‘Chuvas de veneno’ apavoram comunidades rurais

Foto colorida de avião amarelo sobrevoando uma grande área de plantação de soja que forma um campo verde. O avião deixa um rastro de agrotóxico em forma de vapor, sob um céu nublado

Mais de 60% dos agrotóxicos utilizados em território nacional se destinam ao plantio de soja, revela estudo | Foto: ©Thomas Bauer – H3000

“Tão botando veneno aqui com aquele bicho que ninguém nem vê (drone). Meu menino foi lá perto e ficou todo molhado de veneno, um veneno de cheiro muito podre.”

“O local onde estão colocando veneno fica no caminho para a escola das crianças. A preocupação é que as crianças que passam por perto tenham contato com esse veneno”.

“Pararam de botar veneno com os aviões e agora estão botando de drone. Estão prejudicando nossas águas e rios”

“O meu roçado é prejudicado pelos venenos que são despejados no solo. Tudo o que a gente planta está sendo afetado pelo veneno. Nenhum pé de caju, de manga, nenhuma planta vai pra frente”

“Minha mulher está com câncer e isso pode ter alguma coisa a ver com o veneno”

Esses são relatos de pessoas que vivem em diferentes comunidades rurais da porção maranhense do Matopiba e que por segurança preferem não se identificar. As denúncias se referem ao uso de agrotóxicos em grandes lavouras que cercam as comunidades, e os riscos e danos que a exposição ao veneno podem causar à saúde humana e ao meio ambiente. Com a proibição da pulverização aérea, em algumas dessas localidades, os aviões que faziam esse trabalho estão sendo substituídos por drones, uma forma mais discreta de distribuir veneno pelos ares e burlar a legislação.

“Nos últimos meses ficamos estarrecidos com a quantidade de denúncias que têm chegado de comunidades atingidas, crianças que estão sendo contaminadas, animais que estão morrendo por causa da contaminação e pessoas sendo ameaçadas de morte em conflitos gerados em torno disso”, destaca Ariana Gomes, da secretaria executiva da Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama). 

Em um cenário onde a legislação não é favorável, e com a ausência de fiscalização por parte dos governos estaduais e federais sobre os empreendimentos que cometem tais infrações ambientais, iniciativas populares se fortalecem para tentar reduzir os impactos dos agrotóxicos, especialmente sobre comunidades rurais.

O diálogo com a sociedade civil, a disseminação de cartilhas e informações, a promoção de cursos e formações, o acompanhamento dos trâmites legislativos, além das articulações políticas são iniciativas da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que também acompanha denúncias e famílias atingidas por danos dos agrotóxicos.

De acordo com Alan Tygel, da coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o cenário brasileiro com relação aos agrotóxicos é ruim. Como exemplo, cita a aprovação do Pacote do Veneno, Projeto de Lei Nº 1.459/2022 no qual a bancada ruralista investiu por décadas e que finalmente foi aprovado pelo Senado, sancionado pelo presidente com alguns vetos, em dezembro. Mas parte relevante desses vetos foi derrubada nos últimos dias.

“Infelizmente a perspectiva é de piora, porque a Lei 7.802, a antiga Lei de Agrotóxicos, até ano passado ainda conseguia assegurar princípios importantes para a proteção da saúde e do Meio Ambiente. Um desses princípios fundamentais era a regulamentação feita em igual poder pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Com a nova lei, tudo fica somente a critério do Ministério da Agricultura”.

A campanha reivindica, atualmente, a instituição do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), do Governo Federal, aprovado por todos os ministérios envolvidos em 2014.  “Nesse momento, estamos retomando o Pronara, dentro do contexto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e estamos lutando para que esse programa seja lançado e revisado ainda neste ano para que termos ações concretas para reduzir e eliminar os agrotóxicos mais perigosos assim como essa forma de aplicação mais nociva como a pulverização aérea.”

O movimento aponta como caminho a proibição da pulverização aérea: “No Maranhão, estamos recebendo muitas denúncias de diversas comunidades do Estado inteiro que estão sendo pulverizadas, recebendo essas chuvas de veneno. Já está mais que comprovado que a prática não tem como ser feita de forma segura e sempre oferecerá riscos de atingir áreas a muitos quilômetros de distância dos lugares onde são aplicados os agrotóxicos. A tecnologia dos drones tem uma regulamentação ainda mais frouxa e oferece um igual risco de contaminação”.

