Cânion do São Francisco. | Foto: Shutterstock Photos
Professora Vanda Claudino-Sales

Por Vanda Claudino-Sales
Geógrafa
Professora associada aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
vcs@ufc.br

Os cânions são formas de relevo que apresentam vales profundos, representando paisagens impactantes. Eles resultam da ação da água sobre as rochas da superfície da Terra ao longo do tempo geológico, a qual vai lentamente desgastando o material rochoso e cavando os vales.

Ao mesmo tempo em que a água, na forma de rios, vai erodindo as rochas, frequentemente ocorre, simultaneamente, um soerguimento da crosta terrestre, que está sempre em movimento. O soerguimento resulta em maior incisão fluvial, de forma a aprofundar o vale. Esse trabalho de erosão fluvial (ação externa) e atividade tectônica (soerguimento das rochas, ação interna) leva em geral alguns milhares de anos, por vezes milhões de anos, e resulta na formação de dois paredões verticais delimitando o leito de rios – eis a origem dos cânions.

Os cânions são feições fascinantes! Eles expõem, da base ao topo, rochas de diferentes matizes, origens, idades e composição, as quais são como um livro aberto para ler e entender a evolução da superfície (e do interior) da Terra. Por meio da decodificação do pacote rochoso que os cânions expõem, pode-se conhecer o clima da Terra em épocas anteriores, indicando por exemplo a existência de eras glaciais (idades do gelo), ou de climas muito secos ou muito úmidos, responsáveis pela formação de rochas sedimentares de diferentes características. Pode-se igualmente analisar a intensidade e natureza dos processos geológicos responsáveis pela formação das rochas cristalinas, e assim desvendar a história natural pretérita do local onde eles ocorrem. Nesse sentido, os cânions são uma janela aberta do interior da Terra para o céu!

No Brasil, existem cânions em diversos locais do território, formando feições de beleza singular. Uma área rica nesse sentido, diz respeito ao segmento do leito do Rio São Francisco situado na divisa dos estados da Bahia, Alagoas e Sergipe. Nesse setor, existem três grandes cânions, que expressam situações geológicas diferenciadas. Trata-se dos chamados “Cânion do Rio São Francisco”, “Cânion do Xingó” e “Cânion do Talhado”. Para entender os mistérios e segredos dessas feições, faz-se necessário contar a história da evolução do Rio São Francisco nesse segmento.

Coloca-se que o termo “Velho Chico” é extremamente apropriado para o caso do Rio São Francisco. Pois consta que o São Francisco já escoava sobre a superfície da Terra nos idos do fim do Cretáceo (por volta de a partir de 80 milhões de anos), o que o transforma em um rio realmente “velho”. Ele escoava segundo a direção sudoeste-nordeste, indo para o Atlântico Equatorial no segmento nordestino, mas o soerguimento da Bacia do Araripe, a partir do fim do Cretáceo, responsável pela formação da Chapada do Araripe, no sul do Ceará, na divisa com Pernambuco (Peulvast e Claudino-Sales, 2004) , obrigou o rio a tomar outro rumo, passando a escoar em direção a sudeste, desaguando na costa leste do Brasil.

Tal fato foi responsável pela formação do chamado “cotovelo do São Francisco” (Ab’Saber, 1969) (Figura 1). Essa mudança de rumo produziu acentuada incisão fluvial, criando o maior dos cânions da região (Ferreira et al., 2018) – trata-se do “Cânion do Rio São Francisco”, que se situa no trecho entre a Cachoeira de Paulo Afonso, na Bahia, e a cidade de Canindé de São Francisco, no Estado de Sergipe.

Figura 1. Mapa indicando o canal do Rio São Francisco, evidenciando a mudança de escoamento que ocorre na divisa com Pernambuco (“cotovelo do São Francisco”), em função da existência de relevos elevados e resistentes (Planalto do Araripe) a norte. | Fonte: Ministério dos Transportes, 2016.

A incisão inicial do Cânion do Rio São Francisco foi largamente ampliada no fim do Plioceno (três milhões de anos), a partir do soerguimento que teria caracterizado o conjunto do Nordeste (Ab’Saber, 1997). A ampliação da incisão foi provavelmente também associada com rebaixamento do nível do mar, o qual teria provocado uma mudança do nível de base do rio, obrigando-o a aprofundar ainda mais o vale, para poder alcançar o mar rebaixado.

Hoje, o Cânion do Rio São Francisco, que rasga rochas metamórficas (gnaisses, migmatitos) do embasamento cristalino antigo (2,2 bilhões de anos), granitos mais recentes (Neoproterozoicos: 540 milhões de anos) e rochas sedimentares paleozoicas (420 milhões de anos) da Bacia Tucano-Jatobá, forma paredões da ordem de cem metros de altura, criando feição espetacular em pleno core nordestino (Ferreira et al., 2018) (Figura 2).

Figura 2. Visão panorâmica do Cânion do São Francisco, que apresenta extensão da ordem de 70 km e largura de até 300 m, situado ao longo da divisa entre a Bahia e Alagoas. Foto: Ferreira et al., 2018.

 

Um outro cânion associado com o Rio São Francisco situa-se na Represa do Xingó, nas proximidades da cidade de Delmiro Gouveia, em Alagoas. Ele foi produzido pela ação do Rio Xingó, que era um braço anastomosado intermitente do Rio São Francisco, afogado pela construção da represa, o que fez subir o nível das águas e permitiu a navegação. O cânion foi modelado em rochas paleozoicas (420 milhões de anos) da bacia sedimentar Tucano-Jatobá, expondo escarpas de até 30 metros de altura (Ferreira et al., 2018).

