Eixo, braço, remo, pás, caixeta, bica, carneiro. Todos esses são nomes de peças ou partes de uma ferramenta utilizada há pelo menos cem anos por comunidades tradicionais na região oeste da Bahia para captar água dos rios e destiná-la ao uso doméstico, à irrigação de plantios e para dar de beber aos animais. O invento, porém, está sujeito a desaparecer por causa da escassez hídrica, do agronegócio e da substituição por motores a diesel.
Manjole, monjola, monjolo, cada um pronuncia de forma diferente o nome popular atribuído a esta máquina hidráulica feita de madeira, que é uma roda d’água moldada por muitas gerações de habitantes desta parte do bioma Cerrado. A equipe de reportagem da Eco Nordeste conheceu três dessas estruturas na comunidade Fazenda Lapinha, município de Santa Maria da Vitória, a quase 900 quilômetros da capital Salvador.
Quem nos contou da existência delas foi Marcos Rogério Beltrão, integrante do Movimento Ambientalista Grande Sertão Veredas, que as apelida de “Três Marias”. O engenho serve para bombear a água de rios para terrenos mais altos, criado “numa época em que não existia motor a diesel, então as pessoas tiveram que inventar as rodas d’água para irrigar”.
As “Três Marias” ficam nos fundos da propriedade rural de Olavo e Raimunda, um casal de agricultores que vive à beira do Rio do Meio. O nome “do meio” traduz o fato de que, nesta altura, sua margem direita é terra do município de Correntina e sua margem esquerda é terra do município de Santa Maria da Vitória. As rodas d’água estão fincadas na margem esquerda, possuem seis metros de diâmetro e uma estrutura confeccionada artesanalmente com diferentes espécies de madeiras nativas: braúna, aroeira, cedro, mangueira e copaíba, que Olavo também chama de “podoi”.
Nascido e criado na Fazenda Lapinha, plantando feijão, arroz, mandioca, milho e fazendo farinha, Olavo remonta a história do “monjolo”, como chama, por meio da chegada de seu avô naquelas terras, “na era de 1926”. No entanto, não sabe afirmar se a ferramenta foi construída por ele ou se já existia ali. Bem humorado, lança uma descontração: “essa pessoa que fez o primeiro monjolo teve uma ideia muito boa. Isso dá até uma pergunta: o que é que o homem faz no rio, solta no rio e a água não carrega? O monjolo!”
O funcionamento das rodas d’água fascinam com a materialização da união entre natureza e saber humano. Madeira, água e povo se entrelaçam num resultado de beleza cênica. Nas extremidades de cada “braço” – que são os raios da roda – estão fixadas tábuas de madeira que funcionam como remos e fazem a roda girar com a força da correnteza do rio. Nas duas pontas dos remos, ficam as “caixetas”, pequenos reservatórios semelhantes a baldes que se enchem com a água do rio e a leva para a parte superior da roda d’água, onde estão as bicas. De lá, a água desce por um cano e é direcionada ao uso.
Quando Olavo e Raimunda se casaram, há mais de 40 anos, a roda d’água da família (uma das Três Marias) estava parada, precisando de reparos. Abandonada já há algum tempo, “o mato cobriu”, como contam. Sem a ferramenta, eles sofriam pegando água de balde no rio para molhar as hortas. Em 1985, quando voltou a funcionar, mudou completamente a realidade do casal. “Aí nós ficamos ricos”, relembra Raimunda.
Da juventude nos roçados, Raimunda lembra das dificuldades, mas também dos bons momentos na beira do rio. “Nesse rio aqui, há muitos anos, entre dez e quinze, chegava uma turma de mulheres da região para lavar roupa”, conta. Algumas levavam as sacas em jegues ou equilibradas na cabeça mesmo, e era aquela diversão entre elas. Naquela margem, a família plantava as hortas que eram vendidas aos sábados na feira da cidade. De lá, traziam toucinho de porco, óleo, farinha e rapadura para passar a semana. No sábado seguinte, a mesma rotina.
Se você pesquisar na internet pelo nome “monjolo” vai encontrar imagens e referências a outro tipo antigo de máquina hidráulica rústica. Como não é o objetivo desta matéria desvendar as origens e verdadeiros títulos de cada ferramenta, fica para o leitor o mistério e o estímulo à curiosidade de saber como essa denominação foi parar no coração do Brasil.
Comunidades canalizam águas de nascentes
A aproximadamente 60 quilômetros da Fazenda Lapinha, na comunidade Brejo Verde, município de Correntina, Juscelino Santos Brito viu desde menino outra forma tradicional de captar água. Conhecida localmente por “rego”, a técnica consiste basicamente no desvio do curso d’água de uma nascente para levá-la às casas das famílias. Uma prática tradicional da região oeste da Bahia que também serve para matar a sede das pessoas e dos bichos.
Antigo como as rodas d’água de Olavo e Raimunda, o canal que Juscelino nos mostrou tem uma extensão de 6 quilômetros. “Eu não seria capaz de falar quantos anos tem esse canal, porque eu estou com 66 anos e já conheci assim. Deve ter mais de 150 anos”, acredita. Apesar de parecer mais simples diante da engenhosidade das rodas d’água, Juscelino explica que é preciso ter a fina ciência de cavar e nivelar o canal para que a água chegue por gravidade ao seu destino.
Circundada por vegetação nativa, a água da nascente é limpa e cristalina. Juscelino enche sua garrafa e mata a sede direto dali. O símbolo maior do cenário é o buriti, espécie de palmeira que sempre indica os lugares molhados. Onde tem buriti, tem água, e Juscelino sabe que “quem sustenta essa riqueza é o Cerrado”.