No Brasil, apenas o Ceará tem uma lei que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos: a Lei carrega o nome do agricultor familiar José Maria do Tomé, que foi assinado em 2010 por denunciar a pulverização de venenos em comunidades no interior do Estado. Em instâncias municipais, ou seja, que não contam com a interferência dos governos estaduais e federais, 25 municípios do Brasil já avançaram com essa proibição.

Caxias é o mais novo município maranhense a proibir a pulverização aérea. Outros oito municípios maranhenses estão tramitando projetos de lei de proibições. Do outro lado do Atlântico, em países desenvolvidos da União Europeia, a prática está banida desde 2009 por causa dos graves e comprovados riscos à saúde humana e ao meio ambiente.

Além de todos os danos causados à saúde e ao meio ambiente, Alan pontua o uso da pulverização aérea de agrotóxicos como arma química para forçar a expulsão de famílias e comunidades rurais de seus territórios originais, fato recorrente no Maranhão e nos outros estados brasileiros onde há a pujança do agronegócio. 

Outro caminho de solução em longo prazo é a transição para um modelo agroecológico, onde haja a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, com respeito aos ciclos da natureza e adoção de consórcios. Esse modelo é uma necessidade urgente para lidarmos com as mudanças climáticas. “Temos o exemplo do Rio Grande do Sul, que é um dos estados que implementou com muita força esse movimento do agronegócio, com grandes áreas de monocultura, uso de agrotóxicos, ignorando as matas ciliares, e tudo isso traz como consequência esses desastres que estamos vivenciando.”

Tygel considera que é mais do que urgente implementar políticas públicas com orçamento e efetividade para realizar de fato uma transição para esse novo modelo de produção agrícola. 

Envenenamento silencioso

No ano de 2023, foi lançado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Fundação Oswaldo Cruz um dossiê que atesta, por meio de análises laboratoriais, a contaminação das águas de povos e comunidades tradicionais pelo veneno lançado por sojeiros, no Cerrado brasileiro. 

O estudo considera que no Cerrado há um cenário de guerra química contra as comunidades tradicionais. De acordo com o documento,  estima-se que 600 milhões de litros de veneno são derramados no Cerrado, por ano. Mais de 60% dos agrotóxicos utilizados em território nacional se destinam ao cultivo de soja.  A pesquisa identificou ainda que mais de 43% dos ingredientes ativos (IAs) liberados no Brasil possuem uso autorizado na soja e que todos os dez agentes mais comercializados no País podem ser utilizados nesse cultivo. Nas sete comunidades participantes do estudo em que houve coleta de água, foram identificados, ao todo, 13 agrotóxicos diferentes. 

O dossiê identificou riscos associados a doenças como câncer de diversos tipos e à desregulação endócrina. O documento considera que os agrotóxicos “causam a contaminação das pessoas e seus corpos; de escolas e estudantes; da água de beber e cozinhar; das roças; do rio e do açude que eram, antes, locais de alegria; do solo, onde, outrora, brotavam os alimentos das comunidades. No meio ambiente, os impactos negativos também se alastram, como a perda da biodiversidade e seu potencial econômico e ecológico, o aumento da resistência das pragas e os possíveis custos para a descontaminação da água, do solo e do ar.”

Estudos também apontam que doenças respiratórias, auditivas, alérgicas,  neurológicas e psiquiátricas também podem ser associadas à contaminação com agrotóxicos. 

Danos à saúde reprodutiva

Foto colorida de mulher negra, vestindo blusa amarela e short vermelho, amamentando sua criança que veste roupas brancas estampadas com dinossauros coloridos

A ciência comprova que os efeitos dos agrotóxicos afetam a reprodução humana em diferentes esferas | Foto: Camila de Almeida

Para além disso, um estudo liderado pela médica e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Lia Giraldo Augusto, junto à  Associação Brasileira de Saúde Coletiva, revela dados alarmantes sobre os danos dos agrotóxicos à saúde reprodutiva dos seres humanos, em comunidades expostas às substâncias.

A pesquisadora explica que foram observados danos causados à saúde reprodutiva desde casos de infertilidade masculina e feminina,  problemas de concepção e gestação, como abortos; problemas no desenvolvimento fetal e má formação congênita;  problemas neuropsicológicos nas crianças, assim como casos de câncer infanto-juvenil, e desregulações endócrinas que levam à obesidade e mutações genéticas.

