiras e algumas construções, possivelmente casas ou estabelecimentos comerciais. O céu está claro, indicando que a foto foi tirada durante o dia, provavelmente ao entardecer, devido à iluminação dourada.

Barcos de pesca na Praia de Jericoacoara | Foto: Fernanda Leal

Magda Maya, geógrafa, doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente e fundadora da Beeosfera – Escola de Sustentabilidade 4.0, traça um princípio fundamental para que nós comecemos a pensar de uma maneira um pouco mais sustentável, ecológica, autossustentável que é realmente conseguir fazer uma reconexão com a vida e com a natureza.

E essa não é uma ação tão simples: “quando você menciona que quando as pessoas querem descansar, elas buscam lugares de natureza. Isso é verdadeiro em parte. De fato elas acham que estão buscando um lugar de natureza, mas, na prática, normalmente elas só querem sair do lugar onde estão no sentido de vizinhança, no sentido do ambiente totalmente construído que não tem mais que um jardim e elas buscam esses outros lugares, mas não têm uma integração genuína com a natureza”.

E continua: “porque normalmente não são aquelas pessoas que praticam ecoturismo, mas sim que procuram exatamente esses resorts e vão ficar olhando para a praia, muitas vezes, nem saem, preferem tomar banho de piscina do que de mar, ainda tem os lagos artificiais. Elas não querem contato genuíno com a natureza, querem estar nesses ambientes em quartos com ar-condicionado porque têm medo do mosquito. Elas não vão fazer de fato uma trilha na floresta porque têm medo do contato genuíno com a natureza. Parece um modismo de procurar os ambientes da moda, que possam ser postados, instagramáveis, do que uma busca por uma conexão”.

E lamenta: “o problema é que esse público que procura esse estilo de vida é realmente a maioria esmagadora. Raríssimas pessoas procuram um turismo comunitário, uma integração com comunidades, um contato genuíno com a natureza, essa conexão verdadeira. Nada mais é do que tornar a natureza mais uma mercadoria visual fictícia que vai atender também um ambientalismo que também é fictício, que é para as redes sociais”.

“Cabe questionar a que interesses de fato as instituições públicas estão representando e atendendo quando autorizam toda sorte de empreendimentos no litoral. Tem mais um detalhe que provavelmente não está sendo pensado e que é uma crítica que eu faço há muito tempo aos processos de licenciamento que são baseados só em análise de impacto. Essas análises de impacto consideram os serviços ecossistêmicos. Mas estão considerando o impacto cumulativo e sistemático de uma construção seguida da outra? E pergunto ainda mais: num cenário de mudanças climáticas, esses processos de licenciamento consideram também os riscos? Porque todos esses empreendimentos à beira-mar com certeza tenderão a desaparecer daqui alguns anos”, finaliza.

Agora tire as suas conclusões, caro leitor que chegou até aqui.

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