Desmatamento, agronegócio e falta de chuva
Como tantas outras tradições e antigas riquezas, as rodas d’água e os “regos” estão sujeitos a desaparecer. Por um lado, a modernidade das bombas e motores a diesel começa a substituir os “monjolos” de forma mais fácil e barata. “Tá quase parando, não vejo falar de fazerem um monjolo novo mais não. O pessoal hoje quer usar mais é o motor, que é mais fácil, só faz ligar, a manutenção é mais barata. Porque hoje uma aroeira dessa lá do mato tá 500 reais”, explica Olavo.
Por outro lado, o verdadeiro temor é o sumiço da própria água. “O rio era mais cheio e tinha mais força para movimentar o monjolo, jogava mais água. Ele vem baixando cada vez mais. Ouvimos falar que é por causa de uns pivôs que tem na cabeceira, e também tem a falta da chuva. Antigamente chovia mais, tá ficando muito pouco aqui na Bahia”, complementa.
Os pivôs a que Olavo se refere são estruturas de irrigação utilizadas pelo agronegócio predominante nesta parte da Bahia que integra o Matopiba. Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Nos chapadões do Cerrado, desde os anos 1980 as monoculturas retiram as águas diretamente dos rios ou por meio de poços profundos para irrigação. Hoje, o oeste da Bahia é um polo nacional de irrigação, com aproximadamente 300 mil hectares cobertos por pivôs centrais.
O que mais se escuta dos moradores mais antigos das comunidades tradicionais do oeste da Bahia é que as águas estão secando por causa do desmatamento ou que recebem contaminação dos agrotóxicos utilizados nos grandes monocultivos. O que é motivo de preocupação para todo o Nordeste, já que as águas cristalinas dos rios da região correm como no poema de Carlos Drummond de Andrade: o Rio do Meio (aquele dos “monjolos”), por exemplo, deságua no Rio Corrente que deságua no Velho Chico que vira mar. Por esta genealogia, já se tem ideia da sua importância.
No Cerrado do oeste da Bahia, estão muitos dos principais afluentes que integram a bacia hidrográfica do Rio São Francisco, como o Rio Grande e o Rio Corrente. Esses rios brotam em veredas que só existem porque debaixo da terra está o maior reservatório subterrâneo de água do Brasil: o Aquífero Urucuia. A chuva que cai penetra no solo arenoso, fica armazenada nesse conjunto de formações geológicas e torna a aparecer nas cabeceiras dos rios. Neste ciclo completo e equilibrado, os cursos d’água se mantêm perenes.
Com 125 mil km² de extensão, o Urucuia ocupa as profundezas de seis estados brasileiros (Bahia, Minas Gerais, Piauí, Maranhão, Goiás e Tocantins), mas tem sua maior parte (80%) sob o oeste baiano. “Sem o Cerrado em pé não existe água, por isso eu tenho uma grande preocupação quando vejo esse modelo de desmatamento. Se continuar essa invasão de desmatamento, o fim das águas não estará tão longe”. O presságio de Juscelino encontra evidência nos dados dos últimos anos.
Estudo recente do engenheiro-geólogo Clyvihk Camacho, do Serviço Geológico do Brasil (SGB) mostrou que o Urucuia perdeu 31 km³ de volume de água em uma década, entre 2002 e 2021. A redução coincide com um período de aumento do desmatamento do Cerrado na Bahia e também de áreas destinadas à agropecuária. De 2001 a 2023 foram quase 27 mil km² de vegetação nativa ceifada e mais de 20 mil km² incrementados ao agronegócio, quase o mesmo tamanho.
O SGB possui uma Rede Integrada de Monitoramento das Águas Subterrâneas (Rimas) com 87 poços de monitoramento do aquífero, 67 deles no Oeste Baiano. O estudo de Camacho aponta que a perda de água foi provocada por secas prolongadas em quase todo o País e pela intensificação do bombeamento de água subterrânea para irrigação.
A falta de chuva percebida pelos moradores é comprovada por números: outro estudo, desta vez sobre as mudanças climáticas que estão reduzindo as chuvas, demonstrou que nas últimas três décadas o Cerrado brasileiro ficou mais seco. O volume de precipitação média acumulada e o número de dias com chuva foram 50% menores entre 1991 e 2021 quando comparado aos trinta anos anteriores (1960 a 1990). A mudança climática, além de dificultar a vida das comunidades tradicionais, também afeta a produtividade das grandes lavouras e faz aumentar a demanda por irrigação. Ou seja, tem menos água entrando e mais água saindo..
As críticas de quem entende dos números apontam a maior responsabilidade pela crise hídrica ao agronegócio, a partir da constatação de que a proporção de diminuição no regime das chuvas é inferior à redução na vazão dos rios. Portanto, o uso desenfreado das águas superficiais e subterrâneas e o desmatamento atualmente prejudicam muito mais o equilíbrio hidrológico do que a própria mudança climática. O geógrafo Tássio Barreto Cunha é deste time e em sua tese de doutorado levantou a informação de que pelo menos 29 corpos d’água morreram na região oeste da Bahia. Uma dor que Juscelino conhece, porque já viu acontecer e entende que “só se sabe o valor de um copo d’água quando o poço seca”.
Desmatamento e irrigação
A Eco Nordeste publicou no mês passado dados recentes do MapBiomas em que o município de São Desidério apareceu na liderança do desmatamento, com 40 mil hectares de vegetação nativa suprimidos. Essa mesma cidade, no fim de 2023, assistiu à chegada do maior pivô central da empresa Bauer na Fazenda São Miguel, com capacidade para irrigar 276 hectares e uma vazão de água de 750 metros cúbicos por hora. O consumo diário de 18 mil metros cúbicos por este único pivô é seis vezes maior do que o consumo diário de água dos 32 mil habitantes da cidade.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação-geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.