A transição energética tem avançado nos estados do Nordeste, mas esse movimento não tem se traduzido em valorização para as famílias rurais que vivem nos territórios onde o vento se tornou insumo estratégico para a produção de energia.

O relatório técnico “Aspectos jurídicos da relação contratual entre empresas e comunidades do Nordeste para a geração de energia renovável: o caso da energia eólica”, publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com o Plano Nordeste Potência, em 2023, revelou que empresas do setor eólico têm firmado contratos de uso da terra pagando valores que chegam a R$ 1 ou R$ 2 por hectare, em acordos de até cinco décadas de duração.
O levantamento identificou contratos “idênticos”, repetindo inclusive erros ortográficos, o que, segundo os pesquisadores, evidencia “a limitação ou a completa ausência de negociação real entre as partes”. A diferença entre a maioria dos contratos se dá apenas no nome do responsável e medidas da localidade.
Contratos para instalação de eólicas
Existem diferentes modalidades contratuais para a instalação de aerogeradores em propriedades privadas, a principal delas é o contrato por arrendamento. Conheça os 3 principais tipos de acordos:
Arrendamento
Essa primeira modalidade funciona como uma locação. Nesse tipo de acordo, o locatário tem posse parcial ou mesmo total de um bem, como hectares de terra. A partir disso, é possível explorar aquele “pedaço” de acordo com a atividade específica da empresa, como a instalação de aerogeradores.
Segundo análise do Inesc, essa escolha não acontece por acaso. As empresas costumam firmar contratos antes de qualquer garantia de instalação naquela área. Isso ocorre porque, para obter a outorga da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e participar dos leilões de energia, elas precisam comprovar previamente que têm acesso ao território onde pretendem gerar eletricidade.
Assim, o arrendamento funciona como uma etapa estratégica, e de baixo custo, para assegurar o direito de uso da terra antecipadamente. Nesse contexto, prevalece o interesse em garantir a posse e explorar o recurso energético com o menor custo possível, mesmo que isso ocorra muito antes da definição final do projeto.
Vale ressaltar que o arrendamento é previsto no Estatuto da Terra e no Decreto Nº 59.566/1966, sendo criado para a proteção de agricultores vulneráveis. Porém, segundo o relatório técnico da Inesc, ele está sendo usado de forma invertida para a obtenção de vantagens contratuais, beneficiando grandes empresas.
Cessão de uso
A cessão de uso é um acordo temporário utilizado pelas empresas para avaliar a viabilidade do projeto, especialmente para instalar torres anemométricas. Os valores variam, vão desde contratos sem qualquer pagamento a outros que chegam a R$ 2.000 por mês. Essa diferença costuma refletir o nível de informação e assistência jurídica do proprietário.
Servidão
Já a servidão é um direito real que permite à empresa usar parte da propriedade para passagem de estruturas e componentes essenciais da usina eólica. Embora dependa da concordância das partes, muitas vezes só ocorre após a emissão de uma Declaração de Utilidade Pública (DUP) pela Aneel, o que amplia o poder das empresas sobre o território.
O hectare que rende
pouco e limita o uso da terra
Mesmo alguns acordos trazendo pagamentos atrelados à produção energética, a compensação é mínima. Em diversos contratos, empresas remuneram agricultores com apenas 1,5% da receita bruta da energia gerada na área arrendada. Rárisson Sampaio, advogado e assessor político do Inesc, resume essa assimetria de forma direta: “98,5% ficam para a empresa que está realizando a atividade produtiva de energia”.
O uso da terra também sofre restrições severas. Agricultores relatam que não podem plantar ou construir sem autorização da empresa, sob o argumento de que qualquer atividade pode interferir no fluxo dos ventos. Ou seja, nesse cenário, o agricultor, que em teoria ainda é o dono da terra, não pode mais decidir sobre o plantio dos hectares cedidos.
Sem paridade jurídica, agricultores negociam em desvantagem
A ausência de paridade jurídica é um dos elementos que mais aprofundam a vulnerabilidade das famílias rurais diante das grandes empresas de energia. Durante o debate “O Papel das Salvaguardas Socioambientais para uma Transição Justa”, realizado na COP30, Rárisson contextualizou essa desigualdade:
“Se contrato já é um tema espinhoso para muitas pessoas que estão fora do meio jurídico, imagine isso para comunidades tradicionais ou comunidades que estão ali na zona rural. Não falo nem da instrução formal de ensino, mas eu digo acesso a uma assistência jurídica qualificada que possa representar os seus interesses de uma maneira legítima”, pontua.

Em contrapartida, as grandes empresas chegam aos territórios com equipes jurídicas completas e modelos de contrato previamente definidos, e os agricultores negociam praticamente sozinhos. Um dos desafios, segundo o advogado, é que para grande parte do meio jurídico, essas pessoas estão no mesmo patamar de igualdade com as empresas eólicas. Ou seja “Uma corporação multinacional e um pequeno agricultor estariam no mesmo pé de igualdade econômico e jurídico para pactuar um contrato que vai durar 50 anos”, afirma Rárisson.
A combinação de contratos longos, valores baixos e falta de apoio jurídico revela um modelo de expansão das eólicas que coloca agricultores em posição de permanente desvantagem. O vento, que se tornou fonte de lucro para grandes empresas, pouco retorna para quem vive da terra. Sem condições reais de negociação e submetidas a regras que limitam até o uso do próprio solo, muitas famílias aceitam acordos que comprometem sua autonomia por décadas. O resultado é uma transição energética que avança sobre territórios vulneráveis sem garantir que seus moradores recebam, de fato, os benefícios prometidos.
As jornalistas Maristela Crispim e Isabelli Fernandes viajaram a Belém para a cobertura da COP30 com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e estão hospedadas na Casa do Jornalismo Socioambiental, uma iniciativa que reúne profissionais e veículos brasileiros especialistas de todo o País para ampliar abordagens e vozes sobre a Amazônia, clima e meio ambiente.


