A dinâmica dos festejos multiculturais de junho

Grupo da Mestre Zulene Galdino, do Crato dançam coco e maneiro-pau. As roupas coloridas e as fitas remetem às festas juninas | Foto: Francisco Sousa

Gilmar de Carvalho
Jornalista
Professor aposentado da UFC
gilmarcarvalho15@gmail.com

As festas juninas são celebrações das colheitas. Trabalham com a fertilidade da Terra, o que dá a elas uma ligação umbilical com o meio ambiente.

A festa é aquele momento de suspensão da realidade. Tudo muda. A rotina é quebrada. Novos atores entram em cena e pode haver uma subversão dos papéis que cada um desempenha na sociedade. Tem música, muita comida, muita bebida. Há o estabelecimento passageiro de uma nova ordem.

Algumas festas mantêm, mais fortemente, as raízes pagãs, como o Carnaval. As festas cívicas se ligam ao marcial. As religiosas trabalham em torno da fé.

Estas de junho, em que festejamos Santo Antônio, São João e São Pedro são híbridas: religiosas e profanas.

Origens

Elas foram sempre importantes em Portugal. Chegaram aqui, embaladas palas missões, e com apoio da instituição que dava poder e liberdade para a invenção de tradições, desde que representassem aumento de doações à Igreja e mais fervor.

Nas noites frias de junho, no hemisfério sul, as fogueiras criavam um clima propício para a festa.

Com a mistura das tradições indígenas e africanas, vieram as bebidas, sendo o aluá uma variação domesticada do cauim. Caju, milho, e mandioca fermentados provocavam estados alterados de consciência, e eram bebidos durante os rituais do torém.

A jurema se tornou ponto de partida para um culto que se originou entre Pernambuco (cidades da Zona da Mata, como Goiana) e Alhandra, na Paraíba, meio afro, meio indígena, que tem um competente registro ficcional nas páginas de “Iracema- Lenda do Ceará“, de José de Alencar, publicado em 1865.

A índia protagonista de nosso mito fundador seria a guardiã do segredo da jurema, e o resto da história vale a pena ser lido.

Comidas

A festa tinha como um dos seus fortes as comidas, a maioria delas preparadas com o milho. A canjica (curau); a pamonha, cozida nas palhas das espigas do milho; o mugunzá doce, que ganhou sua versão salgada, comum no Cariri; bolos de milho e o pé-de-moleque, luxuoso, mistura de carimã, a massa puba da macaxeira, com leite de coco, mel da rapadura preta, castanhas de caju picadas, assado em folhas de bananeiras.

Esta época é de atividade das casas de farinha, o que garante a goma para a tapioca e o grude, igualmente untuoso, com muito leite de coco, também assado envolto pelas folhas da bananeira, nos fornos a lenha.

No capítulo das bebidas, o quentão, feito com aguardente, com a desculpa de espantar o frio.

O tempo trouxe a inclusão do inevitável leite condensado, a presença nas mesas do creme de galinha, e até um vatapá se tornou item da tradição junina. Este vatapá cearense, mais próximo da açorda portuguesa, se faz a partir do pão dormido, molhado no leite, galinha desfiada ou peixe, leite de coco, dendê, temperos e pimentas.

O baião-de-dois completa o cardápio, multicultural. O encontro do feijão com arroz é feito em Cuba (mouros e cristãos) com feijão preto. Também presente em Portugal, na América Central e no nosso vizinho Peru. O arroz com lentilhas árabe pode ser uma das matrizes deste acompanhamento que ganhou o “auxílio luxuoso” do creme de leite, e tudo o que tiver na cozinha, como bacon, calabresa, queijo, charque, carne de sol, tornando-se um prato calórico demais e de difícil digestão.

Músicas

Sanfoneiro de São Paulino, Acopiara | Foto: Francisco Sousa

A trilha sonora da festa foi sendo constituída, aos poucos, pelas sonoridades indígenas, a partir das flautas de tabocas, pelas zabumbas e caixas de madeira e couro de animais, na gênese das bandas cabaçais, que ainda estão espalhadas pelos sítios e pequenas localidades do Cariri cearense, como Jamacaru, em Missão Velha; localidades de Jati, Porteiras, ainda que todos os holofotes se voltem para os Irmãos Anicetos, do Crato, e para as bandas de Juazeiro do Norte comandadas por Mestres da Cultura.

Xotes, arrasta-pés, benditos, reisados, xaxados, pastoris, contribuíram para as fusões que Humberto Teixeira, cearense de Iguatu, e Luiz Gonzaga, pernambucano de Exu, fizeram para “inventar” a música nordestina.

Luiz usaria o jibão de vaqueiro e o chapéu, de vaqueiro e cangaceiro. Deixava de lado o “black tie”, com o qual se apresentava nas noites cariocas. Criaram uma série de clássicos, culminando com a “Asa Branca“, manifesto ético e estético da região.

O forró hoje se distancia, cada vez mais, das raízes rurais, e se aproxima da “sofrência”, do brega, cumprindo receituário da indústria dos megashows, e se afastando da “casa de reboco”, dos jilós, e da Comadre Sebastiana, das canções de outrora.

Viva Gonzagão, mas também Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, Marinês, Dominguinhos, uma linha que chega aos paraibanos e pernambucanos, mais ciosos das tradições, como Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, que ainda hoje animam estas festas que têm Elba Ramalho como diva.

As quadrilhas eram diluições de minuetos e de músicas de cortes europeias trazidas para o oco do sertão.

Definharam para que a chita das saias rodadas e o quadriculado das camisas masculinas, fossem substituídas pelos brocados, lamês e rendas sintéticas. As referências passaram a ser as Escolas de Samba do carnaval cariocas. Entravam em cena os enredos, adereços de mão, alegorias, e o mestre de cerimônias.

Resumo da ópera: o triunfo da espetacularização. Não adianta reclamar. Tento fazer uma etnografia apressada destes grupos, fortes, ao movimentar muita gente, dinheiro, e criar um circuito de festivais, em Recife, Caruaru, Campina Grande, Mossoró e Fortaleza. Nestas cidades, as quadrilhas apresentam seu poder de fogo para arrastar títulos e levar as plateias ao delírio.

Os coreógrafos inovam nos passos, mas devem obedecer à norma que mantém um pouco da tradição, e exigem a presença da sanfona. As trilhas sonoras são elaboradas com competência, recorrem ao que o público conhece e sabe cantar, para criar um frenesi da apresentação.

As festas juninas aquecem a economia nordestina, atraem turistas, e verdadeiras cidades cenográficas são montadas em Campina Grande e Caruaru, que brigam pelo título de “o maior São João do mundo“.

Do ponto de vista da história cultural, novas páginas são escritas e falam de gastronomia, moda, música, dança, performance, comportamento e consumo.

No Ceará, a Festa de Santo Antônio de Barbalha, inscrita no livro das celebrações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é referência nacional. Pena que insista em cortar uma árvore centenária todo ano, porque faria parte do ritual.

Os arraiás de São João acenam para a valorização das raízes. São Pedro ganha procissões marítimas no litoral. A festa se espalha por todo o Nordeste.

Em Fortaleza, as fogueiras foram banidas para a periferia. A festa se dá no espaço dos supermercados, das padarias, dos restaurantes, dos shoppings, dos espaços de lazer. Tradição e contemporaneidade convivem e buscam a afirmação de um espírito, cujas raízes estão cada vez mais distantes do que a festa nos oferece.

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