“Já detectaram, por exemplo, a presença de agrotóxicos no cordão umbilical e no leite materno. A contaminação do leite materno traz uma enorme insegurança alimentar para o bebê e tudo isso fica ocultado, pouco se fala a respeito. No Brasil se deixa circular substâncias que já foram proibidas em outros países, especialmente nos europeus. Em Minas Gerais, foram levantados o uso de 81 agrotóxicos capazes de afetar a saúde reprodutiva do ser humano”, detalha.

A pesquisadora ressalta que, apesar de termos um modelo agrícola que abusa dessas substâncias,  não há um contraponto de políticas públicas que revele esses danos à sociedade. “Os médicos não aprendem sobre o tema nas faculdades, nem as enfermeiras, ninguém faz o diagnóstico, não há esforço do Estado em esclarecer a situação, enquanto isso a população segue sendo bombardeada.”

Um trabalho de conscientização e educação vem sendo feito também junto às comunidades estudadas: “o agronegócio utiliza falácia para convencer a sociedade de que os danos dependem das doses utilizadas, e que você pode comer e beber agrotóxico todo dia se for um pouquinho. Buscamos contrapor esse mito por meio da ciência.  Percebemos que a nossa população mal conhece o seu próprio corpo quanto mais entender como é que o agrotóxico afeta a saúde, daí a necessidade desse trabalho educativo”, ressalta Lia.

Biodiversidade em risco

Foto colorida de abelhas pousadas em cima de um caju amarelo, com algumas fissuras na casca pendurado em um galho de cajueiro onde há outros frutos em diferentes estágios de maturação

O uso indiscriminado de agrotóxicos ameaça a existência das abelhas e de toda a biodiversidade ao redor | Foto: Alice Sales

As abelhas estão diretamente ligadas ao ecossistema onde ocorrem e são responsáveis por cerca de 40% a 90% da polinização da flora ao redor, Atuam para a manutenção da biodiversidade. Esse papel das abelhas é relevante também para a qualidade das culturas locais. Contudo, a ameaça dos agrotóxicos à existência desses animais, tem preocupado a comunidade científica, uma vez que o desaparecimento de espécies de abelhas pode colocar em xeque todas as formas de vida ao redor. 

“A ciência já tem conhecimento de que agrotóxicos têm efeitos letais para as abelhas, e efeitos subletais que não chegam a matá-las, mas causam danos às funcionalidades do animal”, ressalta Marcelo Casimiro Cavalcante, zootecnista, doutor em abelhas e polinização de culturas agrícolas e professor do Instituto de Desenvolvimento Rural da  Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Cavalcante explica que muitas culturas inclusive dependem dos serviços ecossistêmicos das abelhas para que se tenha uma produção de qualidade: “o tomate, por exemplo, não depende diretamente da abelha para se reproduzir, mas quando há uma espécie específica de abelha polinizando o tomate, ele vai ter mais sabor, vai ser um fruto mais bonito. Algumas culturas não existem sem a visita das abelhas naquelas flores, como é o caso da castanha-do-pará, do melão e da melancia, assim como outros frutos”.

O pesquisador detalha que o impacto inicial vem a partir do desmatamento, que afeta diretamente as abelhas, por serem os locais onde esses animais se reproduzem e se alimentam. Quando ocorre o desmatamento, é rompido esse ciclo de vida das abelhas. Com a lavoura já implementada, o efeito de uso direto de agrotóxicos com finalidade de exterminar as pragas em geral, acabam por afetar as abelhas também. 

Esses venenos que não têm ação específica matam as pragas e permanecem nas plantas. Quando a planta está em florescimento e esse agrotóxico é aplicado, essas abelhas que se aproximam para visitar as flores e coletar o néctar e o pólen, acabam se contaminando com esses agentes químicos. Quando a abelha retorna para a colmeia, ela espalha esse agente químico e contamina todas as outras abelhas.

Como uma alternativa para minimizar esses impactos, Marcelo Cavalcante indica pelo menos que se apliquem essas substâncias em momentos em que as abelhas não estão ativas, como durante à noite, ou durante o período em que essas plantas não estão em florescimento e não atraem as abelhas. 

Projeto ma.to.pi.ba.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba, inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.  

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.  

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts, e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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