As escarpas expõem estruturas sedimentares diferenciadas, do tipo estratificação cruzada e paralela, que fornecem informações sobre os processos de sedimentação dos materiais de forma didática. Tem segmentos do cânion extremamente estreitos, outros mais abertos, formando por vezes um labirinto de vales limitados por paredões rochosos de beleza ímpar (figura 3).

Figura 3. Segmento estreito do Cânion do Xingó, expondo paredões esculpidos em rochas sedimentares da Formação Tacaratu, formada em ambiente marinho do Paleozoico (420 milhões de anos), erodida pela ação fluvial em tempos mais recentes. | Foto: Shutterstock Photos.

Um terceiro cânion no vale do São Francisco se faz presente também no interior da Represa do Xingó, dessa feita esculpido pelo Rio Talhado, um afluente intermitente do Rio São Francisco que desde meados da década de 1990 (época da construção da represa) acha-se afogado pelas águas de nível elevado. Trata-se do Cânion do Talhado, igualmente modelado em rochas sedimentares da Bacia Tucano-Jatobá, com elevações um pouco mais modestas, mas que por vezes podem também chegar a 30 m.

Em alguns setores, as rochas que ornamentam o cânion apresentam-se modeladas na forma de “tor” – ou “castle koppies”, feições que representam um tipo de relevo ruiniforme (isto é, na forma de ruínas), resultante da desagregação física e da ação química (dissolução) de parcela do pacote rochoso (Figuras 4 e 5).

Figura 4. Cânion do Talhado, modelado em rochas sedimentares paleozoicas que criam paredões verticais atacados por intemperismo (quebra e decomposição da rocha) e erosão (deslocamento e transporte de materiais), resultando em paisagem de expressiva beleza cênica. | Foto: Flávio Torres de Araújo.

 

 

Figura 5. Feição do tipo ‘tor’ (“Castle Koppie’) ao longo do Cânion do Talhado, representando relevo ruiniforme resultante do ataque físico (desagregação granular) e químico (dissolução) as fraquezas das rochas, tais como planos de acamamento e juntas estruturais. | Foto: Flávio Torres de Araújo.

A região dos cânions do São Francisco também apresenta características singulares em termos de ocupação territorial, a qual se inicia no período pré-histórico (9000 anos), com caçadores-coletores que deixaram inúmeras inscrições rupestres, passando pelo período do Brasil colonial, com os primeiros desbravamentos bandeirantes.

Durante o Império, ocorre a implantação da Ferrovia Paulo Afonso para interligar a navegabilidade do médio e baixo curso do rio, e na República, a construção da primeira hidroelétrica do Nordeste em 1913, até chegar aos dias atuais, com a construção das grandes hidroelétricas que mudaram em parte a configuração natural do rio (Ferreira et al, 2018). A região registra ainda áreas de uso por parte dos “cangaceiros” durante as primeiras décadas do século XX, e comporta o lugar histórico de emboscada de Lampião, em Sergipe.

A atividade turística na área é intensa, e vem de longa data, quando os principais atrativos eram a Cachoeira de Paulo Afonso e a cidade de Piranhas, em Alagoas, que registra parte da história do cangaço. A barragem da Usina Hidroelétrica de Xingó, inaugurada em 1994, viabilizou a navegabilidade, fato que impulsionou o turismo de forma exponencial, sendo os principais atrativos os passeios de barco e os agradáveis banhos nas águas verdejantes do lago artificial, ao longo dos cânions. As cidades da área dos cânions contam hoje com uma boa infraestrutura hoteleira, sendo ainda um atrativo à parte a visita à vinícola Miolo, que instalou uma filial na região.

Na atualidade, existe a proposta de criação de um geoparque, o Geoparque Cânion do São Francisco, com extensão de 3.783 Km2, apresentada à Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), pelo Serviço Geológico do Brasil – CPRM, o qual, se instalado, impulsionaria preservação, geoturismo e desenvolvimento regional sustentável. Mas mesmo sem o geoparque, a região já oferta inegavelmente inúmeras atrações, as quais sem dúvida merecem ser objeto de visitação – fica aqui, com entusiasmo, a sugestão.

Referências bibliográficas

AB’SABER, A.N.1969. Participação das superfícies aplainadas nas paisagens do Nordeste Brasileiro. Instituto de Geografia / USP, São Paulo, Geomorfologia, vol. 19.

AB’SÁBER, A. N. 1997. O Homem dos Terraços de Xingó. Relatório de visita e pesquisas na área de Xingó (nov.de 1997). Projeto financiado pela CHESF. Doc. n. 6. Projeto Arqueológico Xingó. Universidade Federal de Sergipe.

FERREIRA, R.V.; MARIANO, G.; LIMA, R.A.; GUIMARÃES, T.O.; SANTOS, E.M. 2018. Geoparque Cânion do São Francisco. Brasília, CPRM.

PEULVAST, J.P.; CLAUDINO-SALES, V. 2004. Stepped surfaces and palaeolandforms in the northern Brazilian «Nordeste»: constraints on models of morphotectonic evolution. Geomorphology, vol. 62, p. 89-122.

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