“Você sabia que uma abelha vale o mesmo preço de uma vaca dessa? Eu não acreditei, mas ele me mostrou as contas direitinho e num é que era mesmo?”. Foi assim que Railton de Souza Castro Soares começou o trabalho com criação de abelhas no Território Quilombola de Araçá-Volta, em Bom Jesus da Lapa, Oeste da Bahia. Um visitante trouxe esta ideia de aproveitar as potencialidades do ambiente local para produzir mel e gerar mais renda. Railton montou sua primeira caixa em 2022 e hoje tem doze.
A comparação com o valor do gado surgiu porque essa é uma das principais atividades econômicas da região, já que o quilombo está localizado numa área que foi uma fazenda pecuarista. Além das abelhas, Railton também cria gado, planta roça e cultiva uma variedade de alimentos em um sistema no qual começou a implantar alguns aprendizados de agrofloresta. A equipe da Eco Nordeste esteve no território quilombola durante uma jornada pelo oeste do Estado da Bahia para conhecer o contexto dessa região que faz parte do Matopiba.
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Na contramão dessa lógica, a comunidade em que Railton, de 33 anos, vive com sua esposa Lucineide de Souza Soares Castro, de 24 anos, e o pequeno filho Levi, mantém muitas tradições da identidade quilombola e da agricultura familiar sustentável. A isso, a família somou a atividade da apicultura e meliponicultura, que antes não acreditava ser possível por conta do clima na Caatinga baiana. Embora já tenha, sim, perdido enxames de abelha devido à seca e escassez de chuva em alguns períodos do ano, Railton aprendeu que existem espécies nativas adaptadas às condições ambientais do lugar.
“Aqui não é difícil pegar abelha. Peguei a maioria com caixa de papelão. Se você pegar uma caixa de papelão, colocar os quadros com a cera e chegar num pé de árvore que tenha uma florada boa, as abelhas sentem o cheiro da cera e vêm visitar”, explica. As flores da jurema e da aroeira, árvores nativas, são exemplos de espécies que as abelhas gostam.
Quando aquele visitante trouxe a ideia de criar abelhas, os dois saíram para o mato com uma caixa vazia que ele tinha guardada. Voltaram às duas da manhã e, a partir dali, ele não parou mais. “O rapaz veio de longe e me deu uma força com isso, então eu não podia parar, né? Hoje eu mesmo fabrico as caixas e fui avançando devagarinho, para ver até onde ia”. Chegou ao ponto de já ter extraído cerca de 50 litros de mel no primeiro semestre de 2024, e a venda garante uma renda extra para a família. Também já inspira outras pessoas na comunidade, ajuda a conseguir kits de caixas e outros itens necessários à atividade e ensina como capturar e cuidar das abelhas.
“Eu agora não mato mais abelhas! Antes eu tirava elas no mato, cortava os paus e deixava aberto, os filhotes delas do lado de fora. Hoje eu não faço mais isso, eu tapo de novo. Ninguém quer ser atacado, né? Imagina se você chega na casa da pessoa, pega os filhos da pessoa, rouba tudo e deixa as coisas do lado de fora. É como o cara faz quando vai tirar mel quando não tem esse cuidado”.
A Bahia é um dos principais produtores de mel do País. Ocupa o quarto lugar entre os que mais produzem, com cerca de 20 mil apicultores, conforme a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) do Estado. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2020 e 2021, a Bahia produziu cerca de 5 mil e 4,6 mil toneladas de mel, respectivamente.
Na meliponicultura (criação de abelhas nativas sem ferrão), a Bahia também é protagonista. É um dos cinco estados do País que já possuem a atividade legalizada, junto do Amazonas, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A Lei Nº 13.905/2018 regulamenta a criação, comércio, conservação e o transporte de abelhas, tanto em zonas rurais quanto urbanas.
O texto identifica 54 espécies existentes no Estado e é um instrumento de fortalecimento da cadeia produtiva do mel e do aumento da renda de agricultores familiares. A Lei atribui à Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) e à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) a responsabilidade pelo controle, fiscalização e conservação das abelhas nativas na natureza, em seu habitat natural, em troncos ou caixas.
ma.to.pi.ba
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes pelos podcasts; Adriana Pimentel, a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.